O CASO AMÍLCAR CABRAL

 

JOSÉ LUÍS HOPFFER C. ALMADA*

Lisboa, 5 de Abril de 2007 (revisto em 19 de Janeiro de 2008)

 

      BREVE NOTA EXPLICATIVA

    Como o leitor interessado deve estar lembrado, tive o ensejo e o prazer de, no ano transacto, ter publicado, no espaço de asemanaonline, uma série de três textos sobre Amílcar Cabral.

   Nesses textos quis destacar especialmente a questão da unidade Guiné – Cabo Verde e a sua abordagem pelo grande estratega político.

   Como é sabido, Amílcar Cabral encarava a unidade Guiné - Cabo Verde como um meio estratégico imprescindível para a conquista das soberanias nacionais por parte dos povos do arquipélago de Cabo Verde e da então denominada Guiné portuguesa.

   Nesses textos, genericamente intitulados “O caso Amílcar Cabral”- aliás, em explicita alusão ao título de um ensaio de Onésimo Silveira que serviu de mote aos mesmos -, pude referir-me ainda ao positivo desenlace propiciado pela estratégia e pela prática da unidade de acção entre cabo-verdianos e guineenses no seio do PAIGC (Partido Africano paras a Independência da Guiné e de Cabo Verde) e concretizado na queda do colonial-fascismo português, bem como na obtenção das independências políticas da Guiné-Bissau, de Cabo Verde e dos demais países afro-lusófonos.

   Nos mesmos textos, pude debruçar-me, igualmente, sobre as expectáveis e factuais vicissitudes sofridas, no período pós-colonial, pelo projecto e pelo sonho cabralianos da construção de uma pátria africana bi-nacional, progressiva, solidária e assente na prévia obtenção da libertação nacional dos povos da Guiné-Bissau e de Cabo Verde e da sua preliminar constituição em Estados independentes e soberanos. Como referido nos mesmos textos, tais vicissitudes culminaram no golpe de Estado de 14 de Novembro de 1980, protagonizado por Nino Vieira, no posterior desaparecimento do PAIGC, enquanto partido binacional, e, finalmente, na falência da utopia cabraliana da construção de uma pátria africana binacional entre os povos de Cabo Verde e da Guiné-Bissau.

    Como é também sabido, para além de ter sido o demiurgo, o mentor e o principal protagonista do princípio e da praxis da unidade Guiné – Cabo Verde, Amílcar Cabral também foi e continua a ser, até aos dias de hoje, o seu mártir mais célebre e chorado.

    Por razões que não vêm agora ao caso, na altura da edição da versão resumida dos textos intitulados “O caso Amílcar Cabral”, não foram publicadas as restantes partes dos mesmos textos. Para além do texto que, agora, damos à estampa, as partes não publicadas referiam-se, nomeadamente, às concepções culturalistas de Amílcar Cabral e à controversa e muito discutida abordagem por parte do conceituado intelectual e teórico do “suicídio de classe” (ou “hara-kiri”) a empreender pelo sector revolucionário e nacionalista da classe de serviços que seria a pequena burguesia intelectual e burocrática.

   Relembre-se que Cabral considerava o “suicídio de classe” do sector nacionalista e revolucionário da pequena burguesia como um requisito político e moral essencial para a libertação dos processos históricos dos povos africanos colonizados e, assim, para a concretização dos objectivos de emancipação social e humana e o sucesso da via socialista de desenvolvimento. O “suicídio de classe” da pequena burguesia revolucionária e a via socialista de desenvolvimento eram tidos como a única alternativa ao emburguesamento da mesma fracção da pequena burguesia, inevitavelmente alcandorada ao poder político, sócio-económico e simbólico-cultural por força incontornável das circunstâncias históricas, e à sua correlativa e expectável opção pela via e solução neo-coloniais, isto é, por um modelo económico e político-social muito propenso à perpetuação do atraso e do subdesenvolvimento crónicos bem como do estatuto periférico dos povos africanos.

     A acrescer aos textos já concluídos, temos entre mãos a ultimação da escrita de um ensaio que pretende analisar a abordagem dos direitos humanos e da dignidade da pessoa humana em Amílcar Cabral e que contamos dar à estampa nos próximos tempos.

   Pareceu-nos oportuno publicar agora o texto que se segue, quando se aproxima a data das tradicionais e solenes comemorações do dia dos heróis nacionais e se assinala o trigésimo quinto aniversário do assassinato do líder das lutas independentistas dos povos de Cabo Verde e da Guiné-Bissau.

     A publicação do presente texto parece-nos tanto mais oportuna quanto, num quadro geral de louvável e democrático debate de ideias e de opiniões, de revisitação do nosso passado histórico, de acesa disputa em torno dos discursos identitários caboverdeanos bem como de pugnas diversas pelo achamento e pela beatificação da personalidade supostamente mais relevante para a história caboverdeana, tornaram-se cada vez mais virulentos, acerbos e soezes os ataques à vida e à obra de Amílcar Cabral. Tais ataques têm visado não só a doutrina política de Amílcar Cabral e os seus fundamentos ideológicos e culturais, considerados, de todo em todo, ultrapassados, como também os fundamentos humanistas que motivaram o seu combate para o resgate da dignidade humana e social dos filhos da Guiné e de Cabo Verde e dos demais povos africanos.

   Contra a amnésia histórica e as memórias demasiada e convenientemente selectivas, relembramos, nesta ocasião, que os povos africanos, incluindo o povo caboverdeano, estavam, por alturas da saga libertária de Amílcar Cabral, submetidos à dominação estrangeira e sujeitos ao medo, à ignorância, à pobreza e aos demais atributos do inferno da subjugação colonial e dos correlativos estatuto periférico e estado de subdesenvolvimento crónico, impostos aos povos colonizados.

   Como é sabido, foi esse estatuto de menoridade política, cultural e humana a causa primeira da situação de degradação e do estado de atraso em que vegetavam as nossas ilhas, então denominadas "arquipélago da fome, bem como da impossibilidade do gozo por parte da grande maioria do povo caboverdeano dos mais elementares direitos humanos, consagrados na Declaração Universal dos Direitos do Homem e em outros instrumentos jurídicos internacionais. Era nesse estatuto de menoridade que, igualmente, residia a razão primordial da impossibilidade da plena fruição por parte dos flagelados do vento leste das conquistas civilizacionais, milenarmente engendradas pelo conjunto da humanidade, e, em especial, dos valores da modernidade almejados pelas lutas de emancipação social, cultural, económica e política encetadas em todos os continentes e que, nas ilhas, foram protagonizadas, em momentos históricos diferentes, por sucessivas gerações de caboverdeanos, todas comprometidas, a seu modo e em conformidade com as mundividências características da sua época histórica, com a defesa dos interesses da terra e do povo do sahel insular.       

   Tal como se apresentou, em 1962, perante o Mundo e a Quarta Comissão de Descolonização da ONU, Amílcar Cabral afirmou-se e fez-se reconhecido como um notável e clarividente combatente das Nações Unidas e dos seus nobres objectivos de universalização da integridade dos direitos do homem a todos os seres humanos, neles incluindo o direito da auto-determinação e da escolha soberana do seu destino por todos os povos. 

 Indirectamente escalpelizados no texto que agora é dado à estampa são os pontos de vista que, in extremis e em exacerbação do seu conhecido e anti-africanista revisionismo histórico, pretendem negar a caboverdeanidade de Amílcar Cabral e, assim, uma sua importante costela identitário-cultural, essencial na construção da sua assumida dupla pertença (caboverdeana e guineense) e bipatridia políticas. Nessa sanha negacionista, os defensores desse ponto de vista têm apresentado o fundador da nacionalidade e pai das pátrias, ou, se se quiser, dos Estados-nação caboverdeano e guineense, como um ser estranho às ilhas e alheio à idiossincrasia e aspirações do povo do sahel insular, isto é, como um “guineense que foi imposto aos caboverdianos”.

   Curiosamente, tal ponto de vista aparenta-se com aqueloutra, utilizada como munição política e arma identitária de arremesso histórico-cultural por parte dos detractores guineenses de Amílcar Cabral e críticos impenitentes do princípio da unidade Guiné - Cabo Verde e da prática da unidade de acção, combativa e anti-colonial, entre guineenses e caboverdeanos. Como, de modo trágico, relatam as crónicas, estribando-se na costela caboverdeana de Amílcar Cabral e na crioulidade dos seus companheiros insulares, esses adversários políticos de Amílcar Cabral, conluiados com o poder colonial-fascista e com os seus representantes na periclitante província ultramarina, invocaram a necessidade do estabelecimento de uma direcção genuína e exclusivamente guineense da luta político-armada que, então, mobilizava o povo da Guiné e avassalava o poder colonial, e optaram resolutamente pela neutralização política e pela liquidação física do Secretário-Geral do PAIGC, o cérebro principal da heróica saga libertária então corajosamente protagonizada pelo povo guineense em armas.  

   Assinale-se, nesta circunstância, que os defensores desses pontos de vista, contrários à caboverdeanidade e, deste modo, à bipatridia política e à dupla pertença identitária de Amílcar Cabral, têm divergido, curiosamente, das opiniões apresentadas e sustentadas por algumas proeminentes personalidades políticas do nosso país, que, mesmo sendo adversários e/ou críticos da doutrina política, marxizante e socializante, comungada e teorizada por Amílcar Cabral, reconhecem-no e proclamam-no como "o mais grande de todos os grandes cabo-verdianos". É o que Carlos Veiga teve a oportunidade de dizer no Segundo Simpósio Amílcar Cabral, realizado na Praia, em Setembro de 2005.

   É neste contexto que saudamos a edição do livro “O Fazedor de Utopias” do angolano António Tomás, que, apesar de algumas inexactidões e deficiências da edição portuguesa, sobretudo no que diz respeito a topónimos, datas, nomes de protagonistas históricos e autores de livros expressamente referenciados na bibliografia que acompanha o seu texto, se afigura assaz esclarecedor quanto à história e ao percurso pessoais e políticos de Amílcar Cabral, incluindo dos seus momentos mais estritamente caboverdeanos.

Neste sentido, o livro de António Tomás confirma o que vai dito no texto que se segue e sublinha, de forma convincente, a dupla pertença e a bipatridia caboverdeano-guineenses de Amílcar Cabral.

      Como escreve José Eduardo Agualusa no prefácio ao livro"O Fazedor de Utopias", “Amílcar Cabral nasceu guineense e cabo-verdiano numa generosidade pan-africanista que, paradoxalmente, haveria de ser a sua desgraça".

   Por sua vez, é o próprio Amílcar Cabral que, desta forma, se expressa perante os participantes do célebre Seminário de Quadros de 1969, num discurso oral depois transcrito no texto “Unidade e Luta”, constante no primeiro volume das Obras Escolhidas de Amílcar Cabral, intitulado “A Arma da Teoria”:

  "Claro que para nós o problema da unidade da Guiné e de Cabo Verde não se põe por uma questão de capricho nosso, não é porque Cabral é filho de cabo-verdiano, nascido em Bafatá, que tem grande amor pelo povo da Guiné, mas também grande amor pelo povo de Cabo Verde. Não é nada disso, embora seja verdade. Eu vi gente morrer de fome em Cabo Verde e vi gente morrer de açoites na Guiné (com bofetadas, pontapés, trabalho forçado). Compreendem? Essa que é a razão da minha revolta. Mas a razão fundamental da luta pela unidade da Guiné e de Cabo Verde é a própria natureza da Guiné e de Cabo Verde. São os próprios interesses da Guiné e Cabo Verde que nos levam a isso".

 

               O CASO AMÍLCAR CABRAL

                       (QUARTA PARTE)

 

LEGITIMIDADE PESSOAL DE AMÍLCAR CABRAL E VALIDADE HISTÓRICA E POLÍTICA DO PRINCÍPIO DA UNIDADE GUINÉ-CABO VERDE

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   Dois factores terão sido de grande relevância para que pudesse vingar a posição unificadora de guineense e caboverdeanos no seio do PAIGC, defendida e praticada por Amílcar Cabral:

 

a) a sua condição pessoal de natural da Guiné, mas oriundo de famílias caboverdianas e portador de uma larga vivência nas ilhas.

A essa condição acresciam a sua aparência largamente negra (“escura”) bem como as suas convicções pan-africanistas atinentes à libertação total do africano, para mais prestigiadas pelas suas comprovadas competências como engenheiro agrónomo, num tempo e num ambiente em que escasseavam os titulares de uma formação universitária de nível superior.

 

b) o profundo enraizamento de Cabral tanto no meio guineense como no meio caboverdiano.

 

 

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O enraizamento no meio guineense, iniciado durante a sua infância no país natal, tinha sido prosseguido aquando da sua estadia profissional na Guiné, onde realizou o recenseamento agrícola geral. Como é sabido, o recenseamento agrícola geral da sua terra natal permitiu-lhe percorrer, de lés a lés, a província ultramarina portuguesas e fazer-se conhecido e reputado entre as populações rurais e as suas lideranças tradicionais.

Nestas circunstâncias, pôde o Engenheiro inteirar-se também da ambiência socio-política na cidade colonial de Bissau e nos seus arrabaldes indígenas. É nesta cidade que, mediante o subterfúgio do embrenhamento em organizações desportivas e recreativas, toma nota do estado de consciência cívica da juventude e lança as primeiras sementes da consciencialização política dessa mesma juventude.

Para além disso, procede a intensos contactos com personalidades guineenses, como Rafael Barbosa, nessa altura já muito comprometido com a causa nacionalista, convencendo-as a integrar-se e às suas emergentes organizações no PAI, formalmente fundado em Setembro de 1956, e na Frente nacionalista para o efeito criada (ainda que ficticiamente, em grande medida).

É também em Bissau que Cabral terá constatado o relevante peso da pequena burguesia caboverdeana na vida administrativa, cultural, económica e social da Guiné Portuguesa e a correlativa insignificância de uma elite nativa guineense, marcada pela escassez numérica e por eventuais ressentimentos contra os caboverdeanos.

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O enraizamento caboverdeano de Amílcar Cabral começou por via familiar.

 Nascido, em Bafatá, de pais caboverdeanos, num tempo de escassas e muito renitentes trocas culturais entre, por um lado, os considerados "civilizados" (nos quais se incluíam os funcionários e quadros caboverdeanos e os seus descendentes) e, por outro lado, os africanos nativos da terra firme continental, Amílcar terá podido internalizar a cultura caboverdeana e familiarizar-se com a mesma, desde o berço materno do afago da sua idolatrada mãe Iva, originária de S. Domingos, na ilha de Santiago, tal como o pai Juvenal Cabral, nascido na localidade de Godim, da mesma ilha de Santiago.

     Também muito relevante na formação da personalidade de Amílcar Cabral terá sido o facto de, na altura, o pai, Juvenal Cabral, ser um professor primário, oriundo pela parte paterna de uma família, os Reis Borges, de grandes proprietários do interior de Santiago (Achada Falcão) e que também se responsabilizou pela sua educação escolar.

    Com o fito de obtenção de uma sólida instrução escolar, Juvenal Cabral passou parte da infância e da adolescência em Viseu, onde foi aluno do Seminário (como, aliás, é largamente referido nas suas "Memórias e Reflexões") e, regressado a Cabo Verde, frequentou o Seminário-Liceu de S. Nicolau, que, por razões de índole pessoal, foi obrigado a abandonar.   

     Admirador confesso da terra guineense, da sua verde opulência e de alguns aspectos da sua cultura autóctone (especialmente da fula), negro retinto e crente abalizado nas iguais capacidades civilizacionais de todos os seres humanos, independentemente da sua raça e cultura de origem (como, aliás, se pode verificar nas suas considerações sobre os seus alunos guineenses, constantes do livro atrás referenciado), Juvenal Cabral foi também um indefectível defensor de “Portugal como nação colonizadora” e um convicto propagandista dos benefícios da disseminação das luzes da instrução escolar e dos valores da civilização cristã e ocidental entre os povos negro-africanos, “em boa hora colonizados”.

     Neste sentido, Juvenal Cabral se manifestou e se expressou como um produto típico dos valores do assimilacionismo colonial.

     Categorizado mediador e respeitado porta-voz dos flagelados das secas e de outras crónicas maleitas e calamidades do Cabo Verde colonial, Juvenal Cabral foi um assíduo colaborador da imprensa caboverdeana (republicana e pós-republicana), onde expôs largamente os seus pontos de vista, os quais ocupavam um vasto leque de matérias, como a defesa dos heróis portugueses e caboverdeanos das guerras de pacificação da Guiné, o alegado papel positivo desempenhado pelos seus conterrâneos na Guiné, a problemática das crises e das estiagens bem como a veemente denúncia das fomes em Cabo Verde.

     É, assim, que, para a definitiva resolução das crises de fome em Cabo Verde, Juvenal Cabral chegou a propor o povoamento caboverdeano de certos espaços agrícolas da Guiné como forma de arrecadação de meios alimentares que, depois, seriam reexportados para Cabo Verde.

     Autor da novela O Crime do Largo do Hospital e cultor intermitente de uma poesia em crioulo que se caracterizava pela utilização de formas fixas, ainda que na sua vertente satírica (como se verifica em “Bejo Caro”), Juvenal Cabral foi um rosto típico das elites letradas nativistas, esteticamente pré-modernistas, que, depois - entre os anos trinta e os anos sessenta do século XX- viriam a coexistir com os escritores claridosos, nas páginas dos jornais “O Eco de Cabo Verde” e  “Notícias de Cabo Verde”, do “Boletim Cabo Verde” e de outra publicações periódicas caboverdianas e com eles partilhar a comum defesa dos interesses da terra e do povo caboverdeanos e da muito exaltada “excelência intrínseca da colonização portuguesa”, não obstante o reconhecimento e a denúncia dos inegáveis efeitos negativos advenientes de uma administração pública mal conduzida e a estagnação dominante, frequentemente reconduzida, de modo fatalista e resignativo, às condições climatéricas adversas de uma terra madrasta e desgraçada.

  É essa figura paterna e a sua contraditória personalidade - feita de facetas muito louvadas e outras mais questionáveis à luz da moral e dos costumes da época - que parecem ter marcado de forma indelével a formação da personalidade de Amílcar Cabral, tanto em terras guineenses como nas ilhas caboverdeanas. Assinale-se, nesta circunstância, a ruína do proprietário rural que também foi Juvenal Cabral, em resultado da execução por parte do BNU (Banco Nacional Ultramarino) da hipoteca que impendia sobre as suas terras de Achada Falcão e que lhe couberam da herança legada pela sua madrinha, da muito conceituada família Reis Borges.

Tendo partido para Cabo Verde aos oito anos de idade, Amílcar radicou-se, com a nova família "legítima" do pai, na sua propriedade da Achada Falcão, em Santa Catarina, onde terá sido intenso o seu contacto com o mundo rural santiaguense e, assim, com a vida dos proprietários rurais, com a labuta diária dos camponeses pobres e com as consequências mortíferas das secas e das fomes dos anos trinta e quarenta.

Passando a viver depois na Cidade da Praia com a mãe Iva e os seus outros irmãos pelo lado materno, Cabral pôde contactar com a vida da capital da província, com a sua juventude espartilhada entre o Riba e o Baxo Praia, entre a Rua Sá da Bandeira e a Ponta Belém. Pôde também dar vazão às suas potencialidades desportivas e às capacidades humanas de cativar o próximo.

Depois domiciliado na ilha de S. Vicente, onde a mãe Iva se desloca com a máquina de costura e toda a família e se emprega numa fábrica de embalagem de peixe para assegurar a educação liceal do filho predilecto, Amílcar destaca-se como aluno brilhante, desportista assíduo, companheiro fiável, negro e badizinhe atreito ao desfrute da abertura intelectual e humana proporcionada pela cidade-porto nortenha.

    Ainda assim brilhante e adaptado à face irónica e divertida da vida, o aprendiz de intelectual não vê aceite, por alegado desfasamento estético, a sua candidatura à muito restrita Academia Cultivar, fundada e dinamizada por alguns alunos finalistas do Liceu Gil Eanes (o único existente na altura em Cabo Verde) e responsável pela edição da folha cultural “Certeza”.

      Esse choque (imagina-se pela entrevista de Orlanda Amarílis a Michel Laban e pelo depoimento de Tiago Estrela ao documentário de Ana Ramos Lisboa sobre Amílcar Cabral!) não esmorece a sua veia literária e o seu gosto pelas coisas culturais. Continua escrevendo trabalhos, muito sintonizados com o telurismo e o neo-realismo dominantes entre os seus contemporâneos e colegas de geração, que depois publica no jornal “Ilha”, dos Açores, na revista “Mensagem” da Casa dos Estudantes do Império e no “Boletim Cabo Verde”.

     É nesta última revista que, ainda estudante universitário, publica o ensaio “Breves Apontamentos sobre a poesia cabo-verdiana” bem como trabalhos técnicos sobre os efeitos da erosão nos solos de Cabo Verde.

     Depois da formatura no Liceu Gil Eanes de S. Vicente, Amílcar regressa com a família à cidade da Praia, onde, enquanto aguarda uma bolsa de mérito para iniciar os estudos universitários, trabalha na Imprensa Nacional e organiza um programa radiofónico de grande audiência popular que, considerado demasiado crítico do estado vigente das coisas, é suspenso pelas autoridades coloniais.

 

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Obtida a bolsa de estudos, conjuntamente com Aguinaldo Veiga (o companheiro da infância, da escola primária de Santa Catarina e do Liceu do Mindelo e futuro adversário político), Amílcar Cabral entra numa fase decisiva da sua preparação para o cumprimento do seu destino.

Estudante de Agronomia, onde brilhou, surpreendeu pela cultura geral e pelo afável companheirismo e, finalmente, se casou com a mãe das duas primeiras filhas (Iva e Ana Luísa), Amílcar Cabral embrenha-se fundo no activismo estudantil da Casa dos Estudantes do Império, tendo a direcção eleita que ele integrava sido suspensa e substituída por uma comissão administrativa, por suspeita de nacionalismo africano e subversão comunista.

Com Mário Pinto de Andrade, Agostinho Neto, Francisco José Tenreiro, Noémia de Sousa, Marcelino dos Santos e Alda do Espírito Santo, funda o Centro de Estudos Africanos, de crucial importância para a “reafricanização político-cultural dos espíritos” desses estudantes, temporariamente domiciliados na capital do império, isto é, de alguns daqueles que, depois, seriam decisivos nas organizações políticas emancipalistas das colónias africanas de Portugal.

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Depois da conclusão dos estudos universitários, o destino engendrado pela sua meditada deliberação em participar nas lutas para a independência das colónias portuguesas, em especial da Guiné e de Cabo Verde, e ratificado pelos concursos para o Quadro Administrativo do Ultramar, coloca Amílcar em Bissau.

A História podia doravante dar-se por satisfeita e rir-se de contente. As pedras estavam colocadas, todas elas, nos seus devidos lugares nas fundas da vida e da previsibilidade do destino.

As incursões académicas ao Alentejo e as estadias profissionais em Angola contribuiriam sobremaneira para consolidar o humanismo marxista e o anti-colonialismo de Amílcar Cabral e tornar mais premente a sua vontade de dar as mãos aos desafios do destino.

Que o levariam a ancorar -se em Conacry e a acostar-se ao mundo dos povos combatentes e dos seus aliados naturais, localizados nos países africanos e terceiro-mundistas, nos chamados “países do socialismo real”, bem como nos movimentos democráticos e progressistas dos países ocidentais, depois de o terem levado e tornado a levar a Paris, Londres, Dakar, Casablanca, Cairo, Pequim, Moscovo, Praga, Belgrado, Berlim, Nova York, Havana, Dar-es-Salam, Adis Abeba, Oslo, Taschkent...

 

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O enraizamento dupla e simultaneamente caboverdeano e guineense, a dupla pertença telúrico-cultural de Amílcar Cabral e o humanismo internacionalista da sua formação pessoal e das suas convicções políticas e ideológicas mais profundas terão sido pressupostos subjectivos de valor - chave para a elaboração do princípio da unidade Guiné - Cabo Verde.

Cremos, no entanto, que mais decisivas nessa elaboração teórica e prática terão sido as lições colhidas da história política e cultural das ilhas de Cabo Verde e da Guiné, bem como as ilações estratégicas que um olhar a partir da sua condição de caboverdeano, natural da Guiné (ou, se quisermos, de guineense de origem e vivências caboverdeanas) e de intelectual profundamente comprometido com a causa da libertação dos povos lhe permitiu retirar.

Com efeito, a convivência com o pai Juvenal Cabral e com outros membros das elites letradas caboverdeanas terá possibilitado a Cabral constatar as fraquezas intrínsecas do pensamento e os limites impostos à acção dessas elites, nomeadamente a sua pugna por uma colagem político-cultural a Portugal, a sua luta quotidiana (por vezes comezinha, por vezes colossal, mas sempre no quadro institucional) para a afirmação da sua dignidade pessoal e para a defesa dos interesses de Cabo Verde e das suas populações. Avulta, entre essas fraquezas e fragilidades, a abjuração - por supostamente utópica e contraproducente - da independência de Cabo Verde, quer devido ao receio do afundamento socio-económico de um Cabo Verde politicamente soberano, quer por razões de ordem política e ideológica radicadas numa formação cultural muito contaminada pelo assimilacionismo colonial.

No que respeitava a Cabo Verde, interessava, pois, encarar a hipótese da factibilidade prática do sonho poético de Aguinaldo Fonseca de "construir uma outra terra dentro da nossa terra".

 Só assim seria possível atingir um novo patamar, a partir do qual se poderia resistir às políticas de esvaziamento e de despersonalização culturais promovidos pelo poder colonial e enfrentar os efeitos alienantes das teses de “diluição de África”.

De crucial significado neste contexto era a pugna pela plena liberdade de todas as manifestações culturais e expressões de vida da caboverdeanidade, como, aliás, postulava Manuel Duarte e seria depois reafirmado por Gabriel Mariano, nas suas teses compreensivas de Cabo Verde como “continente e arquipélago culturais”.

 Outrossim, a assunção da plenitude e da auto-suficiência culturais e identitárias de Cabo Verde deveria implicar, necessariamente, a revitalização do conjunto das tradições e manifestações culturais de todas as ilhas, incluindo aquelas de matriz mais ostensivamente afro-negra, com vista a propiciar a dignificação de todas as faces, vertentes e dimensões da nossa crioulidade, nelas inserindo as manifestações culturais afro-crioulas, então fortemente sujeitas a perseguição, ostracização e aviltamento por parte das autoridades político-administrativas e religiosas coloniais.

Ademais, importava enveredar por uma reafricanização dos espíritos que significasse e implicasse a assunção por parte do povo caboverdeano de um destino político africano, “livremente escolhido”, como também propunha Manuel Duarte, e ficou, depois, plasmado tanto no fundamentado e desassombrado manifesto da moderna geração nacionalista caboverdeana, que foi o livro Consciencialização na Literatura Cabo-Verdiana, como também, e a culminar o sucesso desse propósito, no Texto da Proclamação da Independência Política de Cabo Verde.

Devido aos constrangimentos advenientes das fraquezas estruturais da sua situação ecológica, da duradoura condição de instabilidade socio-cultural da sociedade caboverdeana e das suas elites tradicionais - psicossocial e culturalmente por demais dependentes de Portugal -, a reafricanização dos espíritos, propugnada por Amílcar Cabral e por Manuel Duarte, deveria implicar, necessariamente, a conexão com a margem (negro-) africana da atlanticidade e da crioulidade caboverdeanas.

  Todavia, essa conexão não poderia processar-se nem no quadro da divisão colonial do trabalho em que Cabo Verde se encontrava tradicional e historicamente inserido, nem tão pouco por um regresso à África, que fosse de carácter colonial-escravocrata, como no caso dos negros americanos regressados à Libéria ou, até, dos tangomaos lançados nos antigos Rios da Guiné do Cabo Verde.

 A mesma conexão também não poderia ser de natureza meramente simbólica ou messiânica, como nos casos do rastafarismo, do garveyismo ou de alguma literatura dos afrodescendentes das diásporas negras e afro-crioulas.

Esse “regresso” teria que se processar pela via da insubmissão anti-colonial e da solidariedade fraternitária com os povos africanos, igualmente sujeitos por Portugal à abjecta condição colonial, perpetuadora do medo, da ignorância, do atraso generalizado, da pobreza e da falta de perspectivas de desenvolvimento.

 

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    No que se refere à Guiné, e como Cabral pôde constatar, pessoalmente e in loco, era flagrante a persistência do espírito de resistência anti-colonial em largas franjas dos povos guineenses, sobretudo daqueles que professavam confissões animistas e estavam organizados em “sociedades horizontais”, sem Estado – aliás, em nítido contraste com o colaboracionismo colonial das hierarquias e das classes dirigentes muçulmanas das “sociedades verticais”.

  Era igualmente notória a insignificância de uma pequena burguesia burocrática e intelectual de extracção nativa guineense que pudesse ou quisesse conduzir, de forma consequente, os mesmos povos guineenses nos “caminhos ascendentes” para uma verdadeira independência.

 

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  Caminhos esses que já se divisavam por demais tortuosos face à intransigência de um colonialismo português, incapaz de sequer encarar a hipótese da concessão de uma independência fictícia às suas colónias e, nessa sequência, de enveredar pela via neo-colonial nas suas relações com as possessões africanas, à semelhança das práticas das demais potências coloniais europeias.

  Essa incapacidade congénita radicava na própria condição periférica, de atraso, de subdesenvolvimento e de dependência de Portugal em relação a outras potências capitalistas, verdadeiramente imperialistas, como o próprio Cabral constata, em teórica sintonia com as teorias marxistas de Samir Amin sobre o centro e a periferia capitalistas.

  Segundo a lúcida análise de Amílcar Cabral, para Portugal e as suas classes dominantes era de importância vital a manutenção do monopólio da posse colonial dos seus territórios africanos e ultramarinos.

Um poder político autoritário, de feição e natureza fascistas, uma sociedade portuguesa genericamente racista e profundamente convicta e diariamente convencida da “missão civilizadora” de Portugal em África, uma esquerda metropolitana inoculada, em grande medida, com os mitos da grandeza imperial de Portugal, bem como a existência de importantes comunidades de colonos brancos em Angola e Moçambique e de importantes interesses roceiros em S. Tomé e Príncipe só podiam contribuir para o agravamento da propensão do Governo português para a intransigência anti-negocial.

   O valor geo-estratégico da posição meso-atlântica e peri-africana de Cabo Verde, a importância de Angola e Moçambique e dos seus recursos naturais no xadrez da África Austral e dos desafios mundiais colocados no quadro da Guerra Fria pelo conflito Leste/Ocidente teriam sido certamente factores muito susceptíveis de optimizar as possibilidades do Governo português no sentido da angariação de largos apoios entre os seus aliados da NATO.

   Mesmo quando algumas das colónias portuguesas pareciam prescindíveis e descartáveis, era inaceitável para Portugal abrir mão delas. Isso devia-se fundamentalmente ao eventual efeito dominó que a nominal desvinculação colonial de uma ou de mais províncias ultramarinas podia provocar no conjunto do sistema colonial português.

  A irrupção desse efeito dominó era muito provável, mesmo se a desvinculação de uma ou de mais províncias ultramarinas tivesse que ocorrer no quadro de “independências brancas”, como, aliás, seria recorrentemente perspectivado por algumas franjas de colonos e seus descendentes em Angola e Moçambique e viria a ser experimentada, depois, pela Rodésia de Ian Smith e encarada sobretudo como derradeira alternativa às eminentes independências dos povos africanos e das suas maiorias negras. 

 A intransigência do Governo português tinha sido posto à prova por Amílcar Cabral, quando, em Memorando de 1960, instara o mesmo Governo a encetar urgentes negociações com os movimentos independentistas com vista à implementação de mecanismos políticos e institucionais, propiciadores de uma transição pacífica para a independência.

Ressalta no Memorando então enviado ao Governo português pelo PAIGC a pugna pelo desmantelamento da polícia política, a PIDE, e das forças militaro-policiais de repressão colonial-fascista e pela prévia instauração dos direitos fundamentais e das liberdades democráticas (como "liberdade de pensamento, liberdade política, liberdades de reunião, de associação, de formação de partidos políticos e de sindicatos, liberdade de imprensa, direito de voto", para utilizar as exactas expressões constantes do próprio Memorando), bem como a institucionalização de procedimentos e mecanismos democráticos e pluralistas como pressupostos e elementos integrantes dos processos de resolução do conflito colonial e de transição pacífica e democrática para a independência.

Entre esses mecanismos e procedimentos, avulta a realização de eleições livres e gerais (isto é, por sufrágio universal, directo e secreto) para as Câmaras de Representantes dos povos da Guiné e Cabo Verde, as quais, depois de devida e formalmente constituídas, se encarregariam da determinação do futuro político das duas províncias ultramarinas. Nesta óptica e segundo a proposta constante do supra-referido Memorando, os representantes da Guiné e de Cabo Verde, eleitos democraticamente para as respectivas Câmaras e reunidos no seio de um Parlamento conjunto dos dois territórios, deveriam pronunciar-se sobre a união orgânica entre a Guiné e Cabo Verde.

 Caso a decisão fosse favorável à união orgânica dos dois territórios, o Parlamento conjunto transformar-se-ia no órgão legislativo supremo da Guiné e Cabo Verde, do qual emanaria o poder executivo.

 Caso os membros das Câmaras de Representantes se pronunciassem em sentido desfavorável à união orgânica dos dois territórios, as mesmas deveriam constituir-se em Assembleias Nacionais dos respectivos territórios e assumir-se como órgãos legislativos supremos, dos quais deveriam emanar os executivos nacionais, respectivamente da Guiné e de Cabo Verde.  

 O silêncio em relação às propostas pacifistas e democráticas, acima referidas, e a paranóia do Governo salazarista no sentido da preservação, a qualquer custo, do império colonial, vieram consolidar as convicções de Amílcar Cabral quanto à inevitabilidade da luta armada como a única via para a liquidação total do colonialismo português. 

  Deste modo, tornou-se, igualmente, possível a plena responsabilização do poder colonial pelas mortíferas consequências necessariamente advenientes de uma guerra que, conforme rezam as crónicas relativas a esse período de intensa repressão colonial-fascista, se tornara inevitável em face do sangrento desfecho da via urbana e pacífica de contestação anti-colonial, inicialmente experimentada pelos nacionalistas africanos e cuja inoperância ficou ilustrada, de forma por demais trágica, no massacre de Pidjiguiti, de 3 de Agosto de 1959.

Neste contexto, o princípio cabraliano da unidade da Guiné e de Cabo Verde agiganta-se não só como a principal marca identitária do PAIGC, enquanto movimento de libertação bi-nacional, mas também como o recurso principal da sua estratégia político-militar para a definitiva liquidação do colonialismo português.

É igualmente incontestável a permanente pugna de Amílcar Cabral pelo princípio da unidade Guiné-Cabo Verde, mesmo fora do contexto e das necessidades específicas de uma guerra de libertação nacional de longa duração.

Tais guerras são, consabidamente, muito exigentes no que se refere não só à bravura e à dedicação do povo combatente - diária e impiedosamente sacrificado-, dos simples guerrilheiros e dos comandos político-militares de nível intermédio, como também no que respeita à sagacidade da sua direcção político-miliar e da sua superior orientação estratégica.  

No entanto, cabe precisar melhor:

a) Num período anterior à opção pela luta armada (de algum modo evidenciado no Memorando acima referenciado), são as fragilidades estruturais de Cabo Verde, a insignificância numérica de uma pequena burguesia guineense e a forte presença caboverdeana em vários sectores nevrálgicos da província ultramarina portuguesa (a qual, relembre-se, outrora fora parte integrante da colónia de Cabo Verde) que parecem explicar a unidade Guiné-Cabo Verde como uma das possíveis opções pós-colonias dos povos dos dois territórios.

b) Já na expectativa da emergência formal dos Estados soberanos da Guiné e Cabo Verde enquanto resultado mais do que provável da luta armada de libertação nacional conduzida na Guiné-Bissau e das suas previsíveis consequências políticas (como, aliás, testemunha o seu testamento político, isto é, a mensagem de ano novo de 1973), Amílcar Cabral parece encarar a implementação pós-colonial do princípio da unidade Guiné - Cabo Verde como primacialmente fundada na passada unidade histórica e administrativa entre os dois territórios, na actualidade da unidade de acção combativa no seio do PAIGC bem como na pós-colonial complementaridade económica, política e estratégica entre os dois países.

     Pode-se, pois, concluir que, em ambos os casos, considera Cabral que a concretização pós-colonial da união orgânica dos dois povos e a cabal implementação do princípio que perfez a identidade política e doutrinária do PAIGC fundar-se-iam nos laços históricos e de sangue entre as populações dos dois territórios coloniais e na complementaridade entre os dois países, visariam o desenvolvimento, a “felicidade e o progresso” dos dois povos e dependeriam, em última instância, da vontade soberana dos mesmos povos e do que pudessem expressar em sentido favorável ou desfavorável à mesma união orgânica, através de consulta democrática directa ou mediante decisão dos respectivos órgãos soberanos e representativos.   

Tal como propugnava na sua abordagem da questão da futura e eventual construção de uma pátria africana binacional e dos seus objectivos desenvolvimentistas e humanistas, Cabral também considerava a unidade de acção de guineenses e caboverdianos e os graus necessários que a tornariam operacionalmente eficaz como tendo carácter utilitário e instrumental em relação ao fim imediato da luta político-armada (constante, por isso, do programa mínimo do PAIGC) e que consistia na obtenção das soberanias nacionais dos dois países e de cada um deles em separado.

  Embora instrumental, o princípio da unidade Guiné - Cabo Verde demonstrar-se-ia contudo como de valor estratégico para o êxito da luta político-armada contra o poder colonial, tal como, aliás, os factos viriam a comprovar, quer antes quer depois do assassinato do genial líder pan-africanista.

Por isso, o princípio da unidade Guiné-Cabo Verde constituiu, desde muito cedo, o alvo principal dos ataques dos inimigos político-militares e dos adversários políticos e ideológicos do PAIGC.

Como referido nos textos anteriormente publicados: ”força principal do PAIGC, o princípio unitário podia porém, tornar-se, dialecticamente, no seu calcanhar de Aquiles e essencial e fatal fraqueza”.

Por isso também, o lugar de destaque que a contestação do princípio da unidade Guiné - Cabo Verde ocupou nos planos do golpe congeminado pelas autoridades portuguesas e pelos seus aliados guineenses e tragicamente concretizado no assassinato de Amílcar Cabral, esse reconhecido estratega, teórico e líder político, que, apesar da genial grandeza da sua obra, quis que a mesma fosse compreendida como o legado de “um simples africano que quis viver a sua época e saldar a sua dívida para com o seu povo”.

Lisboa, 5 de Abril de 2007 (revisto em 19 de Janeiro de 2008)

JOSÉ LUÍS HOPFFER C. ALMADA 

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* Jurista e poeta Cabo-Verdiano

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