REFLEXÕES DE UM NACIONALISTAVA MINHA HERANÇA OU QUESTÃO GUINEENSE 2
PARTE I
A MINHA INDIFERENÇA OU UM PAÍS OCUPADO
“Todo reino dividido contra si mesmo é devastado; toda cidade ou casa, dividida contra si mesmo não subsistira” Mateus 12:25 Novo Testamento
Fernando Jorge Pereira Teixeira * Queluz 17 de Abril de 2010
O maior dos Presidentes americanos Abraham Lincoln, utilizou esta passagem do Livro dos Livros no seu mais famoso discurso (a 19 de Novembro de 1863) no Cemitério Militar de Gettysburg, Pensilvânia, em plena guerra civil americana para dizer aos seus concidadãos que "uma casa dividida, contra si mesma, não pode permanecer". Naquela altura a América estava dividida numa sangrenta fratricida guerra entre os que queriam acabar com a escravatura e aqueles que queriam que tudo ficasse na mesma. Cito Abraham Lincoln por duas razões, a primeira tem que ver com o facto de ele (que não era um radical de nenhuma maneira) ter dito que essa guerra era justa e por isso, mesmo que tivessem “de destruir tudo que o trabalho escravo tinha criado durante séculos” - quer dizer quase todo o País -, pela da causa de liberdade do homem negro (escravo), continuariam essa luta, pois ele acreditava que “todos os homens nascem e são criados iguais por Deus”. A segunda razão tem a ver com a analogia entre o que se passava nessa grande nação e o que se passa no nosso. Nós também vivemos numa “casa dividida contra si mesmo” e como tal “não podemos permanecer”. Também em breve travaremos uma luta entre “os que querem que tudo fique na mesma” e os que querem que por fim os homens tenham dignidade nesta terra. Mesmo que tenhamos de destruir tudo, do pouco que existe, que foi criado pelos nossos pais durante séculos, que seja. Nós guineenses, não vale a pena esconde-lo, também somos uma nação dividida; dividida contra si mesmo; e mais que isso, somos uma nação que luta contra si mesmo, contra os seus filhos, contra a herança dos seus pais. Tenho escrito sobre coisas que entendo serem transcendentais, a margem dos acontecimentos políticos diários, que acho de certa forma irrelevantes para um propósito superior, embora o bater de corações de muita boa gente é compassado por eles. Mas quem me acompanha e entende o meu pensamento, sabe que simplesmente nada que acontece no meu país é “surpresa” para mim; e digo isto sem nenhuma modéstia falsa; sabendo que as diferentes formas de prejudicar o País - actos oficiais de diferentes actores e players políticos ou feitos particulares de uma ou outra pessoa - não posso prever, mas na tendência e essência das coisas consigo penetrar. E todos nós conseguimos penetrar se pararmos de olhar apenas para os efeitos e irmos procurar causas.
Para mim é totalmente indiferente ou irrelevante a nomeação de um Ministro, Procurador-geral, Presidente de Tribunal, Secretário de Estado, Chefe de Estado-maior das Forças Armadas, Director Geral ou a exoneração de outros tantos. Sei que no cômputo geral isso não faz nenhuma diferença básica no rumo ao descalabro que estamos seguindo obstinadamente a dezenas de anos. Muito menos fazem qualquer diferença os discursos, declarações e juras que vão sendo debitados há dezenas de anos: 99% desses depoimentos é puro lixo e passados uns dias ninguém se lembrará deles, alem de que não servem e nem servirão absolutamente para nada.
Por isso não perco tempo em criticar ou comentar esses actos absolutamente nocivos, disparatados e vezes vergonhosos para a Nação. As brigas de “gangs”, os “fait divers”, a brutalidade, imbecilidade e boçalidade não merecem que se fale deles nestas páginas em que objectivo é enaltecer a Nação e ser “seu bardo e poeta” nesta canção de amor. Infelizmente ser cantor das tristezas e desgraças de um povo só é bonito depois de as tristezas passarem.
Para que me interessa esta Nação? Esta Nação que não é nossa; que não é de nenhum Guineense honesto, livre (mesmo que apenas intelectualmente) e amante do seu país; pois nenhum Guineense com algum valor identifica-se com o que ela é neste instante. E eu quero amar a minha Pátria, terra dos meus avós e pais, como ela é (como ela seria na verdade) com os seus heróis e mártires e não como ela é actualmente, transformada em imundície por patifes.
Para que me interessa as eleições, a democracia, a “liberdade”, etc., quando sei que todo o esforço de um povo, toda a luta de meses ou anos pelos seus sonhos e candidatos, todas as esperanças depositadas, podem ser destruídos numa meia hora por “qualquer pessoa”? Aqui quando digo qualquer pessoa é isso mesmo que quero dizer; qualquer mentecapto.
Temos que saber sem nenhuma dúvida - que com estas chefias que temos nas Forças Armadas – nós não temos um Exército Nacional. Nós somos apenas um País ocupado militarmente por um exército “estranho e invasor” contra o qual devemos lutar com todas as nossas forças.
Ocupados e reféns de um poder militar, que conforme as circunstancias, utiliza diferentes políticos, que depois descarta quando já não servem os seus interesses. Quem agora é cativo não são as Forças Armadas é o poder politico. Mas isso também aconteceu por força da instrumentalização dos militares por políticos irresponsáveis e dos acontecimentos políticos que se passaram nesta terra desde o 14 de Novembro; O resto foi se acentuando depois com o 7 de Junho e as suas consequências e sequelas, até hoje. E hoje o feitiço virou-se contra o feiticeiro. Já não são os políticos que vão usar as Forças Armadas conforme os seus apetites (para a nossa desgraça) mas é o contrário (também para a nossa desgraça). Eu posso “não ver” a diferença substancial entre torturar Paulo Correia, Nino Vieira, Veríssimo Seabra, Melciades Fernandes ou Zamora Induta (para não escrever mais uma centena de nomes) partindo do princípio Bíblico de que “quem com ferro mata com ferro morre” ou mais prosaicamente “quem sai a chuva é para se molhar”, pois aqui não é o sítio para escrever um tratado sobre a nossa “violência intrínseca” na resolução de contradições, de que já falei antes. Mas não posso deixar de falar, quando um elemento desse “estranho exército de ocupação” ameaça de morte a população; aqui ultrapassaram todas as marcas; saímos do mundo real, para cairmos no surrealismo mais completo. Não sei se as palavras desse elemento devem ser tomadas, como nosso povo diz, por “nocentasco” ou por “estupidez”, pois não há nenhum exército tão poderoso que possa lutar contra o seu próprio povo, ou apenas contra todo um povo se esse povo decidir morrer pela sua liberdade e dignidade. Pois se temos três mil homens no exército e se só o povo de Bissau, decidir morrer para acabar com esse exército, acaba com ele mesmo que for apenas com as mãos nuas. Pois é preferível morrer lutando do que ver a nossa Pátria desrespeitada, vilipendiada e destruída. E se os militares, em vez de matarem uns aos outros, decidirem começar a matar o povo, tarde ou cedo vão ter que pagar: eles, suas famílias, seus filhos, netos e aqueles que legitimaram os seus bárbaros actos, aceitando as suas constantes afrontas - por medo ou pusilanimidade - acreditando que assim os apaziguaria. Cada acto de cobardia, do poder político, faz crescer a sua megalomania e apetite. E quando as coisas explodirem e começar a “ultima Guerra, a Guerra final de Bissau”, será olho por olho e dente por dente. E acreditem que o ódio é o sentimento mais duradouro que há. Não é uma chama que precisa ser alimentada. Ele alimenta-se das suas próprias entranhas. E acreditem que se há um povo que tem motivos para odiar é este. E esse ódio não é só dirigido a certos militares, ela é extensível a muitos outros actores políticos sem vergonha que andam por ai.
As Forças Armadas, hoje em dia, são a única instituição Guineense que merece algum “respeito” além fronteiras. Um respeito misturado com algum temor e incompreensão. Mas isso não é um factor de somenos importância para um estadista com um pouco de visão. Um estadista que pegasse nestes soldados e os transforma-se no punho da nação e através dessa acção fazer deles verdadeiros soldados combatentes da causa nacional e não soldados políticos que são actualmente. Isto não canso de repetir, pois entendo que acima de tudo, os interesses vitais da Nação devem ser protegidos e a sobrevivência do povo é o meu maior e primeiro dever (dever de cada filho deste povo); por isso tenho que repetir aqui o que já disse dezenas de vezes: Temos que proteger as nossas Forças Armadas como a menina dos nossos olhos. Não permitir que seja destruído por lutas intestinais, corrupção, ajuste de contas e outros males. Um dia vamos precisar dele e quando esse dia chegar eles regressarão ao ventre da nação e serão os nossos filhos mais queridos.
Os militares em si não são um problema. São até parte da solução no meu “Edifício Nacional” que entendo forte e coeso e detentor de um porvir, que (acreditem no que vos digo), será maravilhoso. E vou buscar as palavras de Amílcar Cabral, que dizia que - era necessário “desenvolver melhores relações entre as forças armadas e o povo. Cada combatente deve ter a consciência que é um filho do povo, ao serviço do povo.” (…) Nenhum combatente nem responsável tem o direito de usar as nossas armas para fazer medo ao povo (…)”- para afirmar que acredito que a maior parte dos militares tem a “consciência que é um filho do povo, ao serviço do povo.” Essa certeza me vem dos tempos que era professor no “Liceu das FARP” e sabia quão patriotas eram.
Todo o cidadão que tenha dois dedos de testa, patriota ou não, sabe que este Estado é tão frágil que é quase fictício; que existem vários centros de poder; um tecido de interesses consubstanciado num sem numero de partidos, grupos, clãs, que nenhuma sociedade como a nossa aguenta. E nada poderá mudar a sério para melhor nos próximos tempos se estas realidades e pontos de partida não forem resolvidas, de uma maneira ou de outra. Cada um de nós alberga no seu peito um ódio profundo; ódio por terem destruído as nossas vidas pessoais, por terem destruído a nossa vida colectiva, por terem destruído a nossa terra, por terem destruído um povo e um sonho. Um ódio que nunca será apaziguado até ao fim das nossas existências. Eu vos exorcizo, eu vos imploro: não deixem o vosso ódio morrer. Alimentem o vosso ódio com a dor das vossas entranhas. E em verdade vos digo, já perderam tudo o que poderiam perder, apenas vos resta o vosso ódio. É o ódio que vos fará sobreviver a todas as desgraças que se abatem sobre vós e este povo. Odeiem, odeiem e odeiem uma vez mais. Odeiem com toda a força do vosso ser. Odeiem até que não exista mais nada em vós que não seja ódio. Acreditem que o dia da vossa vingança chegará, tarde ou cedo. E não tenham medo. Nunca tenham medo. Lembrem-se que a coragem é a maior das qualidades pois é ela é que garante todas as outras. E lembrem-se, de uma vez por todas, que mais vale morrer que viver na infâmia. Presidente Lincoln disse uma vez que “Um boletim de voto tem mais força que um tiro de espingarda”, mas ele não conhecia o meu País e nem entenderia se conhecesse; pois o que se passa neste país é tão vergonhoso que nem deve ser contado ou escrito, porque brada os céus.
Por isso penso que devemos “pensar a nação” para alem desses acontecimentos quotidiano e nessa base recusarmos a estupidificar-nos, recusarmos a ser pessoas anormais neste mundo em que todos os povos como nós são feitos de gente normal. E entender que a Nação não se resume a política e ao Governo. Devemos falar de cultura, de livros, de pintura, teatro, formação académica e tudo o resto que os seres humanos normais fazem e amam no mundo inteiro. Devemos contar as nossas histórias de vida, o que vivemos em cada momento da formação desta Nação. O que sentimos, o que choramos, o que amamos, o que perdemos e o que odiamos.
Eu nunca deixei de acreditar que temos que “pensar” a nação para além das desgraças com que temos que viver cada dia, sabendo que depois destas outras ainda se sucederão; temos que saber que cada povo, mesmo ainda desorganizado como o nosso, tem dentro de si a semente da sua própria redenção.
II
A DOR COM QUE VOU MORRER OU EXISTE UMA OUTRA NAÇÃO
“ (…) Um dia chegará o homem que vira construir (cumpu) a Guiné… “
Vendedor de fruta na feira de “Bandé”
Eu sei, com muita dor - a dor que vou morrer “se não chegar o homem”-, que a Nação Guineense como tal não existe. O Estado como entidade real e gerador do desenvolvimento, também não. A população dividida em várias etnias - sem uma liderança coesa, responsável, patriótica - não constitui uma base sólida, a raiz poderosa, por onde possa florescer a árvore Povo/Nação.
Também sei ainda que esta dor não é só minha; sei que como eu, sofrem milhares. Sei que estamos juntos nesta profunda revolta, pois o sofrimento comum une as pessoas. O nosso povo, formado por diversas tribos, teve de modo igual a mesma dose de sofrimento; pois o “nosso” Estado, seus dirigentes e servidores, durante dezenas de anos, na “distribuição da pobreza, do sofrimento e do subdesenvolvimento”, eram muito justos para com este povo: não discriminaram nenhuma tribo, nenhuma etnia, nenhuma classe e ninguém em geral. A todos ofertaram a miséria e a todos destruíram igualmente e irmãmente.
Como País, irresponsavelmente falhamos redondamente; não conseguimos criar na nossa sociedade, mecanismos objectivos facilitadores de um processo sã de interacção e integração das nossas diferentes classes, grupos sociais e de interesses rumo ao desenvolvimento.
Mas sei sem nenhuma dúvida que existe uma outra nação, que não esta, que faz manchetes nas rádios e televisões do mundo inteiro, sempre pelas piores razões, pelo seu atraso, pobreza, conflitualidade permanente e absoluta tristeza de actos singulares de alguns dos seus filhos.
Sei com toda a certeza que por baixo desta mascarada chamada Guiné-Bissau existe uma Guiné culta, lúcida, responsável e que ama os seus filhos. Acredito que debaixo deste povo ”submisso e servil” que aceita passivamente todos os males do mundo, existe outro; outro que escuta os meus lamentos, que se revê nas minhas exortações, outra Guiné que não perdeu esperança.
Acredito que um povo que lutou antigamente unido contra a dominação estrangeira e o colonialismo, lutou de novo unido debaixo do estandarte de Amílcar Cabral pela independência e de novo unido sofreu fome e miséria sem igual, vai estar unido na construção desta pátria. Por isso os meus escritos são dirigidos a essa Guiné lúcida. A esse povo e a sua elite. Principalmente a essa elite do nosso povo a que me dirijo. A essa elite que ainda não esta alienada, que ainda não esta corrompida, que ainda não se rendeu ao narcotráfico e a descrença; Que não deixou de acreditar.
Acredito inabalavelmente que um novo mundo esta ao virar da esquina por força do povo, por força dos que querem a mudança, por força de uma elite responsável. Essa elite que, apesar de tudo, ainda esta no País, sofrendo, mas sem a abandonar; essa elite que também esta nos quatros cantos do mundo, sonhando um dia voltar. A minha derradeira esperança reside nesta nessa elite, que como já disse antes, não é feita de gente de uma tribo ou de uma condição social. É feita de gente que domina a ciência. De quadros, de religiosos, de empresários, de lavradores, de professores, etc., etc., de todas as regiões e tribos, etnias, grupos sociais que compõem o arco-íris da nação
III
“ABÓ E QUIM?” OU CRIAR UMA NAÇÃO DO NADA
Como se pode construir uma Nação dormindo as dez horas da noite”?
Vasco Cabral Primeiro Conselheiro do Conselho de Revolução e Vice-presidente do Conselho de Estado
A esta pergunta do “camarada Vasco” não soube responder, mas ainda hoje, passados quase trinta anos continua a ressoar na minha cabeça. Estava eu e ele rodeado de quatro guarda-costas empunhando Akas, as duas horas da manhã, a frente da casa do Ministro Governador do Banco Nacional da Guiné. Tinha dezanove anos, era professor do Liceu, esperando uma bolsa de estudos; redactor da “Rádio Juvenil”, tinha ido entrevista-lo antes da sua viagem com o Vice-presidente do Conselho de Revolução Paulo Correia, no dia seguinte para as exéquias do Secretário-geral do Partido Comunista Soviético Leónidas Brejenev. Mas esta pergunta, feita em tom de indignação, deu-me o que pensar para o resto da minha existência. “De facto - como se constrói uma nação? - lembro-me de ter pensado nisso, quando sai da sua casa nesse dia, as quatro da manhã, descendo a Rua de Moçambique. São certos acontecimentos, isolados, como este que foram acontecendo na minha existência que nortearam o desenvolvimento do meu pensamento social, se assim posso dizer. Para não deixar de falar de extraordinários jovens professores que tive na altura como Tito Lívio, José Fadul, Titína Sousa, Huco Monteiro, Hélder Proença, Isaac Monteiro, Suncar Dabo, Simão Mendes e kumba Yala, e só cito alguns mas fazendo justiça a todos. Digo extraordinários porque jovens na flor da idade da inocência, imbuídos de um fervor revolucionário que desaguava no amor inegável que tinha pela sua nação e pelo povo, plantaram na nossa geração a semente que só não deu mais frutos, porque a raiz foi arrancada, infelizmente, sem esperar o tempo da colheita. Por isso antes de continuar as minhas reflexões sobre os “Signos da Nação da necessidade sua Mudança” pretendo nesta parte situar o meu leitor para que o resto das minhas ideias, adiante expostas, não seja entendida como aventureiríssimo político ou intelectual. Mas isto também para chegar no que quero que fique bem claro que tudo o que digo não se trata de revisionismo de qualquer tipo (nem histórico) mas questões de mais elevada ordem, do nosso interesse comum como povo.
Alem de que muita gente tem me perguntado “o que me move”? “Um projecto político”? “Apenas elevar o amor-próprio dos guineenses”? “Pretendes criar uma nação do nada”? Ou “como se realizam os teus projectos”, o “que é necessário fazer?”, “Criar um partido?” Serei o João Baptista pregando no deserto? Mas se for, a vinda do meu Cristo deve estar próxima, pois ninguém, nenhum povo, pode aguentar este estado das coisas indefinidamente por muito mais tempo.
Ou como, ano passado em Bissau, uma mulher que eu não conhecia (N. A.) - que depois de me ouvir, atentamente, a falar minutos seguidos, de forma indignada e até exaltada (tenho que reconhecer) sobre os males da nossa nação, - inopinadamente me perguntou “abó e quim?” ; respondi que “não era ninguém; era apenas “mais um filho indignado deste povo”. Ela me respondeu que não, que isso não basta: que quem assim fala, primeiro tem que dizer quem é, donde veio e para que veio… E só depois dizer o que tem a dizer. A autoridade com que falava me impressionou e achei que tinha razão (espero que ela leia isto um dia) e apresentei-me.
Não pretendo criar uma Nação do nada e nem pretendo criar uma nação dizendo aos Guineenses “amem-se uns aos outros”. Pretendo apenas dizer aos Guineenses que quando têm que matar um guineense, que o matem apenas e só pelo “bem da Nação” e que só pelo bem da Nação que é legitimo matar, quando necessário. Na Luta morreu muita gente justamente na frente de combate pelo “bem da Nação”; também morreu muita gente na retaguarda (justa ou injustamente) pelo “bem da Nação”. Quando nos dizem que a vida humana é sagrada, eu repondo que a vida de um elefante em extinção é mais sagrada que a vida de centenas de malandros que andam por ai a roubar e a matar seus semelhantes, como por exemplo os patifes que governam a República da Guiné aqui ao lado.
Mas falando de patifes, há monstros na historia humana como Estaline que pela imensidão de crimes cometidos me da náusea escrever o seu nome, mas tenho que o fazer para me entenderem: Durante a Segunda Guerra Mundial o filho deste ditador, Iakov, foi preso pelos alemães. Aconteceu algo que os Generais já o tinham alertado, pois na frente para onde o filho foi enviado (como qualquer outro soldado) era impossível aguentar o fortíssimo exército alemão. Mas algum tempo depois os próprios Alemães ofereceram a Estaline um acordo que consistia em trocar o seu filho por quatro generais Alemães presos. Os comandantes soviéticos contentíssimos foram dar a boa nova a Estaline. Este, impassível, disse que “não tinha nenhum filho chamado Iakov” (este ao saber disso matou-se). E explicou esta resposta pelo facto de que pela nossa nação, pelo nosso povo, temos que consentir sacrifícios mais elevados, inclusive a morte dos nossos filhos.
Este exemplo é para sublinhar o que venho dizendo sobre a questão de por a ordem de uma vez para sempre no país. Porque há gente que não me entende.
Da mesma forma quero apresentar-me neste sítio (site), onde disseram-me que para publicar só era preciso entregar uma fotografia e meus dados verdadeiros - de resto, pelo meu carácter, escrever sob pseudónimo seria violentar a minha personalidade - e teria inteira liberdade de publicar o que entendia, o que achei excelente. E não me arrependi, pois pelo que já me apercebi neste pouco tempo, é um sítio onde publicam muita gente com valor e com ideias certas e muitas vezes brilhantes. E independentemente de estar ou não de acordo com o que escrevem, percebo que são pessoas que se interessam e amam a sua pátria (para mim a medida do ser humano); gente que quer o bem do seu povo, gente que sofre, como eu, com o estado actual da Nação. E “armondade de cansera mas armandade de sabura”.
Também de vez em quando é preciso falar de outras coisas que não somente “política”. Hoje quero falar de outras coisas. Quer dizer da “política” e “outras coisas”. Quero que os jovens de hoje entendam como eram os jovens de ontem. Pois, já depois de terminar a licenciatura, dei aulas no Liceu Kwame N`Kruma, que nessa altura tinha uma falta gritante de professores para o curso complementar. Dei “geometria descritiva” e “psicologia” e notei uma falta de preparação total em jovens que já estavam a terminar o Liceu. Fruto de centenas de horas sem luz, centenas de greves de professores, ausência total de material didáctico, bibliotecas, laboratórios etc. Só esse facto já era péssimo, mas havia uma ausência quase total de “sentido de Pátria” de interesse pelo povo e pelo seu próprio devir. E era ainda o ano de 1991/92. Para vocês também que foram meus alunos antes e nessa altura dedico esta apresentação e páginas seguintes. Bem-haja meus alunos que acreditaram em cada palavra que lhes disse sobre o nosso destino comum. IV
O EMBRIÃO OU PARTE DO SONHO
“N`cana seta é enganano, Lua ki di nós… Se nó perto Lua nô ka ta quema, Lua ki di nôs”
José Carlos Schwarz
A minha “apresentação” deve servir, pois se for só para falar de mim, seria um exercício gratuito, desinteressante e até imodesto. Nesta apresentação quero falar de ideias, do meu conceito de Pátria e dar a minha contribuição, na medida do possível para a coesão da nossa Nação. Portanto através de parte do meu percurso de vida falar da “minha geração” e da sua responsabilidade histórica que nunca pôde cumprir. Neste momento todos nos independentemente do nosso tempo de vida temos responsabilidades acrescidas em relação ao futuro deste país. Mas faço um apelo especial a minha nossa geração, geração que jovem demais para participar na gloriosa luta de Libertação mas já com capacidade para compreender os seus motivos e vir a ser a geração dos continuadores da epopeia e do sonho. A primeira geração imbuída dos ideais ou apenas ideias de Cabral e da Revolução, nos primeiros Ciclos Preparatórios “livres” deste novo país.
Digo isto porque considero que fomos a primeira geração “livre” que diferente dos seus pais, cresceu “livre” num “país livre”. É certo que conhecemos o colonialismo na escola primária, mas por sermos ainda crianças, não nos marcou, como a geração mais velha; mas o facto de o termos conhecido era uma mais-valia. E era nosso dever futuro moldar este país e muda-lo, fazendo-o igual a nós. Bons livres e confiantes.
Vivemos um tempo glorioso, um tempo que a ninguém mais foi dado viver. Nós que com 11e 12 anos assistimos naquela tarde nos jardins da então Praça do Império, a chegada dos “heróis vivos”, quase deuses, vindos da Luta de Libertação; nos que éramos a geração onde as ideias revolucionárias tiveram maior penetração.Com 12 anos assistimos a chegada e acompanhamos o corpo de Amílcar Cabral a sua última morada (“n`bai enterro de Cabral”). Nós, que embora jovenzitos, sentimos a genuína tristeza pelo falecimento do nosso primeiro Primeiro-ministro, Francisco Mendes. Nós que choramos a morte do poeta e bardo maior do nosso povo José Carlos Schwarz.
Lembro-me do dia em que chegou o corpo de Cabral; estávamos no passeio a frente do Edifício dos Correios a vê-lo passar, com lágrimas nos olhos. Mas também sentimos o temor frio com as primeiras prisões e fuzilamentos. Vimos a fome a tomar conta do país pouco a pouco. Estes tristes acontecimentos pareciam ser o prelúdio do que estava para vir.
Já tínhamos a idade de compreender e éramos virgens e com a mente aberta, diferentes dos nossos pais que viveram em dois regimes que podiam comparar, nos não podíamos comparar. Não tínhamos termos de comparação. Éramos as “tais flores da nossa luta” o futuro da nossa novíssima nação e sabíamos isso. E por sermos de todas as tribos e grupos étnicos e nunca sentirmos essa pertença no nosso relacionamento (nem nas nossas brigas ou namoros da juventude nunca alguém era preterido por ser desta ou doutra etnia), éramos o tal embrião do homem novo “a tribal”, “não-étnico"; no fundo os primeiros frutos da visão de Cabral. Pois não fomos a luta, mas fomos o produto do resultado da Luta, se queremos o embrião do homem novo.
Éramos meninos, mas parte de um processo, em que acreditávamos genuinamente com uma fé inabalável. E mais uma vez tenho que explicar isto: Nós acreditávamos não por sermos fanático ou porque alguém nos doutrinava, mas por a teoria, a ideologia, a doutrina - subjacentes a construção desse novíssimo estado, - “serem verdades evidentes por si só”, sem necessidade de nenhuma explicação ou defesa. Alem que se nós não éramos ainda os realizadores do sonho, ou da transformação da utopia em realidade, já éramos parte do sonho feito realidade.
As vitórias do nosso povo eram as nossas vitórias e as tristezas também. Lembro-me da visita do saudoso Presidente Agostinho Neto (esse que através da “Sagrada Esperança” punha no papel toda a nossa alma, tudo que um dia queríamos dizer e não sabíamos como, que nós enchia de esperanças com o imortal poema “havemos de voltar”; ele que nós fazia soltar lágrimas dos olhos com “Mussunda Amigo” que nós fazia entender inocentemente que com os estudos, um dia, como os intelectuais, íamos afastar do nosso povo, da sua essência e do seu viver) pois estivemos lá para o ver e dançar ao som dos “Kussinguila”; nunca esqueci da inolvidável visita de Samora Moisés, estivemos lá para o ouvir falar da “armadilha” que o Presidente Luís lhe fez para ir falar a Juventude (embora eu e o Filinto Barros e Hélder Paquete fomos expulsos da sala do Comité Central na sede do PAIGC por um saudoso Dirigente do Partido, Lembro-me de ter de faltar a ultima e decisiva prova de matemática para ir ao aeroporto apertar a mão desse “símbolo da resistência” que era Yasser Arafat (tive que ir à extraordinária, pois o professor, um Português, chamado S. Martinho, não “estava para brincar as revoluções”).
Por isso antes de ir a questão dos “Signos Nacionais” e a necessidade da sua mudança, vou recuar no tempo e falar-vos de um período da nossa vida (o período que se desenrolou sob esses mesmos signos hegemónicos que formatavam o nosso entendimento e maneira de pensar) como Nação que durou escassos seis anos que ainda hoje é incensado por alguns e amaldiçoado por outros tantos. Um período em que a vida era vertiginosa, que os acontecimentos atropelava-se num “afã de fazer”, numa “azafama de realizar”, não importa como - os fins justificam os meios – e nem quando (se a conjuntura esta contra nós, tanto pior para a conjuntura); Hoje custa acreditar que foram só seis anos, tantos foram os acontecimentos e realizações. Umas felizes, outras menos felizes, outras funestas e algumas, soubemos depois, criminosas.
Neste momento que por fim a nossa geração esta a chegar ao poder, queria (e isso peço a Deus) que não decepcionem, como nós fomos decepcionados. Pois se eles tinham desculpas, aceitáveis ou não, nós já não temos. E não seremos perdoados nem pela história nem pelo nosso povo.
V
ANOS DE FORMAÇÃO OU A VERTIGEM DO PODER
“Áh Judite! Camaradas n`gana guintes…”
Dona de casa decepcionada com o Partido. Bissau, Bairro do Reino, 1979
Naquele tempo tornávamos adultos muito cedo, com dezoito dezanove anos tínhamos responsabilidades enormes e já tínhamos lido bibliotecas inteiras. Intelectualmente estávamos por nossa conta e risco. Hoje quando falo com jovens de vinte anos e lhes digo (exagerando claro) que com mais ou menos essa idade já tinha lido quase toda a Biblioteca Nacional sem esquecer dos livros do Centro Cultural Árabe Líbio eles não acreditam; mas não era só eu, a nossa geração (um dia falar-vos-ei intrinsecamente desse geração e desse tempo) lia muito. A nossa sede de conhecimento era enorme, quase faminta. Quando líamos Jorge Amado, não líamos só “Os capitães de Areia” líamos todos os livros de Jorge Amado que pudéssemos encontrar; quando líamos Lenine, líamos desde “As Teses de Abril” até ao “Imperialismo e Empiriocriticismo”, ou quando líamos Marx líamos desde a “A Ideologia Alemã” passando por “Ludwig Feurbach”, até ao volumoso “O Capital” que era diga-se muito difícil de tragar. Ou quando era Dostoevski era a totalidade da obra, dos “Humilhados e Ofendidos” ao “Irmãos Karamazov”, passando pelo obrigatório “Crime e Castigo”; foi assim que conhecemos Kafka, Faulkner, Zola, Gorki e dezenas de outros, como Vargas llosa ou Garcia Marques, Vivíamos a nossa vida na Guiné mas o nosso espírito vagava pelas ruas do mundo e pelos oceanos da terra procurando, procurando… Líamos romances, poesia e muita politica. Anos depois, entre os meus 20 a 22 anos vim a conhecer a Filosofia Marxista, a “Dialéctica” e as suas Leis, a sua “compreensão da história”. É desse tempo que me vem o hábito de nos meus escritos, usar de vez em quando a dialéctica (de base Hegeliana/Marxista), para analisar e compreender certos factos históricos relacionados com o meu povo. Mas este método científico, como qualquer outro (que eu resolva utilizar ou não), é apenas isso: um método. Um instrumento cientifico, objectivo, que as vezes utilizo subjectivamente e outras vezes até na brincadeira, para apresentação das minhas ideias. Discutíamos a pratica revolucionária do Partido e a própria ideologia (chegávamos a triste conclusão que já na altura havia os famosos desvios a linha revolucionária correcta), ou como bem resumiu esse tempo, D. Maria Godinho, com a sua imortal frase dirigida a sua comadre: “Há Judite! Camaradas n`gana guintes…” Esta frase por si só podia resumir o sentimento de desencanto que se apoderava pouco a pouco dos cidadãos face a prática política, económica e social do Partido. No dia-a-dia éramos confrontados com histórias e casos de desmandos, abusos, ma gestão e disparates. Havia um anedotário extenso de disparates protagonizados pelos dirigentes do Partido tanto no país como no estrangeiro. Essa fase foi a do nosso desencanto e o inicio do nosso cepticismo. Quando líamos o nosso herói, Amílcar Cabral, líamo-lo com espírito crítico (éramos nessa altura os únicos que tinham coragem de analisar e discutir Cabral, pois pela nossa idade ninguém nos levava muito à sério) e discutíamos a justeza das suas teses e pratica revolucionária. Separávamos o homem da obra (ou tentávamos) e discutíamos a questão da “grandeza histórica”, de Cabral ou de outros heróis tombados pela Pátria, uma questão que hoje sabemos muitíssimo mais complicado do que podíamos na verdade supor. Mas nós em particular - a minha geração em geral - passávamos por situações que na maior parte das vezes, com a formação que já tínhamos, sentíamos que o Partido tinha cada vez menos razão. Uma vez assisti a algo que dava razão ao sentimento dos nossos pais. Mas antes devo dizer que adorávamos cinema, a UDIB era quase a nossa segunda casa, o portal para o desconhecido mundo vindouro, que tinha como Caronte e porteiro o Sr. Inácio - que já conhecíamos desde a infância, - pois muitas vezes, nessa altura, sem dinheiro, tínhamos que o “fintar” para poder ver Sandokan ou Trinitá. Mas como dizia, uma vez fui ao cinema e assisti uma cena deveras curiosa: O bombeiro de serviço e o porteiro do balcão não queriam deixar a mulher (penso que era a mulher) do Secretario para a Organização do Partido José Araújo entrar com a sombrinha na sala, pois tal era proibido por motivos de segurança. Ele pediu para abrirem uma excepção mas os funcionários recusaram, argumentando que a lei era para ser cumprida. José Araújo, não estava para aturar isso e empurrou-os. Não sei se estes sabiam com quem estavam a discutir (quero crer que sabiam) mas não cederam e empurraram também; então o guarda-costas de José Araújo interveio de AK na mão. Isso foi, infelizmente, o suficiente para acalmar os ânimos. O homem lá entrou com a esposa num silêncio carregado de reprovação pelos presentes. Ainda me lembro, com desgosto, de ele estar vestido com uma camisa legós azul com a face de Cabral estampado. O incidente revoltou-me profundamente e fiz questão de dizer isso aos dois funcionários elogiando o seu desempenho, embora acho que não me entenderam na totalidade. No dia seguinte contei este caso ao Filinto Augusto - Este rapaz, nosso colega de carteira era talvez o intelectual, mais acabado da nossa geração; ainda me lembro que já naquela altura, era o único com que se podia discutir desde Sócrates até o Deng XiaoPing, sem esquecer de Noam Chomsky ou clássicos Russos como Tolstoi ou Turguenev. Com ele no mesmo momento se podia falar da ideologia do Pol Pot, o então sanguinário líder dos Khamers Vermelhos, ou do Abimael Guzmán, o misterioso "camarada Gonzalo", líder do mortífero Sendero Luminoso, ou de movimentos como Túpac Amaru, SWAPO, ANC, ZAPU OU ZANU. Com ele aprendi amar Alan Garcia do Peru e a odiar Pinochet do Chile. A condenar Bokassa e a adorar Tomas Sangara, a desprezar Samuel Doe e endeusar Nelson Mandela. Com ele subi a cordilheira dos Andes e andei no frio da Patagónia, atravessei o deserto de Saara, para chegar ao Lago Baikal. E do alto da pirâmide de Gizé para olharmos para muralha da China silenciosa que a nossa terra pouco a pouco se ia transformando. Nesse quintal do Bairro de Santa Luzia, debaixo da mangueira Fernandinho de Dona Bebe, fizemo-nos cidadãos do mundo, abstraindo-nos da estreiteza da nossa Guiné. Dali, sentados nessa pequena varanda do seu anexo ou na roda da fonte, condenamos e absolvemos ditadores e príncipes, heróis e traidores e de tal forma que nem a academia de Platão foi maior e mais plural que o quintal do saudoso Arnaldo Barros. - Lembro-me da condenação veemente dele (“vertigem do poder” como ele o definiu) da atitude do Secretario Nacional (ou seria Secretário Permanente?) do Partido; vindo dele para nós era um exemplo do mais nefasto, dos tantos que diariamente ouvíamos; pois vindos do próprio ideólogo do partido na altura ou como dizíamos o “Suslov” do PAIGC, este precedente e era gravíssimo como exemplo de uma certa “deriva” em que o poder tinha já entrado, que depois de iniciado tomou vida própria. Mas disso falarei depois. Este Filinto Augusto Freitas de Barros é o exemplo vivo do que este país fez com toda uma geração de jovens promissores que poderiam levar esta Nação até ao infinito se tivessem tido a oportunidade para tal. Hoje é uma pessoa destruída pela vida e pelo seu próprio país. Pelos que mandaram anos e anos neste País. A minha profunda revolta vem de tantos Filintos destruídos, de tantos quadros, intelectuais que dariam tudo que lhes fosse pedido, para o bem da sua pátria se a sua participação na vida da nação não fosse negada de várias maneiras possíveis. Negada ora por bandidos, ora por criminosos de delito comum, ora por assassinos ou gente sem escrúpulos. Não há maior dor que estudar, esforçar-se (e de que maneira, estudando debaixo dos candeeiros de rua, a luz das velas), terminar uma faculdade, para nada. Ser filho de um país que precisa de quadros como de pão para a boca e não poder desempenhar a sua profissão com alguma honra e dignidade. As lágrimas que aqui verto, a escrever este texto, são lágrimas de tanta gente que tanto podiam ter feito pelo seu povo e pátria. VI
A ELITE CRIOULA E O SEU 14 DE NOVEMBRO OU UM “GROGO FORTI SIMA NINO”
“Este Movimento Reajustador foi feito para acabar com as matanças, injustiças, nepotismo (…) Não tenho nenhuma ambição pessoal (…). “ João Bernardo Vieira, Bissau, Palácio da república, 1980
Lembro-me que quando o 14 de Novembro se deu (a mim apanhou-me a namorar atrás do actual gabinete do Primeiro Ministro) a minha namoradinha fugiu para casa assustada e eu curioso com os disparos, corri para a Avenida a tempo de ver uns tanques a passarem numa velocidade vertiginosa pelo seu peso, rumos a praça dos Heróis Nacionais. Os meus olhos ainda inocentes, não vislumbraram que nesses tanques da cor da esperança, que passavam por mim, ia o meu destino, o nosso destino. Este acontecimento foi o nosso acordar para a realidade da vida. Estávamos a terminar o Liceu com 17 ou 18 anos, discutíamos apaixonadamente cada comunicado, cada boato, cada facto de um modo muito livre, pois éramos essa parte da Nação que Cabral na verdade já tinha libertado, pelo menos intelectualmente. Estávamos acima das tribos. Esse conceito não nós dizia nada em termos de pertença. Éramos mandingas e cristons, fulas e papeis, cabo-verdianos e mandjacos, mancanhes e Bijagos, éramos o povo Guineense. Lembro-me de que no ambiente febril que se vivia de comícios, manifestações, decretos e contra decretos, percebíamos que se estava a fazer história nos nossos olhos e nós de certa forma fazíamos parte dessa história; Era simplesmente apaixonante. Recordo-me que nesses dias o pai de uma colega nossa foi nomeado Procurador-geral da Republica e no dia seguinte ao intervalo lhe disse Nelvina desculpa lá, com todo o respeito, mas o teu pai não tem competência para ser Procurador-geral da Republica; e ela sem se ofender (pois para nós já nessa altura não era uma questão de parente, tribo ou amigo era uma questão mais elevada, era a questão nacional) com toda a tranquilidade me respondeu simplesmente: E João Bernardo tem competência para ser Secretário-geral? Esta frase dessa menina de 16 anos definiu perfeitamente todo o momento político mais importante que vivíamos desde a Independência. Ninguém na verdade (ou salvo raras excepções) tinha competência para desempenhar as funções que assumiu depois do golpe. E se ninguém tinha competência, por obra de que milagre, esperávamos que as coisas melhorassem? Na nossa análise, Nino Vieira até podia ser Presidente da Republica (já que ele é que comandou o Golpe) mas ser Secretário-Geral para nós era uma heresia do tamanho do mundo. Porque em regimes como o nosso na altura, decalcado de certa forma dos regimes comunistas do mundo inteiro, o posto mais importante da Nação, de qualquer dessas nações, era o de Secretário-geral do Partido. Desde Lenine, Estaline e Mao que era assim. E Cabral não escapou a essa regra. Podia-se ser o Presidente do País, Primeiro-ministro ou Ministro de Defesa, mas quem era o Secretário-geral era quem mandava de facto na Nação (mas independentemente do que nos apercebíamos, as implicações do Nino ocupar esse posto seriam mais profundas). No nosso entender, era um posto que devia ser ocupado por um ideólogo, uma pessoa com uma capacidade intelectual acima de qualquer discussão, quem traçava as metas e os objectivos do povo, Mas quem estava interessado no povo naquela altura? Na vassalagem impenitente e desavergonhada que se seguiu ao 14 de Novembro? Foi a altura em que os Guineenses estavam em “saldo”, cada um tentando ocupar postos no novo regime, esquecendo as vezes tudo em que acreditaram e lutaram a vida inteira. Salvo algumas raras e honrosas excepções como o do Presidente da Câmara Municipal de Bissau, Juvéncio Gomes (e outros que talvez nunca saberemos). Aqui o meu tributo a sua coragem. Independentemente de ter estado de acordo ou não com eles, nessa altura provaram-nos que os Guineenses quando querem têm valor, dignidade e coragem Muita gente entende que os problemas do país começaram com o 14 de Novembro e agravaram-se com o 7 de Junho. É certo que estes dois acontecimentos tiveram um papel demolidor em todas as estruturas sócio económicas do país, mas como sabem eu sou de opinião que devemos ir um pouco atrás se quisermos entender as causas de todas as nossas desgraças. Mas direi de forma sucinta algumas palavras sobre o Movimento Reajustador, como Nino Vieira chamou o golpe de 14 de Novembro de 1980 na vã tentativa, de lhe retirar o estigma de golpe de estado.
O Golpe realizado no dia 14 de Novembro de 1980, não foi despoletado apenas pelas desmedidas “ambições” de Nino Vieira como muita gente defendeu e continuam a defender. Ele de facto foi quase empurrado a assumir a liderança do mesmo. Talvez em boa verdade se ele recusasse liderar, o golpe marcharia sem ele, embora o seu sucesso não fosse garantido. Claro que depois do golpe as acções seguintes têm indesmentivelmente a sua marca, liderança ou aprovação. Nada foi feito contra a sua vontade, é certo, mas muita coisa foi feita também por iniciativa de outros que pensavam que desta maneira estavam a prestar um serviço ao “chefe” como lhe chamavam. E muitos - justiça lhes seja feita - acreditaram genuinamente que estavam a prestar um serviço a sua pátria.
Durante o seu regime (pessoal e ditatorial) todo o conceito de uma administração racional e normal do aparelho do estado perdeu significado. Ele era a única ligação entre vários organismos, o fiel da balança de todo um Estado. A ligação entre o exército, o Governo e a sociedade em geral, era feita através dele, não nominalmente como Presidente e por inerência “Comandante em chefe da Forças armadas” mas “pessoalmente”. Como nos regimes feudais tudo era baseado na lealdade pessoal a sua pessoa. Pessoalizou o toda a administração publica, o que levou inevitavelmente a que toda o aparelho de estado, baseado na separação de poderes e responsabilização de titulares de cargos públicos, fosse corroída desde as bases até aos mais altos escalões do poder.
O Poder Judicial, Poder Executivo, Assembleia Nacional, as forças policiais e militares a diplomacia interna e externa, eram apenas o prolongamento da sua vontade. O próprio Partido, a única estrutura que ainda podia cercear o seu poder, por ter uma legitimidade que nem o Nino podia negar impunemente - ele era o que era por ser militante desse partido - sofreu ele também “um golpe de estado interno” com a nomeação do próprio João Bernardo Vieira para o posto de “Secretário-geral”. Com o prestígio que advinha de ocupar o posto de Cabral, de ser o “novo ideólogo” nada, nem ninguém podia doravante fazer qualquer oposição ao seu poder. Mesmo aqueles “velhos” militantes - que ainda apegados aos “Princípios do Partido” que sentiam não estarem a ser respeitados -, que tivessem algumas dúvidas no caos que se abateu sobre o regime, eram sossegados (a sua consciência) pelo facto de Nino ser o “Secretário-geral” do Partido. E quem era o garante de que “Bardadi di Partido ka ta pirdi” senão o Secretário-geral, senão ele? E quem pode ser o Secretário-geral “senão o melhor entre nós?” Sem esquecer que por tradição e pela prática desse Partido, quem punha em dúvida as decisões do Secretário-geral era geralmente apelidado de traidor. E por fim, “last but not least”, o que ajudou a rápida consolidação do poder pessoal de Nino Vieira foi que já antes mesmo do 14 de Novembro as estruturas do Estado já estavam seriamente abaladas pela hegemonia do Partido em todas as esferas da nossa vida colectiva; e havia leis que protegiam e legitimavam essa hegemonia. E na base disso o próprio espírito das leis estava deturpado. A justiça dos homens, portanto, não se aplicava ao Partido. O facto empírico de que o direito não existe independentemente das pessoas - e o conceito de que todo o “Direito Legal emana do Povo”, - levado até as últimas consequências, acarretava o entendimento, que sendo o Partido o executor da vontade do povo, o “Direito (a Lei) do Partido” emanava, “directamente” do Povo. Ou de uma forma mais simplificada: era a “própria Justiça” emanada do Povo. E nenhum tribunal dos homens o podia contestar, apenas sancionar. Assim, Nino Vieira herdou todo um conjunto de instrumentos (que foram criados por outros), que embora “ilegais” de ponto de vista formal, ainda podia ser fiscalizados, pois o Partido tinha as suas instâncias internas como o Conselho Superior de Luta ou o Comité Executivo de Luta que podiam velar pela aplicação correcta ou não de uma ou outra medida de âmbito nacional ou apenas sectorial. Mas quando estes instrumentos foram postos ao serviço de uma só pessoa (em vez de todo um Partido) já não havia instancias que pudessem controlar qualquer medida ou decisão unipessoal.
E desta forma - eliminando a priori qualquer oposição interna - toda a iniciativa que não passasse por ele ou que não incrementasse o seu já incomensurável poder, era posto de lado, se não por ele, pelos zelotas do regime. Esta forma de governo - baseado no improviso diário - destruiu sistematicamente todo aparelho de estado. O pior não foi só isso, foi destruído até o próprio “sentido de estado” que deixou de existir como um valor em si. E “essa deriva de poder” levou a que o Nino fosse sempre rodeado por pessoas sem nenhum espírito crítico ou coragem para criticar fosse o que fosse, legitimando qualquer iniciativa errada ou certa que partisse dele. Fazendo-lhe acreditar na sua infalibilidade e direito de fazer o que bem quisesse. E o “Estado” confundiu-se com a sua pessoa e o “conceito de estado” com os seus actos.
Mas a “ideia” do golpe já estava no ar antes de se tornar uma “decisão” inabalável por parte de alguns militares. Pois os que se sentiam mais prejudicados pelo Luís Cabral não era como já disse, o humilde camponês transformado em soldado ou oficial do exército. Ou o cidadão anónimo de Mansoa ou Tombali, o pescador Bijagó ou os djilas e comerciantes mandingas e fulas do nosso povo. As elites sentiam mais (na sua pele) os efeitos dessa Governação pós Independência que nunca aceitaram no seu íntimo.
O apoio total e incondicional ao 14 de Novembro foi o último acto de uma elite no fim da sua história como contestários e defensores do nosso povo. Uma elite em total contra ciclo com a nova realidade social e cultural da nação; Uma classe que nunca se apercebeu do momento histórico que o país atravessava. Essa elite, que entendeu que tinha chegado a sua hora de tomar o poder político e se legitimar como classe portadora da ideia da Nação e ser a vanguarda de um projecto politico novo, diferente da do PAIGC, consubstanciada no rompimento imediato do Projecto de Unidade com Cabo Verde, que entendia prejudicial a Guiné (unidade de cavaleiro com o cavalo como diziam jocosamente). Foi nessa altura que a “Guinendade” teve por fim a oportunidade histórica de ser a doutrina do Estado e fazer deste Estado um grande País, mas para a nossa desgraça nada disso aconteceu. Mas disso falarei noutra altura.
Essa classe, que foi revolucionária na luta contra o colonialismo e foi o porta-estandarte e portadora da Guinendade desde os tempos imemoriais de Honório Barreto, mas nesta altura do nosso “processo” já era reaccionária. No fundo, contradizendo Marx, não há classes revolucionárias puras (como o proletariado) pelo menos na realidade Africana: cada classe, em cada momento histórico, (tendo consciência disso ou não) defende os seus próprios interesses. Esta classe de cristons (criston matcho) só poderia (poderá) ser revolucionária quando os seus interesses coincidirem com os interesses da Nação no seu todo.
Nunca aceitaram um presidente Cabo-verdiano (Luís Cabral) e nem a preponderância, como eles diziam, na administração pública dos burmedjos (é nesse pensamento que anos depois se baseou a teoria do “preto nock” num dos Executivos Governamentais de antes da Guerra de 98). Mas ao mesmo tempo, eles também nunca aceitaram bem a chegada ao poder de os ditos “gintius”, ou os que eles entendiam ser “incivilizados” que vieram da Luta de Libertação.
Parte desta classe sempre olhou com algum menosprezo os dirigentes de outras etnias que tinham altas funções no aparelho de Estado de Luís Cabral (também odiavam Luís Cabral por isso, por lhes ter imposto como chefes, pessoas que eles achavam ser seus inferiores). Esta classe de quem já foi dito há cem anos atrás “… odeia violentamente os Portugueses aos quais censuram nunca nada terem feito pelo seu país e foram (…)” Um século depois odiava violentamente os Cabo-verdianos por acreditarem que lhes usurpariam o seu lugar conquistado por direito e nascimento. Esta classe de “Christons (que) encontram a morte na fileira dos Papeis durante as operações… e o seu ressentimento é tão profundo que os julgo capazes de empunhar armas contra os Portugueses, sempre que se apresentar uma oportunidade que lhes possa trazer esperança de se subtraírem ao seu domínio
Esta elite, crioula, descendentes daqueles que juntamente com as tribos da Guiné lutaram contra os portugueses; dessa elite saíram a maior parte dos dirigentes Guineenses do PAIGC durante a Luta de Libertação. Essa elite essencialmente composta pelos ditos “civilizados” na era colonial, era formada por descendentes das etnias Papel, Manjaco, mancanhe e outras da ilha de Bissau que desde o século passado faziam parte do funcionalismo e comercio da colónia. Uma classe que antigamente era organizada em Gãs (casas patrimoniais) familiares conhecidas pela população de Bissau. Muitos viviam tradicionalmente nos Bairros de Chão de Papel, Praça e Santa Luzia.
Se bem que no tempo colonial havia partes dessa elite em Farim, Bafata, Cacheu, Bolama, Geba etc., para só citar os aglomerados mais importantes. Parte desta elite tinha misturas ou era aparentado com os portugueses, franceses, cabo-verdianos, libaneses, etc. A maioria era negra, mas muitos eram mulatos ou tinham filhos mulatos. Mas sentiam mais que o resto da população - que a Unidade Guine e Cabo Verde, nunca interessou verdadeiramente, pois no seu dia-a-dia, na lavoura ou na pesca, muitas tribos do nosso país, nunca perceberam em que lhes prejudicava ou estorvava essa unidade - a sua “Guinendade” e tinham um receio genuíno do predomínio Cabo-verdiano e queriam uma “Guiné para os Guineenses”, mas sendo eles a classe dirigente e de certa forma (embora não assumida) senhores das outras tribos.
Havia portanto - alem de problemas antagónicos dentro do Partido Dirigente -, também uma questão tribal (de classe) subjacente; João Bernardo Vieira, embora alto dirigente do Partido, era filho desta elite e respeitava, como eles, as tradições que enumerei antes. E entre a lealdade ao Partido e lealdade as tradições tribais, os revolucionários africanos quase sempre escolhem as raízes. Embora o discurso oficial sempre omite questões dessa natureza por se entender que são praticas, de certa maneira, nefastas e quem as abraça não esta com a modernidade nem com o desenvolvimento.
Só um novo tipo de revolucionário africano, puro e duro, que caminhe sem escrúpulos, impunemente sobre os ossos de seus antepassados num sacrilégio libertador - para quem a construção da nação esta acima de quaisquer duvidas existenciais e seja “um imperativo ético e moral” - poderia suicidar-se como membro de sua tribo ou classe para alcançar este nobre objectivo.
Por isso quando por fim chegou o “dia D”, o dia tanto aguardado pelo meu pai e os seus, foi algo de indescritível. João Bernardo de dia para noite tornou-se duplamente herói como ele mesmo se definiu. O herói que Libertou o seu povo duas vezes. Dos Portugueses e dos Cabo-verdianos.
Interessante que este argumento que fez o seu caminho anos depois em Cabo Verde quando o João Bernardo deu o Golpe do Estado. Os cabo-verdianos, que também detestavam o PAIGC nessa altura, fizeram de Nino o seu herói e quando iam as tabernas em vez de dizer “Dam um grogo” diziam “dam um Nino Vieira” ou “n`crê um grogo forti sima Nino”. Era a maneira que tinham de protestar contra o Governo esperando que aparecesse um “Nino Cabo-verdiano” que os “libertasse” também dos desmandos do PAIGC. Mas disto falarei depois.
PARTE II “ESPIRITO GUINEENSE”
A TRIBO URBANA VERSUS WATNA, SALIU E KIANTE OU “CABRAL I BALANTA”
“Magno! Bari padja tem limite.”
Cipriano Dias, admoestando o então chefe do Protocolo de Estado de Luís Cabral, Aeroporto de Bissalanca, 197_
Quando chegou por fim o Dia da Independência Nacional pela qual esta nossa elite lutou durante centenas de anos, ela não chegou da forma que a tinham imaginado nos seus sonhos. Essa elite não se apercebeu do momento histórico que se vivia então. Essa gente que acreditou que o 14 de Novembro seria a sua redenção, cedo se desiludiu. Eles quiseram recuperar com Nino Vieira o que acreditaram ter perdido com Amílcar Cabral, mas perderam de novo. Sem o pressentirem nesse momento já tinham sido ultrapassados pela história.
Pois a emergência de um País Jovem, em toda a sua pujança, respeitada no mundo inteiro, feita de uma união (única em África) de tribos que primeiros se sentiam Guineenses e só depois lembravam-se das suas origens tribais, era algo de impensável para eles.
Essa nova sociedade, mesmo prenhe de contradições já naquela altura, era como a correnteza do Rio Geba, impossível de contrariar. A união era tão forte que os cristãos - pela primeira vez na sua história secular - punham aos seus filhos nomes como Watna, Iorna, Kitana, Saliu, kiante, Ntchama, kampuni, Apili, etc., ultrapassava a de longe os estreitos limites da sua “mundivisão”, baseada num nacionalismo estreito, amante do seu “chão” mas não do seu povo.
Quando um homem erra é lamentável, mas o erro de toda uma classe, alem de ser deplorável, é extremamente prejudicial para qualquer nação. Mas hoje, volvidos estes anos todos entendo a origem do seu errar e como não foram só eles, a história os absolvera. Ainda hoje em Portugal há certas elites portugueses que acreditam piamente que os povos de Angola, Guiné e Moçambique desejam o seu regresso, pois que fartos da ma governação dos seus dirigentes perguntam como aquele inocente keniano: Quando vai terminar a “independência?”
Esta classe, embora pertencentes a por herança biológica e cultural a certas etnias (e respeitavam os rituais “cabas”, “baloba”, “toca tchur” etc.), já se consideravam há séculos como os portadores da Guinendade, os primeiros Guineenses que já estavam desligados do “chão” dos seus antepassados. Já não lutavam por pedaços de território, pelo seu chão (como as outras etnias lutaram no passado), já “lutavam pelo país” no seu todo, mesmo que individualmente (como meu pai por ex.) não tivessem nenhum pedaço de terra a que poderiam chamar seu.
Aqui quero ainda dizer que meu próprio pai foi um próximo desse pensamento e de certa forma, pelos laços de sangue, um deles; se bem que lhe fazendo justiça póstuma (para que ele de onde estiver a me ver, não diga que faltei a verdade) - pelo seu percurso de vida e nascimento em Farim (não em Bissau) que na altura era uma cidade da fronteira muito importante e por ter crescido numa “ponta” (o mítico “Progresso”) nos confins dos matos do interior de onde nos anos vinte e trinta só se podia ir a Farim de barco - a sua mundivisão era nacionalista mas com nuances liberais próprios dos habitantes da fronteira. Patriota, nacionalista mas não classista que ele achava “aberrante”, “atrasada”, “colonialista” e sem nenhum sentido, “um disparate que leva a perdição” nas suas palavras. Hoje percebo tardiamente que ele tinha razão em muitas análises empíricas, embora apenas conduzido pela intuição e pertença étnica. Por exemplo ele não tinha Honório Barreto em boa conta, pois pela formação, desconfiava de qualquer Guineense que os Portugueses gabavam.
Esse meu pai que homenageio aqui - apenas para através dele falar-vos deste nosso amado e sofrido país e dessa elite já mencionada - e por ter sido um das centenas de Guineenses mortos na fratricida guerra de 98. Pois por força da guerra de 98 veio acabar por morrer longe da terra que tanto amou em Carnaxide, neste triste Portugal do fim do século. No auge dos bombardeamentos de 98, já velho, teve que atravessar o seu amado país pela ultima vez, para chegar a Gâmbia de onde com a sua mulher e a minha velha tia Feia partir de novo para através do Senegal chegar a Dakar onde conseguiram, num jacto da Força aérea Cabo-verdiana, atravessar o atlântico na mesma rota que centenas de Guineenses fizeram séculos antes, amarados, escravizados, nos porões dos barcos negreiros para nunca mais voltarem a ver o verde maravilhoso da sua terra. Ele também nunca mais viu o Farim da sua meninice, nem Mansoa, Mansaba, Bafata ou Bissau. De Cabo Verde foi a Lisboa esperar o fim da Guerra onde morreu um mês depois de ataque cardíaco. Um dia se puder levá-lo-ei para o Farim, para por descansar eternamente entre os seus antepassados. Nunca conheci alguém que amasse com tanto empenho a sua terra. Que sofresse tanto pelas suas desgraças. Que a ma governação horrorizava tanto e as injustiças revoltavam até ao paroxismo. Paz a sua alma. No fundo sou o que sou graças a ele também, graças a sua percepção do que poderíamos ser como país e o entendimento profundo que tinha de que “li qui nô tchom”.
Mas quem é esta gente no fundo? São uma classe porque? São uma elite porque? Amílcar vai buscar os dirigentes da Luta a parte “mais nacionalista” deles e condena aquela parte deles que não se identificou com a Luta. E anos depois na sua análise social, usando o Marxismo, ele vai buscar o seu conceito de “pequena burguesia Guineense” a parte mais bem estruturada e rica destes Cristons. E vai buscar o seu conceito de “Lumpen proletariado” a parte mais pobre deles. E vai trazer a noção de “suicídio de classe” para explicar como é que uma parte “mais conscienciosa e revolucionária” desta classe (reaccionária a priori pelas suas origens) abandona tudo para se integrar a luta de Libertação. Mas neste particular, modestamente, não estaria de acordo com Cabral. Usando, da mesma forma que ele o “Materialismo Histórico” na nossa analise de uma forma objectiva, independentemente dos nossos propósitos políticos, temos que chegar a conclusão que “esta gente” filhos de grumetos, cristons, civilizados ou quer que os chamemos não eram classe nenhuma (pelo menos no conceito clássico do termo).
Na definição clássica de Marx, a classe tem a ver com os meios de produção que detêm ou não. Simplificadamente, a classe proletária só o era porque era desprovida dos meios de produção que estavam na mão da classe capitalista. Esta gente nunca foi classe portanto. Também nunca foi “pequeno burguês”, pois para isso tinha que haver (ou pressupor) a própria “Burguesia” ou a tal “grande Burguesia”. Mas mesmo que saia do âmbito da “compreensão histórica” do Marxismo, com a sua teoria de “luta de classes” e for procurar traços pequenos burgueses a “esta gente” não as encontro. Era de facto uma elite, mas uma elite por conquista própria, lutando todos os dias da sua vida com o poder colonial
E quando Cabral afirma: “Quando, por acção de uma minoria da pequena burguesia autóctone aliadas massas populares indígenas, se desencadeia o movimento da pré-independência, essas massas não tem qualquer necessidade de afirmar ou reafirmar a sua identidade, que nunca confundiram e nem poderiam confundir com a da potência colonial. Essa necessidade só surge ao nível da pequena burguesia autóctone (elites) que, nesta fase da evolução das contradições do processo de colonização, é forçada a tomar posição face ao conflito que opõem as massas populares à potência colonial” Há elementos histórico e sociológicos não analisados. Se como ele diz “por acção de uma minoria da pequena burguesia (…) se desencadeia o movimento de pré-independência …” Já torna redundante a premissa contida no último paragrafo sobre a “necessidade (…) da pequena burguesia autóctone (…) tomar posição”.
De resto, já a tinham “tomado” e a sua posição estava do lado certo da História. Não falando no mundo em geral ou da África em particular como Cabral, no nosso “caso Guineense”, esta classe que ele chama de “pequena burguesia autóctone” tinha a sua posição definida há centenas de anos. Tivemos uma elite que sempre nas horas de maior conflitualidade estavam do lado do seu povo. Por isso, como este, na verdade nunca precisou de “afirmar ou reafirmar” de que lados estavam. Basta estudar a história da luta secular deste povo, para ver de que “lado estavam”.
Na verdade não eram uma classe, eram uma tribo urbana. Não eram primos de Papeis, Manjacos e Balantas, como diziam os portugueses, eram filhos dessas tribos, filhos “ilegítimos” - ou “pródigos” em cada regresso - procurando uma legitimidade acrescida no regaço das origens? Filhos não apenas pelos laços de sangue mas também pela cultura. Eram a parte perdida (a tribo perdida) do nosso povo. Tão perdidas como aquela parte das nossas tribos que foram levadas para colonizar Cabo Verde (fulas em S. Vicente onde as pessoas são mais claras, manjacos e papeis em S. Tiago onde a população é mais escura). No fundo o Cabo-verdiano é apenas um Guineense cortado pela raiz da árvore da sua nação. Cabo-verdianos são cabo-verdianos porque primeiro são descendentes de escravos levados da Guiné. A unidade Guine e cabo verde não é invenção de Cabral pois a Guiné e Cabo-verde nasceram juntos e eram durante muito tempo uma mesma Província, “Província dos Rios de Cabo verde e Guiné”. Mas esse sangue perdido da nossa nação corre livremente não só na veia dos Cabo-verdianos, como também corre na dos Cubanos para onde milhares de filhos da Guine de todas as etnias foram levados como escravos, ou na veia dos Seraleoneses, senegaleses para onde centenas de filhos do nosso povo também foram cumprir o seu destino. O nosso sangue corre na América e na Europa diluído no sangue do povo português. Mas também o sangue angolano corre nas nossas veias e de goeses também. Os 150 angolanos que vieram combater na última e maior batalha por Bissau, não regaram impunemente com o seu sangue este chão, também deixaram descendentes. Os são-tomenses, os brasileiros, italianos e até polacos também. O saibam portanto que o “homem moderno” é também feito de sangue guineense em todas as partes do nosso mundo.
Estas gentes - essa tribo urbana - que tiveram em Honório Barreto o seu paradigma máximo, eram a tribo que habitava no meio de dois mundos; o mundo material das suas mães que era mais forte (por isso o nosso povo diz que barriga é mais importante) e o mundo dos seus pais espirituais os portugueses. A sua cultura e costumes eram das suas mães. Havia uma compreensão implícita disso até no Urbanismo da Conquista Portuguesa. Por isso mesmo a “cidade” dos grumetos ficava fora da “cidade branca”, fora dos muros de protecção, no meio caminho entre as tabancas e a praça. Os portugueses não tinham interesse em protege-los, pois sabiam que em caso de conflito, aliavam-se invariavelmente aos “seus” e isso aconteciam sempre.
Sempre que havia uma revolta em Cacheu, Geba ou Bissau, os grumetos corriam de todos os lados da colónia engrossar as fileiras da tribo que estava em conflito. Muitas vezes as suas casas eram bombardeadas e queimadas pelos militares portugueses e eles tinham que ir viver nas tabancas das suas tribos de origem, com as suas mulheres e seus filhos; e muitas vezes essas tabancas também eram atacadas pelos portugueses porque essas tribos, por sua vez, recusavam a entregar esses grumetos que eram procurados pelas autoridades portuguesas. Esse acto ocorria por essas tribos entenderem que eram sangue do mesmo sangue e carne da mesma carne. Estes representantes do nosso povo eram tão violentos com os portugueses, que no nosso vocabulário crioulo, ainda hoje chamar alguém de grumeto é ofender essa pessoa, pois no fundo significava para os portugueses, “selvagem” sem maneiras ou educação. Foram a mistura desses grumetos, cristons ou “civilizados”, que vieram ser os avos desta classe de que vos falo. Em minhas veias corre também o seu turbulento sangue.
Assim, em boa verdade, uma parte da elite Guineense, maioritariamente de ascendência Papel e Manjaco, na sua vã tentativa de assumir o poder político, que não conseguiu em 1974 (e nem antes, com os movimentos protonacionalistas dos anos 50, nem com MLG, a FLING etc.), acabaram por proporcionar a chegada ao poder dos militares pela primeira vez no nosso país. Estes, sendo na sua maioria da tribo Balanta, que para eles eram também os tais gentios que queriam afastar do poder (Se Cabral ainda pudesse analisar isto, talvez acharia, que a sua tese de suicídio desta classe tinha toda a razão de ser).
Como disse, antes de o Golpe de 1980 se tornar uma realidade possível ou praticável na cabeça de certos militares ela já era uma realidade inconfessada no coração de muita gente de uma elite que já disse caminhava em sentido contrário aos ventos da história. Essa elite que pugnava por algo que mudasse o “statu quo” das forças no pais. Que batia-se por algo que ainda não sabia o que seria. Mas sabia que não dispunha de forças autênticas (armadas ou não) e nem tão pouco de uma ideologia estruturada que permitisse qualquer veleidade da sua parte no campo político. Ainda não se tinha recuperado do choque das prisões a que os seus líderes ou proeminentes membros foram sujeitos na entrada do Partido. Só dispunha das tradições dos seus pais enraizadas num presente precário (tinha perdido o poder económico) que lhes permitia ainda ter alguma esperança, mas sem nenhuma base de legitimidade comparativamente aos que “vieram da Luta” que aos olhos do povo tinham legitimidade para mandar.
Mas essa tribo urbana também sabia, pela experiencia adquirida em séculos de luta (nesse aspecto eram mais experientes que o PAIGC que só tinha onze anos de Luta) contra o colonialismo, que a legitimidade é discutível, mas desde que o mundo existe, há a legitimidade que é dada pela ponta da espingarda) dada pela consumação do acto em si, errado ou certo (“aos vencedores não se pergunta se tinham razão”) e quem depois ia tratar da legitimação do acto, explicar a sua necessidade ao nosso povo e ao mundo, não era importante, pois haveria sempre quem provasse que tinham razão tanto moralmente como a luz do Direito formal. Haveria sempre juristas capazes de “enquadrar” o acto juridicamente; Assim foi sempre na história. Mas o mais importante eles precisavam, se não de uma ideia forte (sem uma ideia forte não há revolução possível) de um “instrumento” para a realização dos seus objectivos. E como nos tempos do antigamente, no tempo dos seus pais, precisavam unir com os “seus irmãos de terra” para lutar contra o “opressor”. Sabiam que dentro das fileiras do Partido tinham filhos seus que não esqueceram as origens e que na hora H podiam estar de seu lado. Alem de que como os únicos detentores das armas da nação eram os soldados do “inimigo” era dali que teria que vir o “instrumento” da libertação.
Nem se apercebiam que era um contra-senso histórico, alem de dialecticamente inconsequente “amar o seu Chão” e não amar o seu Povo como um todo indivisível”. Esta percepção errada de dissociar o povo da terra e dividir o povo em civilizados e gentios que era o cerne do seu pensamento enquanto tribo ou classe é que me faz dizer que estavam em total contra ciclo com os ponteiros do relógio da história. Ou como dizia o meu pai, “um disparate que leva a perdição.
O resto é história, mas os “mandantes” do golpe foram eles. A justificação para o acto foi as suas dores, o seu “suposto” e “real” sofrimento na “nô tchom”. Amarguras de uma tribo sem o poder a que achava que tinha direito por nascimento.
E foi com grande surpresa que eles viram que com o 14 de Novembro, quem na verdade chegou ao poder foram os tais “gentius” (gentios incivilizados) através da etnia Balanta e alguns elementos das outras. Com todo o “merecimento”, diga-se em abono da verdade, pois foram eles que fizeram o golpe na verdade (embora fiel as leis da história que diz que ninguém governa com quem lhe ajudou a subir ao poder; e que todas as revoluções comem os seus próprios filhos, a liderança militar do golpe veio a desaparecer quase totalmente). Mas as sementes estavam lançadas e foram dando frutos até hoje.
Com Nino Viera, através dos militares, o povo Balanta chegou ao poder. O João Bernardo Vieira fez pelos Balantas o que nenhum outro Balanta fez ou fará. Apenas Cabral fez mais (pois de certa maneira deles fez heróis e Nino deles fez vilões), embora isto seja discutível, até para mim, diga-se em abono da verdade que ambos fizeram o que fizeram involuntariamente. Porque mesmo quando Kumba Yala tornou-se presidente ele não levou os Balantas ao poder, como se afirma. Os Balantas já estavam de facto no poder e por isso um individuo Balanta, através deles, conseguiu chegar a Presidência e não o contrario. Ele pode ter “balantizado” o Estado depois, mas talvez, numa certa compreensão das coisas, era a única maneira que tinha de agradecer o posto que lhe foi concedido…
Na verdade com o Nino e através dele chegaram ao poder por duas vezes. Primeira vez quando todo o núcleo duro do conselho de Revolução era formado por Balantas e segunda vez quando derrubaram o Nino pela mão de Ansumane Mané. E se alguém pensou que depois desse acto, voltariam para os quartéis, então analisou mal todo o trabalho emancipador e revolucionário de Cabral. Esses militares podiam não ter uma formação académica clássica, mas tinham a formação ideológica e preparação militar; mas o mais importante tiveram formação política, Comissários Políticos, que como é lógico, os politizou e estavam armados com a teoria de Cabral na cabeça. Só isso, bem direccionado, já era uma mais-valia fantástica. E tinham a nação aguda de que a justiça social é um fim em si.
Mas como dizia, foi assim, por um atalho da história que as etnias chegaram real e finalmente ao poder pela primeira vez. E foi nesse momento, numa espécie de catar-se nacional, onde se procurava fazer uma estranha “justiça social” a todo o custo, que muita gente com pouca ou nenhuma preparação académica começou a ocupar indevidamente pastas importantíssimas no aparelho do estado. E a bancarrota começou. E é essa tendência populista que começou nessa altura e numa continuidade bem dialéctica, que veio a atingir o seu clímax (a nossa derrocada total), com os governos do P.R.S.
Mas não houve nenhuma “conspiração Balanta” foi apenas um acaso da história. Aqui queria dizer duas palavras sobre este sujeito: Quando os balantas a cantar dizem “Cabral i Balanta” posso entender isso como “Cabral nega”, - balanta=quil ku nega - (Cabral, aquele que recusou a dominação) mas posso entende-lo também como “Cabral i di nós” (Cabral nos pertence.) ou mais profundamente – Cabral=Balanta - (Cabral é tão Balanta como qualquer outro Balanta). Ou direi como aquele português definindo o Honório Barreto que “Cabral é mais Balanta que 100 Balantas?” O que quero dizer é que os Balantas, na verdade, juntamente com as outras etnias, devem estar sempre no poder (independentemente da questão, porque não dize-lo, de neste momento serem dominantes nas forças armadas. Mas a questão das forças armadas é outro assunto para ser tratado depois), pois sendo uma etnia nuclear na formação do estado Guineense, pelo seu contributo heróico, histórico e recente na Luta de Libertação. Por só existirem na Guiné (é ka tem utro terra pa bai) e por serem no mínimo um terço da população. Com esta realidade que temos de viver, não alienando este povo, que temos tanto a agradecer e que numa Guine próspera serão também a charrua e a enxada.
Friso isto porque notei de uns tempos para cá, uma crispação na nossa sociedade (e também em Portugal entre os Guineenses), sobre este ponto. O facto de muita gente entender que os militares são um problema para o país (o que é errado, certos políticos é que o foram e são ainda), por analogia dizem que os Balantas são um problema para o país (duplamente errado). Não podemos, sendo intelectualmente honestos, aceitar que se cometa uma injustiça para com um povo pacífico e trabalhador.
Sobre a “utilidade da Forças Armadas” eu daria um exemplo simples: Se eu mandasse no País na altura do último golpe de estado em Conacri, com ajuda do povo desse país, mandaria um comando de mil homens derrubar esse grupelho desorganizado de golpistas de defuntos de ajudar a instaurar um governo verdadeiramente popular. E acreditem que é preferível ser “irresponsável e estar com a verdade do que ser responsável e no erro”. (É por isso e outras coisas, que escrevi na altura, que devemos proteger as nossas Forças Armadas como a menina dos nossos olhos e ninguém me entendeu). Toda a gente sabe que a Guiné Conacri é governada por assassinos e criminosos de delito comum com quem não devemos ter nada a haver de um modo geral (se for do nosso interesse como nação estou de acordo), por isso o derrube, se necessário for sangrento desses bandidos é uma necessidade e um direito. E com esse acto teríamos o agradecimento eterno desse povo. E dessa forma pagaríamos por fim a dívida que temos com eles desde o tempo da Luta. E com esse capital de simpatia e acordos políticos com o novo governo saído desse acto, iria confrontar o Senegal em Casamance. Primeiro exigiria o fim dos bombardeamentos criminosos contra a população pacifica e o reconhecimento imediato das Forças independentistas como um parceiro de negociações e ao mesmo tempo daria um apoio claro as forças que lutam para a Independência; para depois obrigar o Senegal a permitir uma autonomia administrativa inicial para essa região e com o tempo faria os possíveis para chegarmos a uma união económica e social com Casamance como ponto de partida para um futuro comum.
Por isso quando antes da guerra de 98, quando se criavam comissões de Inquérito para averiguar quem tinha dado armas aos guerrilheiros de Casamance, achava isso um disparate tremendo; pela simples razão que isso era do nosso mais alto interesse nacional. Pois para mim quem da armas a esses guerrilheiros é um patriota. Se não podemos assumir isso claramente por razões de política externa ou da tal “realpolitik” reaccionária que hoje enferma todas as chancelarias da África, não devemos também punir ninguém por isso. É nosso dever ajudar os habitantes de Casamance com todos os meios que dispomos. Parece que esquecemos que também fomos ajudados a conquistar a nossa liberdade. Tenho ouvido dizer que chegamos a cometer o crime de mandar derramar o precioso sangue das nossas tropas em Casamance lutando do lado errado. Lutando ao lado dos invasores Senegaleses. Como entender isto? Como se pode então falar de reformar e estruturar as Forças Armadas quando não se lhes permite cumprir a sua verdadeira missão? O seu trabalho? As Forças armadas devem servir para ajudar a estruturar a Nação. Mas disto falarei mais tarde. II
O SUICIDIO INVOLUNTARIO DA NOSSA ELITE OU “LI KI NÔ TCHOM“
“Há gente que até tem desprezo pelas suas tribos, gente que não quer saber disso para nada, que estudou nas Universidades em Lisboa (…) mas que hoje (…) quer ser Presidente da Republica, Ministro, para poder explorar o seu próprio povo. (…) Então lembram-se (das suas tribos) (…) (Esses) Não são Africanos, são lacaios…” Amílcar Cabral, in “Arma da Teoria”
A nossa geração, nos anos primeiros anos a seguir a independência, tinha muitas discussões com os nossos pais e parentes mais velhos sobre o novo poder; com a nossa pouca idade, parecia-nos que eles estavam desfasados da realidade. No meu caso, o meu pai que bastava sentar-se na mesa para almoçar ou jantar a primeira que fazia era começar um monólogo interminável, onde insultava o Presidente Luís mimoseando com todos os epítetos que conhecia, obrigando a minha mãe a correr para fechar a porta antes que um vizinho mais doutrinado o fosse denunciar a polícia política. A minha mãe, coitada, que não conseguia discutir com ele, tamanha era a sua permanente fúria e indignação pelos “desmandos” do novo regime (e que também sabia que se mostrasse algum desacordo com o que ele dizia, este invariavelmente respondia que “estas a defender o teu parente” Luís Cabral) resignava e apenas o alertava com medo e pena na voz: “Nini (diminutivo do Meu pai) não demorara nada vão te prender e não sei o que será de mim sozinha com estas crianças”. Naquela altura já se prendia muita gente só por criticar dirigentes ou a politica do partido. Estavam presos muita gente entre comandos africanos, chefes tribais, açambarcadores, etc. Pois a Luta não termina com a Libertação da pátria. A luta é um processo e um processo, como sabemos, não tem fim. Tinha começado a Luta da Reconstrução. Foi então que começou a luta na frente interna, contra os “barrigas de meia”, contra especuladores, açambarcadores e afins. A luta para descolonizar as mentes através de processos sumários, “corda sintido” etc. Era, em suma, o tempo do disparate esclarecido. Embora muita coisa que aqui falo só veio a ser totalmente conhecido muito depois. Naquela altura o estado ainda era bem organizado e só se sabia o que queriam que o povo soubesse. Embora houvesse muitos boatos de execuções sumarias entre outros males. Eu as vezes do alto dos meus 15 anos discutia com o meu pai, tentando fazer-lhe ver que as frases e argumentos dele, que também eram dos seu amigos. Colegas (da sua tribo urbana) eram, alem de reaccionárias, apenas “resíduos de um passado que o nosso povo já tinha enterrado”. Em vão (também hoje sei que eu não tinha muita razão); Lembro-me que um dos seus argumentos mais fortes e contundentes contra o Presidente Luís Cabral era o facto de aquele ser Cabo-verdiano. Eu achava que isso não era um argumento válido para uma discussão séria. Eu tentava fazer-lhe ver que numa Nação Unida (Guiné e Cabo Verde) um Guineense poderia ser Presidente em Cabo-Verde como um Cabo-verdiano podia ser presidente na Guiné, pois a luta tinha sido comum etc., etc. Mas ele tinha outros argumentos e factos que eu não podia rebater; Um dos factos era Cabo Verde não ter Guineenses no topo da hierarquia de Estado; eu lembro de responder nessas alturas “que não era uma questão de troca”, mas de um processo político e não social (que vinha da Luta) de preenchimento de lugares com as pessoas mais capazes para o seu desempenho, que ele não entendia, pois não queria ter uma mente aberta. Ele ria dos meus argumentos e falava-me das Constituições diferentes dos dois países, da pena de morte na Guiné, etc. Por fim, com falta de argumentos, eu erradamente ia para a esfera pessoal, argumentando: “Você insulta os Cabo-verdianos mas é casado com uma Cabo-verdiana…” Ali ele pegava nos meus argumentos e rebatia demonstrando que não se tratava de uma questão pessoal ou de amor. Era uma questão de ser Guineense e ter o “dever de defender a Guiné”. E usou aqui uma vez uma frase recorrente no meu argumentário (a famosa frase de Cabral “Nos não lutamos contra o povo português, mas contra o colonialismo português”) para me dizer que ele não tinha nada “contra o Povo Cabo-verdiano”, e não lutava contra o povo Cabo-verdiano, mas contra aqueles “colonialistas” cabo-verdianos, que mandavam na Guiné.
Lembrei-me a pouco desta discussão ao ler, as palavras do Vice-cônsul Hostains, quando já nos idos de 1918 indignava-se com “Esta classe à parte de Christons” que “… odeia violentamente os Portugueses aos quais censuram nunca nada terem feito pelo seu país (…)” Os sentimentos dessa gente, desses Cristons em 1918 eram os mesmos que eu encontrava no meu pai e seus conterrâneos, quase um século depois. Apenas o ódio era dirigido agora não ao português, que já nessa altura já tinha desaparecido, mas ao “Cabo-verdiano colonizador”. E o ressentimento do meu pai e de milhares de outros Guineenses ditos “civilizados” (?) que nessa altura os levava a ser, se pudessem, claro “… os instigadores da maior parte das insurreições indígenas…”. Pois este Cônsul Português que em 1918 sabia que “numerosos Christons encontraram a morte na fileira dos Papeis durante as operações… e o seu ressentimento é tão profundo que os julgo capazes de empunhar armas contra os Portugueses, sempre que se apresentar uma oportunidade que lhes possa trazer esperança de se subtraírem ao seu domínio” não se enganaria se fosse vivo e usasse esta frase para caracterizar o sentimento dos “modernos” Cristons. Estes também, movidos pelo seu ódio, se pudessem “instigar “ insurreições indígenas” não deixariam de o fazer. Portanto esta ultima frase escrita pelo mesmo representante colonialista que nomeei atrás poderia caracterizar esse mesmo sentimento que em 1979 motivava essa tribo urbana de Guineenses.
São estes os motivos também do 14 de Novembro de que antes já falei. Se na altura de Luís Cabral houvesse revolta de Papeis não tenham mínimas duvidas que numerosos cristons adeririam a essas revoltas e morreriam nas suas fileiras.
Por isso devemos ir um pouco mais atrás no tempo, se quisermos entender as verdadeiras causas objectivas e subjectivas da nossa desgraça nacional. Pois uma coisa é golpes, intentonas, guerras etc., outra coisa é a alma e idiossincrasia de um povo e a maneira como se apropria e entende a sua história. E em países como nosso, há alturas que as elites são mais determinantes que todo o povo no seu conjunto. Dito isto, certifico-vos que uma das causas mais profundas da nossa lastimosa situação actual, foi a incapacidade total de uma elite nacional assumir as suas responsabilidades históricas e politicas na hora de governar este país Independente. Estou a falar na altura da descolonização.
Na violenta tomada do poder pelo PAIGC, a pequena burguesia, olhada com desconfiança pelo novo poder, rotulada de contra-revolucionária, odiada até, por ter sido aqueles que ficaram com os Portugueses (kilis ku cume ku tuga), como se fosse possível todo um povo juntar-se a uma Luta de Libertação (dialecticamente analisando, se todo o povo fosse a luta, não haveria a luta, pois não haveria ninguém para libertar). Mas essa altura, não era o tempo para teorias e dialécticas, era o tempo da prática, da acção, do “… agir para melhor pensar”, da implementação do materialismo histórico na vida real. Era a altura da implantação da Ditadura do Partido - não tínhamos proletariado infelizmente (ou felizmente?) - contra os inimigos da revolução ou do Partido (era a mesma coisa). Se não houvesse inimigos tinha-se que cria-los. Pois na altura, toda a revolução que se preze, tinha que ter uma data de inimigos, para serem abatidos pelas forças revolucionárias, na luta sem tréguas rumo ao socialismo. Nessa altura não era raro numa mesma família um filho era revolucionário e membro do partido enquanto outro era “reaccionário e contra o partido”. Em 1974/75 o PAIGC prendeu todos os líderes da “nossa” elite crioula. Os comerciantes, ponteiros, funcionários, ex militares etc.
Calhou certa vez (contaram-me) um proeminente comerciante, herdeiro de uma das maiores casas comerciais da Guiné colonial estava preso e na cadeia um “guarda da revolução” ouvia rádio. Na rádio davam uma música linda e muito em voga que se chamava “É mata Cabral” (naquela altura havia ainda uma certa pujança económica que permitia haver uma trintena de grupos musicais e muitos deles com os seus próprios instrumentos musicais completos.); A musica era cantada por um colega nosso dos “Lacarães” (mítica banda hoje desaparecida) e dizia num dos estrofes “É mata Cabral pa é pudi bindino” e “Cabral gora ka ta muri” etc. Como o vocalista era muito novo (com onze ou doze anos) a sua voz cristalina ecoava pela cadeia toda. E parece que o guarda que estava deliciado com a música murmurou qualquer coisa como “nossos jovens cantam muito bem…” E o prisioneiro “contra-revolucionário” disse-lhe: é meu filho que esta a cantar. O guerrilheiro inocente ficou pensativo, sem querer acreditar, sem entender como era possível pai inimigo do povo, na cadeia e filho a glorificar o PAIGC… Não tive a honra de conhecer o saudoso Jorge Ampa, mas parece que é nestes casos que ele utilizava o seu famoso “coisas nossas”.
Acho que na genialidade de Cabral, a maior “falha”, foi preconizar e desejar o suicídio da elite Guineense. Parece que “esqueceu” que parte dessa elite é que lhe serviu de base ideológica (ele era membro dessa elite) e força organizacional, transmissor de conhecimentos e veículo de uma diplomacia que fizeram a Luta sair do estrito campo do dito terrorismo (terroristas, como diziam os portugueses para denegrir os combatentes) para uma epopeia reconhecida e respeitada a nível mundial. Em suma para realizar a Luta de Libertação foi preciso uma elite esclarecida.
E que essa elite esclarecida e preparada era o cimento que unia todas as tribos (pessoas mais esclarecida de cada tribo) no momento difícil da luta armada, em que sem ela, teria sido possível o desagregar do Partido e tribalisar a luta. Mas essa elite era tão forte que nem os Portugueses a estigmatizaram; e a sua propaganda era no sentido de separar a elite guineense crioula da elite cabo-verdiana. Mas os Portugueses podiam ter feito propaganda de modo a por tribo contra tribo dentro da luta; tentaram-no, é certo, mas sem muita convicção, pois a partida sabiam que não teriam sucesso. Sabiam que o cimento nacionalista já era mais forte que o tribalismo. Esse cimento, a própria elite, que organizou e comandou a luta, que Cabral pediu para se suicidar (a parte maior, a parte que não aderiu a luta), partindo de principio que àquela outra parte, que estava com ele, já se tinha suicidado (tornando-se revolucionaria), automaticamente, no preciso momento em que aderiu a luta de Libertação…
É esta elite, que da mesma forma que ajudou a levar a luta a bom termo, também se organizada, ajudaria a levar a Reconstrução Nacional a bom termo. Mas infelizmente a sua incapacidade de assumir funções políticas conformes com a sua posição social, formação académica e económica, como aconteceu em Angola, Moçambique e Cabo Verde, para não falar do nosso vizinho Senegal, foi desastroso para a Nação.
Todo o País que se preze é governado por uma elite que é o cimento e a base de unidade do país (na França há uma “alta escola” parta formar os futuros dirigentes do país). Se não houvesse uma elite forte que tomasse nas suas mãos os destinos de Angola (Sem esquecer o papel desse grande presidente que é o Eduardo dos Santos, que mesmo quando quase só ficou com Luanda, nunca se rendeu e lutou como um leão para que hoje Angola seja um só país, uno e indivisível, nosso orgulho em toda África. Não fosse ele, ela hoje estaria dividida em varias nações e cheia de tribalismo e destruída. Quem sabe, talvez pior que nós, pois nós nem a riqueza de Angola temos), hoje ela não seria uma potência. Mas falar de Angola, neste contexto, é falar do Brasil, de Portugal, da Rússia e de todos que valem alguma coisa.
Mas essa nossa elite, essa tribo, tem a sua “desculpa histórica”, pois “quem” podia fazer algo, quando o próprio Amílcar tinha dito nas suas famosas Palavras de Ordem Gerais: “Devemos, portanto, praticar a repressão contra todos os elementos criminosos, qualquer que seja a sua condição social. (…) Não devemos consentir (…) actos contrários a luta e ao partido (…) ”?
Essa elite sabia que quando Cabral falava em praticar a repressão não era propriamente dar palmatórias ou bofetadas. O Militante Nº1 - talvez para dissipar todas as dúvidas - mais a frente, na mesma ocasião, explicitava: “As prisões, os campos de trabalho e até a pena de morte são formas de aplicar a repressão…” Portanto não havia lugar para dúvidas quanto ao que os esperava se tivessem incorrido no desagrado do Partido. Mas mesmo assim, não têm perdão. Apenas desculpa. Essa elite tinha que ser mais do que foi, ou pelo menos morrer tentando.
Pois no fragor desta nova Luta (que alguns entendiam ser continuação da outra), em que os oportunistas - que não foram à outra - encontraram a sua oportunidade de provar a lealdade ao novo poder, a Pequena Burguesia, e não só, se suicidou como classe política (apenas isso pedia Cabral, erradamente ou não), mas suicidou-se até como agrupamento humano. Escondeu-se nas saias do poder, denunciaram-se uns aos outros (elementos) e sempre que podiam fugiam para outros países. Os que sobraram preferiram cair no anonimato. Demitiram-se de toda a participação cívica e de toda e qualquer actividade em que podiam ter orgulho ou dignidade e foram substituídos sem apelo nem agravo (assim funciona o motor da história), por pessoas sem nenhuma preparação, que a única legitimidade que tinham, era o facto de terem vindo da Luta de Libertação Nacional.
No vazio da sua abstenção política e com sua ausência (sem esquecer a politica económica totalmente errada dos primeiros anos da independência), o país foi a bancarrota. Nunca o Partido único conseguiu criar uma outra elite - seja com os quadros que trouxe da luta, seja com os que mandou formar - que preenchesse esse lugar vago deixado pela pequena burguesia na administração da coisa pública. Afinal as elites não se criam, nascem de uma situação histórica concreta e duram anos a serem aquilo que venham a ser em relação a nação.
III
NO TEMPO DE LUIS CABRAL OU AS FÉRIAS DO NOSSO DESENCANTAMENTO
“N`djurmentabos (…) Cada kussa ku si cumsada ma i ta tem se fim. Son si Deus ka misti i que ka ta caba. Se no ca pui tudo na um mom i ka ta caba…” José Carlos Schwarz
Como quase todos os jovens politizados da minha geração, fui Marxista (hoje diz-se Socialista) muito cedo, ainda não tinha 18 anos. Confesso que quando li o “Manifesto”, pela primeira vez, não dormi toda a noite: foi a maior revelação da minha adolescência. E nem “O Estado e a Revolução” ou a “Critica da Razão Pura” de Emanuel Kant, que anos depois viria a conhecer, exerceu em mim tamanha comoção, embora dele tenham dito que “nunca livro algum assombrou e revolucionou tanto o mundo…” hoje se sou o que sou, como ser humano, algum papel teve na minha formação a mensagem poderosíssima do “Manifesto”, que na tenra idade que tinha, deixou sulcos profundos na minha alma. A descoberta de todo um mundo novo e a necessidade de o transformar, ou como dizia Marx “Não basta compreender o mundo é necessário transforma-lo”, me levou a interessar pelo mundo imediato que estava ao meu redor; e até hoje continuo a observar esse mundo e as suas mutações (e cada dia me maravilho mais), sem esquecer nunca que “o que importa é transforma-lo”. Mas isso foi depois de crescer; muito novo, ainda criança, habituei a ouvir histórias do meu avô e minha mãe que viveram muitos anos na Guiné profunda, no “chão dos balantas” e fulas, onde a minha mãe cresceu e se fez mulher, antes de vir para Bissau. Assim, ainda menino, ouvia histórias de Sambasilate, Nhabijon, Bambadinca, Enxude, Xime, locais por onde o meu Avô Luís Vaz Pereira levou a sua família nos anos cinquenta. Essas histórias que ouvia inflamavam a minha precoce imaginação e sempre quis conhecer esses locais que para mim, menino ainda, eram sítios míticos. Essa oportunidade cedo me foi dada; cresci conhecendo o meu País na esteira dos meus pais que viveram um pouco por todo o país. Cresci em Mansaba, onde já com dois anos vivi, cresci em Bissau onde fiz a pré e primeira classe, cresci em Farim, terra do meu pai e dos meus avós, onde fiz parte da segunda e terceira classe antes de meu pai ser transferido de novo. Foi ali onde aprendi a nadar no “Bombololom” e a fugir de “Kumpó” e a escapar com 9 anos para ir ver “Luto” nos bairros como Nema, Gã Sapo, Murcunda etc. etc. Foi onde pela primeira vez comecei a conhecer profundamente a cultura do nosso povo e a ver como o meu povo vivia na verdade. Foi ali que conheci a face mais mortífera da guerra de Libertação com ataques diários a quartéis militares, mas que infelizmente destrocavam por engano e má pontaria dezenas de casas de pacíficos habitantes; muitas vezes depois de sairmos dos abrigos artesanais de sacos de arreia que meu pai fazia (onde nos enfiávamos quase todas as noites quando o aviso dos ataques era dado, sem saber se íamos sair com vida), sabíamos que dezenas de pessoas tinham morrido no último ataque. Havia muitas mortes. Foi assim que crescendo ao sabor da vida errante do meu pai, que por não “ter nada que é seu, tinha que trabalhar em diversos pontos do País onde ninguém mais queria ir, onde havia a guerra como Mansoa, Bissorã, Olossato, Cuntima, etc., etc. De certa forma fui conhecendo o país inteiro, os costumes e cultura de cada tribo do nosso povo. Meu Pai que falava mandinga, um pouco de fula, outros dialectos (era comerciante e fazia campanhas de mancara e arroz por isso também tinha que aprender) e papel (por ser filho de mãe papel de Biombo) me explicava a idiossincrasia do homem mandinga, papel, beafada, fula, balanta, etc., como comerciavam e quais seus padrões de honra, sentido do dever, apego a tribo e a família. E também não menos interessante a diferença cultural entre as diversas tribos. Nesses anos de crescimento e descobrimento quando todos os anos íamos passar ferias a Bubaque e metíamos em aventuras complicadas como uma que nos levou embargar em canoa de Bijagos para ir a Rubane e acabamos por ir parar a ilha de Orango onde passamos uns dias a a comer por caridade dos Bijagós (ali conheci uma comida do qual não me lembro do nome, feita feijão com açúcar e óleo de palma, mas de que ainda não me esqueci do gosto, passados trinta e tal anos). A ilha de Bubaque, que adorávamos, aliás foi palco de muitos acontecimentos que um dia tendo meios e vida vós contarei. Como aquela protagonizada por Alfredo Paulo Mendes (catita kunsi udju) com os guarda-costas de João Bernardo Vieira já depois de 14 de Novembro. Hoje vou narrar um acontecimento há muito guardado na minha alma, naquela parte desiderativa do ser, como tesouro de um tempo perdido, de um tempo em que se assim posso definir, a existência é mais profunda que o próprio ser que existe. Esta historia serve para os jovens terem uma ideia do “tempo de Luís Cabral”, como a do Alfredo serviria para terem uma ideia de como era o “tempo de Nino” pois historias pessoais as vezes dizem mais acerca de uma época que “histórias oficiais” feitas de datas e inaugurações. Cada um de vós que viveu nesse tempo, tem histórias iguais para contar, portanto esta história não é minha e dos meus companheiros, é a nossa história, a vossa história, que apenas calhou ser vivida por mim por estar nesse sítio nesse preciso momento, pois acredito que se vocês estivessem no meu lugar, com a minha idade, ela seria exactamente igual. Foram umas férias iguais a tantas outras que íamos passar a esse paradisíaco arquipélago. Geralmente levávamos tendas e acampávamos na praia de “Escadinha”; dessa vez, talvez devido a chuva intensa que se fazia sentir a noite dormíamos numa sala do Ciclo Preparatório. E por isso depois da parais vínhamos a tarde passear na vila. Eram meados de 78 ou 79 não me recordo bem, o que recordo é que as autoridades regionais de Bubaque - na pessoa do Chefe da Policia local, homem tristemente famoso pelos maus tratos que infligia a prisioneiros, com requintes de malvadez e por de uma pratica de tortura chamada “apolo” que segundo se contava resumia-se a por prisioneiros, amarados, toda a noite de cabeça para baixo e pernas para o ar – (Acreditam que isto se passava impunemente na nossa terra naquela altura? Isto e coisas piores, mas disso falarei depois) - prenderam dois dos nossos companheiros: Orlando Martins (Djamba) e João (Djony) Faria). Essa noite não dormi e não deixei ninguém dormir, andando de um lado para o outro na sala. Como disse estávamos hospedados no Ciclo Preparatório, onde por gentileza do Director Tino Bastos Pinto (e por ser período de férias escolares), dormíamos numa das salas de aula todos juntos. De manhã cedo fui a procura de notícias e ouvi dizer que resolveram levar os nossos companheiros, depois de uma noite terrível passada na prisão, numa total falta de respeito pela pessoa humana – eram menores – juntamente com outros prisioneiros de delito comum (ou alguns políticos?) a uma ilha deserta do arquipélago para construir as instalações artesanais (palhotas tradicionais, etc., onde segundo nos disseram ia haver uma espécie de encontro em “plena natureza selvagem de uma ilha desabitada” entre o Presidente Luís Cabral e um Vice Presidente qualquer do Governo Francês que viria visitar a Guiné. Ao saber disso, reuni os colegas e convenci todo o mundo ir a esquadra e num acto de rebelião exigir a libertação deles. Toda a gente concordou prontamente comigo (ainda hoje admiro a coragem deles, pois naquela altura já se sabia de fuzilamentos e outras coisas mais). Lá chegados disseram-nos que eles já estavam no porto a ser embarcados. Corremos para o Porto a tempo de os ver a entrar no bote da Policia. Dirigi-me a correr ao Chefe da Policia e exigi (quando se é jovem, devemos ser perdoados pela nossa temeridade) a libertação imediata dos meus amigos. Ao que ele com toda a calma (deve ter achado graça - pela minha idade - a minha insólita atitude) respondeu que eles foram presos pelo delito de andarem sem camisa na cidade, o que - se eu não sabia, que soubesse - era um crime. Vejam bem, a natureza do crime, nas ilhas Bijagós, onde 99% da população anda sem camisa, alem de que na ilha e na vila de Bubaque - que sendo naquela altura uma estância balnear - os turistas andam só de calção ou fatos de banho. Fiz-lhe ver que essa lei, aprovada ou não pelo Comité de Estado da Região era puro disparate numa ilha turística como aquela. Ao que ele respondeu com o clássico “dura lex sed lex” e que a lei era seria cumprida (na verdade a prisão deles foi ditada pelas hormonas em ebulição de miúdos de dezasseis anos que conquistando meninas locais, incorreram no desagrado de alguém). Quando vi que não o convencia argumentei que mesmo sendo crime andar sem camisa, eles ainda não tinham sido julgados e não podiam ser levados para o degredo por vontade do chefe da polícia. Ele apenas riu e mandou arrancar o bote. Mas o homem que estava no leme hesitou (talvez por não acreditar no que os seus olhos viam; que um rapaz qualquer como eu ousasse falar assim com o todo poderoso chefe da policia, que segundo se dizia mandava mais que o próprio Presidente da Região) e eu aproveitei essa indecisão. Perdido por um perdido por mil, tirei a minha camisa e atirei-a para o chão e disse que nesse caso que cumprisse a lei, pois eu também estava sem camisa. O chefe da polícia não queria acreditar no que ouvia, desceu do barco e perguntou dirigindo-se aos meus companheiros - meninos di Bissau - “se alguém mais queria ser preso”; Todos estavam de acordo comigo e apoiaram a minha decisão, alguns inclusive tiraram as camisas: se iam levar os nossos companheiros tinham que nós levar também. Fomos todos presos imediatamente, metidos no barco e levados para a tal ilha. Passamos uma semana sem comida, sem bebida, sem cobertores, sem absolutamente nada, numa ilha deserta que nem uma casa ou simples cubata tinha. Ainda hoje não me esqueci dessa semana. Só Deus é que salvou o Filomeno (Meno “de Nha Mama”) Pires de não ter morrido nessa ilha. Ele delirava com mais de 40º de febre, deitado na praia sem água para beber ou comida decente. Parece que quando veio já estava com um inicio de paludismo, que sem tratamento desenvolveu bastante. Depois, para não morrermos de fome resolvi, com um dos nossos, esconder na floresta e seguir o trilho dos Bijagós, até descobrir onde cultivavam (eles eram desconfiados e não queriam que se soubesse) e quando as sete horas iam embora nas suas pirogas, íamos desenterrar mandioca, e comer assim cru, a quantidade que podíamos. Depois de algum tempo, empurrados pela fome, liderados por Orlando (de todos o melhor caçador) conseguíamos caçar alguma coisa para comer. Um pássaro, um porco de mato (?) e grelhávamos carne ou peixe sem sal (foi ali que percebemos a importância do sal, pois mais do que a água potável, fez-nos falta). Bebíamos água da chuva e a água salgada estava sempre a entrar-nos pela goela abaixo quando íamos tentar apanhar peixes que a maré baixa, as vezes, deixava a umas dezenas de metros da praia. Também comíamos coco, frutos da palmeira e alguns frutos silvestres. Dormíamos (será que dormíamos?) na praia debaixo da chuva intensa, ou um vento gelado que vinha do mar; as vezes no meio da noite tinha que levantar da minha cama de areia (cavávamos um espaço para o corpo onde deitávamos), para acordar alguém que no sono a agua já estava a cobrir. Ou como quando o frio era insuportável levava toda a gente para junto dos Bijagós dançar e tocar até de manhã, debaixo da chuva (os Bijagós não viviam nessa ilha iam lá apenas cultivar mandioca e outras coisas, mas por alguma razão nessa altura faziam cerimónias que se traduziam em cantos, batuque e dança). Dançávamos que nem uns perdidos. Já cantávamos na língua Bijagó (acreditam?); Uma vez até ao raiar do sol, para cairmos exaustos na areia e dormir como só dormem rapazes de quinze dezasseis anos depois de uma farra. Só no sexto dia é que o barco apareceu de novo e nele vinha o Director do Ciclo Preparatório que preocupado, pediu para ir nós ver. Ficou totalmente desfeito e ao ver o Meno, que já não falava e nem podia comer. Lembro-me de ele me disser que se ele morresse a responsabilidade seria minha, pois sem a minha decisão ele não estaria lá. Infelizmente, embora boa pessoa, não percebia que era a nossa dignidade de homens que esteve em jogo. E que com a dignidade de um homem não se brinca. E que “mais vale morrer por algo que viver por nada”. Mas mesmo correndo o risco de ficar sem “um pouco da minha dignidade”, por respeito e amor aos meus companheiros tive que me humilhar, violentando a minha honra, pedi então ao responsável - responsável! Já notaram que nesse tempo quase todos os responsáveis eram irresponsáveis (sabendo eles ou não?) - no local, que pelo menos o Meno (doente, quase em estado de coma) fosse levado para Bubaque a fim de receber tratamento médico, ao que ele disse, que lamentava claro, mas que não tinha ordens para isso. Eu indignado até a raiz dos cabelos, fraco, magro que nem um palito, quase já mal conseguindo estar de pé (como disse, quando se é jovem, devemos ser perdoados pela nossa imprudência) lhe disse que desse ao seu chefe um recado meu: “se o meu amigo morresse, mesmo que “passasse mil anos eu voltaria para vingar”. Apenas me olhou, com aquele olhar de quem já viu muita coisa na vida, e mandou arrancar o barco. Fiquei desesperado, pois já estava com medo, não por mim, que de resto sabia que estava a fazer a coisa certa (se fosse hoje faria exactamente a mesma coisa), mas tinha receio que o rapaz podia morrer durante a noite. Tomei intimamente a decisão de não dormir essa noite e fiquei de vigília ao sono febril do meu amigo (ele nunca soube disso e nem ninguém, pois se soubessem seria motivo de gozo pela minha cobardia). Basto Pinto vendo que a coisa era séria tinha resolvido ficar na ilha connosco e nessa noite dormiu também na praia debaixo da chuva: dormir é maneira de dizer: aquela noite foi de um temporal intenso; o pior das nossas vidas se calhar. Parecia que a ilha ia ser engolida pelas ondas do mar ou coberta e afundada pela chuva. A maré subiu e cobriu a praia até as árvores. E Basto Pinto assustadíssimo ajudava-me a convencer os companheiros a saírem debaixo das arvores onde corriam se abrigar da chuva intensa que não parava de criar, pois eu tinha mais medo dos raios, que nos podiam matar instantaneamente, do que da chuva; Nessa altura, no íntimo do meu ser, sentia-me responsável por cada um dos meus amigos. Domingo, por volta do meio-dia - talvez por saber que o Director do Ciclo Preparatório estava connosco, ou por saber que um dos “estudantes” estava doente - o chefe da polícia mandou o barco vir nos buscar. Na areia da praia deixei (o nome da menina que mais amava nessa altura, pois acreditávamos que se escrevêssemos o nome da amada na areia da praia e a maré ao encher o cobrir, ela seria tua. Deve ser verdade… IV
ESPIRITO GUINEENSE OU A NOSSA CENTENARIA “KULTURKAMPF”
“O nosso objectivo é fazer a felicidade e progresso do nosso povo, mas nós não podemos fazê-lo contra o nosso povo. (…) Não se pode fazer a felicidade e o progresso de alguém conta a sua vontade.” Amílcar Cabral
No barco, na placidez desse Domingo - ao atravessarmos o nosso deslumbrante mar, a ver os peixes a saltarem nesse mar verde, de um verde tão maravilhoso que doía o coração - dei comigo a fazer pergunta tantas vezes feita e nunca respondida: Será que os homens nascem maus ou se tornam com a vida? Naquela idade, sentir e ver como a nossa terra é linda (a mais linda do mundo) e saber que somos donos dessa natureza criada por Deus há mil anos, e saber que a desperdiçámos, como já desperdiçamos a vida de centenas de nossos compatriotas (embora eu ainda não soubesse a totalidade do genocídio e com que brutalidade ela estava ser feito) foi um acordar de uma violência inesperada. Quando as luzes de Bubaque apareceram por fim no negrume da noite olhei para o meu inanimado e doente amigo que de olhos fechados, enrodilhado numa manta suja dos barqueiros, tremia levemente de febre. Nesse instante lembrei-me que quatro ou cinco anos antes, ele tinha chegado de Angola com a mãe, as irmãs e sobrinha fugindo de uma Guerra civil fratricida que grassava em Luanda e outras cidades desse grande país. Ele tinha partido com seis anos para viver em Angola e voltou com onze anos. Com o regresso dessa família comecei a conhecer a cultura angolana, com os discos que trouxeram, sobras de toda uma vida destruída nessa fuga tão obrigada quanto precipitada que milhares de Angolanos faziam para muitos cantos do mundo. Eles escolheram regressar a sua terra; com eles conheci o Rui Mingas, Teta Lando, Minguito, Urbano de Castro, Liceu Viera Dias, Sofia Rosa entre tantos outros. Com 12 anos, havia pouco que fazer e a gente repetia as musicas um atrás do outro; já sabíamos quase cantar em kimbundo, maravilhávamos com a voz do Teta pedindo a “senhora que escutasse a sua voz” , com “um piozo ame (um assobio meu)”, “namorada do conjunto” , “autocaro 45”, “chofer da praça” etc. Vieram magoados e revoltados pois lá eram gente respeitada. Cheguei a ver fotos da mãe desse meu amigo num jantar (em honra de Eusébio?) no palácio do Governador de Angola ao lado do Eusébio, Pantera Negra. Naquele tempo, naquele universo, sendo negra era quase uma façanha. D. Mama, Fausta Mendes Sequeira de seu nome - uma grande mulher. Teve a coragem de desafiar costumes enraizados e como mulher, ser pioneira em muitas coisas nessa provinciana província que era a Guiné. Era a mulher mais moderna do seu tempo em Bissau. Sempre falou comigo de igual para igual como se fossemos da mesma idade. É talvez dela é que me vem esse habito também. Ainda me lembro das tertúlias no bar dela, o famoso “Ala muta”, onde discutíamos tudo e analisávamos tudo. Das festas que o nosso “Grupo Rasta” lá organizava. Das nossas “despedidas” para ir estudar na Rússia. Que a terra lhe seja leve pois para o bem e para o mal, viveu a vida na sua plenitude, como poucos tiveram a coragem de viver. Tenho a honra de dizer que fui um amigo dela. Uma vez esse meu amigo, filho dela, que agora dormia placidamente, embalado pelo balouçar das águas do mar, me disse - talvez tenha ouvido alguém tão revoltado como eles naquela altura da guerra de Luanda – “o que se passa em Angola é que “os pretos também querem mandar”. A discussão que se seguiu foi feia e quase paramos de falar; embora tenha sido o meu primeiro amigo (éramos amigos desde os nossos cinco anos (como nos contava a avo dele), antes de entrarmos na pré-primária no “Marques Palmeirim”). Discutimos pois eu que embora com doze anos já estava razoavelmente politizado e essas palavras me soavam a insulto. Mas agora, cinco anos depois, nesse barco que cortava velozmente as águas procurando a ilha maravilhosa, eu pensei que apenas a questão é que tinha sido mal colocada. Não era “se nós podíamos mandar”, mas “quem entre nós podia mandar”. Ou como dizia Cabral “temos que saber bem quem vai mandar na nossa terra (…)”. Filomeno Mendes à sua maneira teve razão só que, menino, não soube por a questão. Anos depois na Rússia, já homens feitos quando o confrontei com essa frase recusou o ter proferido jamais. O que também era verdade de certa maneira. É desse tempo, em que eu já terminando o Liceu ia visitar o meu pai em Mansoa onde estava colocado, mudando de candongas decrépitas, as vezes dormindo em palhotas -quando a candonga estragava em plena viagem, pelas estradas em mau estado de então - de gente do nosso povo que não me conheciam, mas aceitavam-me na sua humilde casa e até o seu humilde jantar as vezes me ofereciam, me fez conhecer e sentir de modo profundo que este povo é um só povo e que sou parte intrínseco deste povo. E deste tempo que vem a minha convicção profunda que existe um “espírito guineense”, mas não existe a “Nação guineense”. Esta categoria existe só no povo como um todo. Não existe e nem pode existir em indivíduos particulares. Ela é geradora da “Guinendade” que defini antes como um conceito “permanente”, “invisível” e “secular”, que esteve na base da gestação da nossa Nação. Esse conceito, esse espírito define-se pela sua colateralidade e redundância em ser explicada. Este conceito que chamo “espírito guineense” é um conceito não “evidente por si” mas “intuída e pressentida” . Um “sentimento” apenas que por si e resiste a uma explicação formal. Temos que olhar para dentro de nós para encontra-lo. Mas ao olharmos para a nossa alma individual só o podemos sentir quando olhamos para outro guineense e percebemos que ele e nós somos parte de uma identidade. Que somos “Carne da mesma carne”. Quando sentimos isso, sentimos o “espírito da nação”, sentimos a Nação finalmente. Eu como individuo, como ser humano Guineense, de sangue papel, sei que não posso ter mais identificação ou afinidade com um papel do que com um manjaco, mandinga ou balanta. E sei isso não porque alguém me disse que deve ser assim ou porque é um pressuposto justo; Eu sei porque o sinto quando olho para um guineense em qualquer parte do mundo onde vou. Entendo e sinto isso seja ele um lavrador de Tombali ou um pescador de Cufada. Portanto, que a minha identificação nacional com eles, “como meus conterrâneos” é total, percebida e inquebrantável, independentemente de qualquer problema que possa ter com eles como indivíduos particulares.
Sei que posso amar da mesma maneira um mancanhe ou felupe ou bijagó ou beafada porque sei que temos uma ligação intrínseca e permanente, que me ultrapassa como individuo e não é explicável a luz de certas considerações objectivas, mas real, que só encontra a sua realização num nível superstrutural para além do indivíduo como tal, consubstanciada no “espírito guineense”. Este “conceito, “espírito guineense”, sempre existiu latente a espera da luz do dia para o transformar no “espírito da nação” ou “alma do povo”. Por isso esta categoria, no “meu edifício sociológico da nação” pertence a superstrutura, no sentido dado por Marx a este noção. Mas não o considero subjectivo pois o entendo objectivamente tanto dialecticamente como na sua consubstanciação prática.
Aqui devo fazer uma explicação sucinta para os leigos:
Marx entendia que a estrutura de qualquer sociedade é constituída por dois níveis: infra-estrutura e superstrutura. A infra-estrutura é constituída pela base econômica, ou seja, pela unidade das forças produtivas e das relações de produção. Já a superestrutura seria formada por dois níveis:o nível jurídico, composto pelo direito e Estado, e o nível ideológico, constituído por diferentes ideologias religiosas, morais, jurídicas, políticas, etc. Assim, a infra-estrutura é a base que determina toda a estrutura social, suportando e constituindo a superestrutura. Portanto a infra-estrutura, a base econômica de uma sociedade, fundamenta e determina a superestrutura. A realização dessa percepção, do “espírito guineense” e transforma-la no “espírito da nação” - esta acima do entendimento de etnias ou raças que mergulham as suas raízes num passado comum - é uma obrigação para com os nossos heróis e mártires que deram o seu sangue para a sua criação. É este espírito que esta dentro de cada um de nós que só terá a sua realização prática quando se tornar uma entidade histórica consubstanciada numa realidade superior que não é mais do que a própria Nação. Não baseio portanto, a minha defesa total e intransigente da criação da nossa nação na existência de um “pressuposto” “acima das tribos” ou num “eu nacional guineense” assente na unidade da língua e na identidade da raça, que não existem nem aqui nem em lado nenhum. Baseio essa defesa no acreditar que é nosso dever, acima de todas as coisas, cria-lo. E criar a nossa Nação não é uma decisão que nos assiste ou não, uma questão de querer ou não, de estar de acordo ou não: é um imperativo ético e moral. É nosso dever para com todos os que deram a vida, desde os tempos imemoriais, para esse propósito. Baseio essa necessidade e desiderato no nosso “Chão” comum, na “Luta” comum secular do nosso povo, na nossa “Guinendade”. Portanto “a consciência nacional” enquanto cultura; uma cultura comum feita e criada numa “Kulturkampf” centenária legitimada pelo sangue derramado. É o destino histórico do nosso povo. Pois somos um conjunto de pessoas com um passado glorioso comum com um presente inominável mas com aspirações e sonhos comuns para o futuro da nossa nação e dos nossos filhos. De outro modo como posso explicar a mim mesmo e a minha filha quem eu sou e em última instancia, quem ela é? Ou como disse anteriormente, é daqui que parto para a construção da minha história como ser humano, a nossa história como Povo. Ou em alternativa tenho que considerar os Guineenses como apenas um conjunto de tribos desgarradas, ao sabor dos ventos da história, suportando uns e outros num pedaço de terra pequeno demais para eles.
V
FILINTO AUGUSTO FREITAS DE BARROS OU QUEBRA CUCO NA BAMBAIA
“ kuma pó tudo tarda que tarda na mar e ka ta bida lagarto.” “mundo tem di rábida pa bu sedo alguim dentro de bu rosson”
José Carlos Schwarz
Acredito que o homem Guineense e acima de tudo a juventude Guineense, seja no território nacional, seja no Senegal, Portugal, Espanha, América, Cabo Verde e vários outros países do mundo para onde foram expulsos pelos sucessivos governos (desgovernos alias) que já passaram por este pobre País, já não se identifica com os nossos governantes e até têm um certo desprezo e menosprezo por alguns e a propósito do que dizem ou fazem.
Como seus pobres pais, já perderam tudo o que havia a perder: Já perderam os jardins-de-infância, já perderam as escolas, já perderam os liceus, já perderam a educação, o ensino, a cultura, a própria História do seu País (que há uns anos para cá não tem História). Já perderam até a própria condição de serem simplesmente jovens, pois não são jovens como os outros jovens de todas as partes do mundo, que têm motivos para sorrir e acreditar num futuro melhor. É uma juventude que muitas vezes se aliena em drogas e álcool por não encontrar saída possível. Que procura por todos os meios sair deste pais que lhes viu nascer onde eles só vêem negrume, desesperança e sofrimento no seu futuro
Mas acredito que estes jovens, diferentes dos seus pais, podem até aguentar aquilo que hoje sofrem e já sofreram, mas para os seus filhos, já não aceitaram de braços cruzados, aquilo que os seus pais aceitaram. Pois estes percebem que vivem como vivem, porque os seus pais foram vítimas de um regime nefasto contra o qual não lutaram e nem puderam lutar (salvo alguns poucos). Possuidores dessa verdade, orientados por alguém, lutarão com todas as suas forças, ate a morte, se preciso for para se libertarem e voltarem a ter dignidade. Pronta a construir um outro mundo, novo e credível onde sabem que terão o seu lugar por direito. Esta nova geração já esta preparada; só precisa de um chamamento. Esta pronta e acima de tudo, como os proletários de Karl Marx, já não têm nada, mais nada a perder (nem as algemas que àqueles tinham). Esta juventude entendera por fim que o fim último de cada guineense, é a construção da sua Pátria e nesse processo estabelecer uma sociedade mais justa e igual.
Acredito que esta juventude há muito que esta pronta, pronta para destruir este mundo velho com todas as suas considerações morais, sentimentais e históricas já ultrapassadas até a caducidade. Ela lutará para restabelecer o direito, a dignidade e respeito na sua casa, enquanto um representante deste povo estiver vivo. Nisto eu creio profundamente. Pois os espoliados são mil vezes mais do que os lucraram com este estado de coisas. E também sei Esta juventude possui em estado latente, um dinamismo poderoso que apenas aguarda o momento de ser despertado, concentrado, direccionado e posto em acção.
Então teremos um governo que não se contentara apenas em gerir a miséria em vez de a combater. Teremos então uma nação que será próspera e poderosa alicerçada na solidez das suas ideias comuns sobre questões fundamentais. Na primazia do povo sobre o indivíduo. E será o tempo em que “todas as crianças serão pétalas da mesma flor” E minha profunda convicção advém do facto de acreditar que somos uma comunidade feita de homens capazes e íntegros; e se os homens “escrevem a sua própria história, segundo as determinadas condições que lhes são impostas”, então também vamos escrever a nossa, acreditando que somos um povo único, soberano e orgulhoso da sua pertença. Por isso evocando alguém todos conhecem, eu sonho um dia viver numa nação em que os meus filhos sejam julgados pelo seu carácter e não pela pertença tribal ou a cor da sua pele. Espero viver para que quando esse dia chegar na minha Guiné - quando “Um boletim de voto tiver mais força que uma bala” - caminhar juntamente com o meu povo para a urna onde os boletins depositados reflectirão apenas a vontade do povo, pois mais não será necessário.
Quando esse dia finalmente chegar, meu amigo Filinto, nesse dia, sendo tu o Mussunda, sendo tu o nosso povo, direi como Agostinho Neto
Filinto amigo (...) no espírito e na inteligência nós
somos! Filinto amigo Contigo Com a firme vitória da tua alegria e da tua consciência
Vem comigo, Filinto amigo, deixa hoje o Proudhom de lado, deixa os “Subterrâneos da Liberdade” e vem… vem comigo escrever a trilogia do nosso povo, vem atravessar outra vez, pela centésima vez o “Pilum” da nossa juventude perdida, mas desta vez não, ficaremos parados a sombra da Mesquita conquistando uma garota, desta vez não “sairemos” nos “Bombeiros”, nem nos “Coqueiros”, desta vez “sairemos na América dos nossos sonhos, para junto com os imigrantes do mundo inteiro, procurando o sonho, passar debaixo da estátua da Liberdade, dali iremos a Paris ver a Josephine Baker a dançar, e no intervalo iremos a Praça Vermelha ouvir o ressoar da botas daqueles, que saiam dali directamente para a frente de combate contra os Facistas (lembras-te?), subiremos o Amazónias com Pablo Neruda para “confessarmos que também vivemos”, iremos dali a Catio, terra dos teus antepassados, mas antes pararemos em Bambaia “pa nó quebra cuco”, para embebedarmos do vinho de palma numa celebração eterna e por fim, Filinto amigo, atribalmente abraçados, desceremos o Rio Grande de Buba, o Rio Grande de Bolola, o Rio Grande de Guinalda, o Rio Nunes e Geba , todos os Rios Grandes do nosso povo, para sentar nas suas margens e olhar as estrelas da nossa pátria no céu mais lindo do mundo… e então, nesse momento magico, a tua dor, a dor do nosso povo “dur, dur na bu alma” por fim será mitigado.
Atenciosamente
Arq. FERNANDO J. P. TEIXEIRA
* Licenciado em Arquitectura (Rússia 1991). Pós graduado em Urbanismo (ISCTE)
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