Novembro de 2004
Nota ao leitor
Este trabalho não se pretende exaustivo. Ele apenas indica referências que poderão ser o ponto de partida para um estudo mais completo e actualizado, uma vez que se refere unicamente ao panorama literário guineense até 2000. A limitaçao das fontes que foi possível consultar, explicará a parcialidade da abordagem e desde já as minhas desculpas pelas omissões involuntárias.
Com a preocupação de paliar a estas insuficiências, não deixarei de completar este trabalho à medida que for tendo acesso a mais informações. Por outro lado, o desafio fica aqui lançado a eventuais colaboradores interessados em aprofundar e completar o tema.
Dentre as antigas colónias
portuguesas, a Guiné-Bissau é o país onde mais tardiamente a literatura se
desenvolveu devido ao atraso do aparecimento de condições socio-culturais propícias
ao surgimento de vocações literárias. Esse atraso deveu-se sobretudo ao facto
da Guiné ser uma colónia de exploração e não de povoamento, tendo estado por um
longo período sob a tutela do governo geral da colónia de Cabo Verde.
Poderemos distinguir
quatro fases na literatura da Guiné em função do seu conteúdo: uma primeira
fase anterior a 1945, uma segunda entre 1945 e 1970, uma outra entre 1970 e o
fim dos anos 1980 e finalmente a fase iniciada na década de 1990.
Durante este período apenas uma
figura guineense se destaca : o Cónego Marcelino Marques de Barros que
deixou trabalhos no domínio da etnografia, nomeadamente “A literatura dos
negros” e uma colaboração com carácter literário dispersa em obras diversas. A
ele se deve a recolha e a tradução de contos e canções guineenses em diferentes
publicações e numa obra editada em Lisboa em 1900, intitulada “Contos, Canções
e Parábolas”.
II. O período entre 1945 e 1970
Uma poesia de combate
É neste período que surgem os
primeiros poetas guineenses: Vasco Cabral e António Baticã Ferreira. Amilcar
Cabral, com uma dupla ligação à Guiné e Cabo Verde, faz também parte desta
geração de escritores nacionalistas. A literatura deste período caracteriza-se
pelo surgimento da poesia de combate
que denuncia a dominação, a miséria e o sofrimento, incitando à luta de libertação.
Embora os primeiros poemas de
Amilcar Cabral revelem um autor cabo-verdiano, a maior parte da sua obra
literária é dominada por um cunho universalista, marcada pela contestação e
incitação à luta:
« Ah meu grito de revolta que percorreu o mundo
que não transpôs o mundo
o Mundo que sou eu !
Na minha garganta !
Na garganta mundo de todos os Homens »[iii]
Vasco Cabral é certamente o
escritor desta geração com a maior produção poética e o poeta guineense que
maior número de temas abordou. A sua pluma passa do oprimido à luta, da miséria
à esperança, do amor à paz e à criança.... Inicialmente com uma abordagem
universalista, a sua obra se orienta, a partir dos anos 1960 para a realidade
guineense[iv].
Em 1981, publicou o seu primeiro livro de poemas intitulado “A luta é a minha
primavera”, obra que reúne 23 anos de criação poética entre 1951 e 1974. Esta
obra foi ulteriormente publicada pela União Latina numa versão trilingue português,
francês e romeno.
Citação:
« Mãe África
Vexada
Pisada
calcada até às lágrimas
confia e luta
e um dia a África será nossa… »[v]
« …Ah !
Comme il me plairait
d’embrasser
sur la bouche l’aurore
et de
promener mes doigts
dans
la chevelure de l’avenir
pour
que paix et liberté
soient
universelles. »[vi]
Uma
literatura exclusivamente poética: da poesia de combate à poesia intimista
Com a independência do país,
surge uma vaga de jovens poetas, cujas obras impregnadas de um espírito
revolucionário, manifestam um carácter social. Os autores mais representativos
são: Agnelo Regalla, António Soares Lopes (Tony Tcheca), José Carlos Schwartz,
Helder Proença, Francisco Conduto de Pina, Félix Sigá.
O colonialismo, a escravatura e
a repressão são denunciados por esses autores que, no pós independência
imediato apelam para a construção da Nação e invocam a liberdade e a esperança
num futuro melhor. O tema da identidade é abordado através de diferentes
situações: a humilhação do colonizado, a alienação ou assimilação e a necessidade de afirmação da
identidade nacional.
Note-se porém que a
questão de identidade não é apresentada como um factor de oposição entre o
indivíduo e a sociedade na qual este evolui. Ela é analisada como um conflito
pessoal do indivíduo, que consciente do seu desfasamento cultural em relação à
sociedade de origem, procura identificar-se com as suas raízes, da qual foi
afastado pela assimilação colonial. Por conseguinte, nesta abordagem não se põe
em causa a pertença do indivíduo à sociedade em questão.
Embora o recurso ao
crioulo seja marginal, os autores afirmam-se como cidadãos africanos
Vejamos :
Agnelo Regalla (tema do
assimilado)
Fui levado
a conhecer a nona sinfonia
na música
Dante, Petrarca e Bocácio
na literatura
…
Mas de ti mãe África ?
Que conheço eu de ti ?
a não ser o que me
impingiram
o tribalismo, o subdesenvolvimento
e a fome e a miséria como complementos…/[vii]
Helder Proença (temas: reconstrução e esperança)
« …É assim que vamos tecendo as nossas manhãs
de ferro e terra batida
são as cores da nossa vida
onde a juventude se forja
- ardente e gloriosa no peito
palpitante do futuro - … »[viii]
As primeiras publicações
poéticas surgem em 1977 com a edição da primeira antologia « Mantenhas
para quem luta », editada pelo Conselho Nacional da Cultura. No ano
seguinte, é publicada a “Antologia dos novos poetas / primeiros momentos da
construção”. Estas duas obras consagram uma poesia que instiga à reconstrução do jovem país.
Ainda em 1978, Francisco Conduto de Pina publicou o seu primeiro livro de poemas “Garandessa di nô tchon” e Pascoal D’Artagnan Aurigema editou ‘Djarama”.
Helder Proença publicou em 1982 « Não posso adiar a palavra » com duas obras poéticas.
Em 1990, surgiu uma nova
colectânea poética, a “Antologia Poética da Guiné-Bissau” editada em Lisboa
pela Editorial Inquérito, reunindo obras de quinze poetas, dos quais a maioria
produz ainda uma poesia característica desta época.
IV. A partir da década de 1990
Uma poesia mais intimista.
O desencantamento dos sonhos do
pós-independência imediato fez com que a euforia revolucionária desse lugar a
uma poesia que se tornou mais pessoal, mais intimista, com a deslocaçao dos
temas Povo-Nação para o Indivíduo. Outros temas passaram a inspirar a criação
literária, tais como o amor. De entre os seus autores citemos: Helder Proença,
Tony Tcheca, Félix Sigá, Carlos Vieira, Odete Semedo.
« Quisera
nesta vida
… afagar teus cabelos
sugar o doce dos teus olhos
transportar em arco-íris
o néctar da tua boca
e juntos caminharmos
ante a ânsia e o sonho
… »[ix]
« A vida
nasce de gotas de Amor
-
a morte
acontece no tempo
entre mim e a vida
paira um vácuo
-
com
sorriso
aguardo o destino[x].
Embora o português continue a
ser a língua dominante na poesia guineense, o recurso ao crioulo tornou-se mais
frequente, quer pela escrita em crioulo, quer pela utilização de termos e
expressões crioulas em textos em português. Empregando o crioulo, os autores
põem em evidencia a riqueza metafórica dessa língua,
profundamente enraizada na cultura popular.
Odete Semedo, que utiliza tanto o português como o
crioulo, reivindica pertencer a duas culturas:
« Em que língua escrever
as declarações de amor ?
em que língua contar as histórias que ouvi contar ?
… Falarei em crioulo ?
Falarei em crioulo !
mas que sinais deixar aos netos
deste século ?
ou terei que falar nesta língua
lusa
e eu sem arte nem musa
mas assim terei palavras para
deixar.. . »[xi]
Várias são as publicações que
dão conta destas inovações na literatura bissau – guineense: « O Eco do Pranto » de Tony Tcheca
em 1992, uma antologia temática sobre a criança, editada pela Editorial
Inquérito em Lisboa ; « O silêncio das gaivotas » em 1996, o
segundo livro de poemas de Francisco Conduto de Pina ; « Kebur – Barkafon
di poesia na kriol », uma recolha de poemas em crioulo, editada pelo
Instituto Nacional de Estudos e Pesquisa (INEP) em 1996 ; « Entre o
Ser e o Amar », uma recolha bilingue português-crioulo de poemas de Odete Semedo, publicada também pelo INEP em
1996 «
Noites de insónia em terra adormecida », um outro livro de poemas de Tony
Tcheka publicado também em 1996 e « Um Cabaz de Amores - Une corbeille d’amours”, recolha
bilingue português-francês de poemas de Carlos Edmilson Vieira, publiacada em
1998 pelas Editions Nouvelles du Sud em Paris.
As primeiras bandas
desenhadas de Fernando Júlio, exclusivamente em crioulo, apareceram na década
de oitenta. Trata-se essencialmente de sátiras sociais que tiveram um grande
sucesso. A música, onde a poesia crioula tem quase a exclusividade, foi também
marcada pela exultação da reconstrução nacional.
Finalmente a prosa!
Foi apenas em 1993 que a prosa
aparece na literatura contemporânea bissau-guineense. Foi Domingas Sami que
inaugurou este estilo com uma recolha de contos « A escola » sobre a condição feminina na
sociedade nacional.
Em 1994, surge o primeiro
romance de Abdulai Silá, « Eterna Paixão , que publicou outros dois
romances: « A última tragédia », traduzido para francês e
« Mistida » em 1997. Na sua obra Silá põe em destaque a coabitação na
sociedade colonial das duas comunidades presentes, a colonizadora e a
colonizada. A transição para uma sociedade pós-colonial onde uma nova elite
saída da luta de libertação se instala no poder, fazendo contrastar o seu
discurso revolucionário com uma prática desastrosa na governação do país, é
visitada pela pluma atenta do escritor. O seu romance “Mistida” publicado um
ano antes do início da guerra civil de 1998/1999 é considerada pelos críticos literários como uma obra
profética.
Em 1997, Carlos Lopes, autor de
numerosas obras de caracter histórico, sociológico e político, inaugura a sua
incursão na literatura nacional com a publicação de “Corte Geral”, uma recolha de
crónicas, na qual, com muito humor, descreve situações reveladoras do
surrealismo que caracteriza a sociedade guineense de todos os tempos.
Um outro escritor se impõe em
1998 na cena literária : Filinto Barros, com o seu primeiro romance “Kikia
Matcho », que mergulha o leitor no mundo mágico e místico africano,
abordando a vida decadente da capital nos anos 1990 e o sonho falhado que
representa a emigração.
Em 1999, Filomena Embaló
publicou também o seu primeiro romance, “Tiara”, que levanta o véu do delicado
tema da integração familiar e social no seio da própria sociedade africana.
Carlos Edmilson Vieira, em
2000, editou « Contos de N’Nori », uma recolha de contos que evocam
lendas e costumes populares, recordações de brincadeiras da juventude e as
vicissitudes sociais e políticas da sociedade guineense.
Constata-se que a literatura
contemporânea bissau-guineense, nas suas diversas formas, tem uma
constante : pela pluma dos seus escritores, ela retrata as desilusões, os
medos e as aspirações da população perante a situação política, social e
económica que prevalece no país.
Notas:
i Aristides Pereira,
« Guiné-Bissau e Cabo Verde – Uma Luta, um Partdido, Dois Países »,
Notícias Editorial, Lisboa, 2002
[ii] « Aua », 1934 ; « O negro uma alma », 1935 ;
« Rumo ao degredo », 1939 e « A revolta », 1945.
[iii] Poema : « Poema », Antologia Poética da Guiné-Bissau,
Editorial Inquérito, 1990, pág. 39
[iv] Fernando J. B. Martinho, no Prefácio da primeira edição de « A luta é
a minha primavera »
[v] Poema : « África ! Ergue-te e caminha » Antologia
Poética da Guiné-Bissau, Lisboa, op. c. pág. 49.
[vi] Poema « Desabafo » (Confidence), extrait de « A luta é a
minha primavera », version trilingue, pág. 236
[vii] Poema : « Poema de um assimilado », Antolologia poética da
Guiné-Bissau, op. c. Pág. 118
[viii] Poema : « Assim respira a minha Pátria » Antologia Poética
da Guiné-Bissau, op c. page 84
[ix] Tony Tcheca, « Ânsia e sonho », 1981, Antologia poética da Guiné-Bissau, op.c. pág. 151
[x] Francisco Conduto de Pina, « A vida », 1996, O Silêncio das Gaivotas, Bissau, Centro Cultural Português,
1996
[xi] Odete Semedo, « Em que Língua Escrever ? », Entre o Ser e o
Amar, INEP, Bissau 1996, pág. 11
BIBLIOGRAFIA
“Antologia
Poética da Guiné-Bissau”, Editorial Inquérito, Lisboa, 1990
Carlos
Edmilson Vieira, “Contos de N’Nori”, Edição do autor, Bissau, 2000
Carlos
Edmilson Vieira, “Um Cabaz de Amores/Une corbeille d’amours”, Edições Nouvelles
Sud, Ivry Sur Seine, 1998.
Carlos
Lopes, “Corte Geral”, Editora Caminho, Lisboa, 1997
Elisabeth
Monteiro Rodrigues, “Guinée-Bissau, une littérature en devenir”, Africultures
n°26, Março de 2000
Francisco
Conduto de Pina, “ O Silêncio das Gaivotas”, Edição do Instituto Camões-Centro
Cultural Português de Bissau, 1997
“Kebur-Barkafon
di poesia na kriol”, INEP, Bissau, 1996
Leopoldo
Amado, “A Literatura Colonial Guineense”, Revista ICALP, vol.20 e 21,
Julho-Outubro de 1990, 160-178
Manuel
Ferreira, “Literatura Africana dos Países de expressao portuguesa I”,
Biblioteca Breve
Moema
Parente Augel, “Lembrança e Olvido nas Literaturas Afrobrasileiras e
Guineense”, Universidade de Bielefeld, Alemanha, www.geocities.com
Odete
Semedo, “Entre o Ser e o Amar”, INEP, Colecção Literária Kebur, Bissau, 1996.
Russel
G. Hamilton, “A Literatura dos PALOP e a Teoria Pós-colonial”, Universidade de
Vanderbilt, E.U.A., www.geocities.com
Vasco
Cabral, “A Luta é a minha Primavera”, União Latina, Paris 1999.
VAMOS CONTINUAR A TRABALHAR!
Projecto Guiné-Bissau: CONTRIBUTO