Análise jurídico-constitucional

 

 

 

 

 

 

Guiné-Bissau

 

Análise jurídico-constitucional

 

Por: Jurista guineense

 

22.03.2007

 

Impugnação da moção de censura

 

       I.      Os dados da questão

 

Na base do Acordo de Estabilidade Governativa e Parlamentar, três dos principais partidos guineenses (PAIGC, PRS e PUSD) vincularam-se ao Pacto de Estabilidade Política Nacional[1].

 

O consenso dos três partidos fundamenta-se, entre outras razões, nas seguintes:

Nestes pressupostos os partidos signatários do Pacto, objectivam «a criação de um verdadeiro clima de estabilidade política duradoura, alicerçada no diálogo franco e na busca permanente de consensos em torno das grandes questões nacionais», perspectivando: «a criação de uma base parlamentar sólida de entendimento baseado nos resultados eleitorais das legislativas; a criação de um Governo de Consenso Nacional; a implementação de reformas urgentes e inadiáveis, susceptíveis de tirar o país da actual situação de estrangulamento e paralisia funcional do Estado e da Administração Publica» (art. II do Pacto).

Depois da assunção da Aliança Nacional, os três partidos submeteram a sua intenção e os documentos entre si outorgados à apreciação prévia do Presidente da República (PR) e solicitaram à Assembleia Nacional Popular (ANP) um debate com urgência para discutir uma moção de censura ao Governo.

 

No dia 19 de Março, em sessão parlamentar convocada para o efeito, não obstante os tumultos verificados, a ANP aprovou a moção de censura apresentada pelos partidos com 51 votos a favor, 25 contra e 8 abstenções.

 

A moção de censura foi oficialmente entregue ao PR no dia 21 de Março.

 

Hoje, 22 de Março, um «grupo de deputados» apoiantes do Governo, pronuncia o interesse de impugnar junto à Mesa da ANP a moção de censura, com fundamento na violação da Constituição e na preterição de formalidades previstas para a validade do acto.

 

 

  II.      Análise jurídico-constitucional

 

 

1.  Consequências da assinatura do Pacto de Estabilidade Política Nacional.

 

A assinatura do Pacto revoga «todos os demais acordos de igual natureza e conteúdos assinados por qualquer das partes signatárias com terceiros» (art. XIII do Pacto). Ou seja, doravante, o PAIGC, o PRS e o PUSD, regerão as suas relações institucionais na base de uma nova orientação política, traduzida em novos documentos: o Acordo de Estabilidade Governativa e Parlamentar e o Pacto de Estabilidade Política Nacional.

 

Esta nova Aliança implica automaticamente, por força do deliberado pelo colectivo que a compõe, a revogação do acordo que amparou a criação do Forúm de Convergência Democrática, a entidade na base da qual o Governo se sustinha parlamentarmente e que integrava o PAIGC (ainda que membros dissidentes), o PRS e o PUSD.

 

Dito por outras palavras: o acordo político-parlamentar que serviu de sustentáculo e viabilizou a formação e a durabilidade do actual Governo perdeu toda a eficácia, sendo inexistente e, consequentemente, acatando a ilegitimidade de exercício do poder político.

 

Juridicamente, a inexistência do Fórum de Convergência, só por si, implicaria a demissão do Governo.

 

Com efeito, um Governo sem representatividade parlamentar viola expressamente o disposto no art. 98.º da Constituição, que estabelece que a nomeação do Primeiro-Ministro é condicionada aos resultados eleitorais e à audição dos partidos representados na ANP.

 

Logo, a falta de representatividade parlamentar de um Governo em exercício indicia uma grave crise política, pondo em causa o normal funcionamento das instituições da República. O que origina a que a Constituição faça impelir sob o PR a obrigatoriedade de demitir o Governo, auscultando o Conselho de Estado e os partidos com assento parlamentar (art. 104.º, n.º 2 da Constituição).

 

2.  A Moção de Censura

 

Contudo, perante a inobservância dos parâmetros constitucionais, coube à ANP, órgão supremo de fiscalização política, dar forma política e constitucional à nova Aliança partidária, de modo a consubstanciar a nova realidade constitucional, actualmente reflectida no seio parlamentar.

 

Na nossa Constituição, o único acto político-constitucional da iniciativa dos deputados que leva à demissão do Governo é a moção de censura (art. 85.º, n.º 1, al. e), in fini, e 104.º, n.º 1, al. d) da Constituição).

 

Efectivamente, a moção de censura é um dos instrumentos de controlo político do Governo à disposição da ANP, que ou incide sobre a execução do programa do Governo ou sobre assunto de relevante interesse nacional.

 

É da essência de «princípio parlamentar» a sujeição do Governo ao controlo político do parlamento, que através da moção de censura põe em jogo a responsabilidade política do Governo.

 

A iniciativa dos nossos deputados de responsabilização governamental perante a ANP repousa sobre o poder da ANP retirar ao Governo a confiança política e da qual ele necessita para governar, nos termos da interdependência institucional entre o governo e a ANP.

 

No quadro da Lei Suprema e reportados aos fundamentos nos quais se alicerçaram a moção de censura, bastando para o efeito a inexistência de base parlamentar do Governo, a moção de censura acaba por surgir em defesa do Estado e em defesa da Constituição, vindo em defesa da forma de Estado tal como ela é normativo-constitucionalmente conformada. 

 

O regimento da ANP considera como constituído poder dos deputados apresentar moções de censura ao Governo (art. 15, al. g).

 

A moção de censura é um acto de direcção política não subsumível aos cânones normativos e, enquanto acto político da ANP, a moção de censura deve sujeitar-se aos parâmetros constitucionais e revestir a forma de Lei, de acordo com o estabelecido no art. 91.º, n.º 2, da Constituição e o disposto no art. 86 n.º 2 do regimento da ANP.

 

Relativamente aos procedimentos que precedem este acto, o primeiro reparo advém do facto de não existe qualquer disposição legal que impeça que possa surtir de um debate de urgência (ou sobre o estado da Nação), requerido pelos deputados, a aprovação de uma moção de censura. Tanto mais que o regimento admite a requisição e realização de debates de urgência sempre que e quando se pretende tratar de matéria que envolva a defesa da ordem democrática (art. 60.º - A, n.º 2, al. a) e, não se encontram estabelecidos procedimentos vinculativos e específicos a serem observados durante os trabalhos, designadamente o direito de intervenção do Primeiro-Ministro, não sendo, por conseguinte, legalmente exigível nem sequer a convocação ou notificação do Primeiro-Ministro, num debate que possa concluir na aprovação de uma moção de censura ao executivo.

 

Mesmo supondo que na realidade foram preteridas formalidades legais essenciais que viciam a moção de censura, de modo a se possa considerar que o acto seria formalmente inconstitucional, essa inconstitucionalidade não afectaria a validade nem a eficácia do acto político, mercê da inconstitucionalidade não resultar da violação de disposição fundamental. Porquanto, constitucionalmente, o parâmetro que orienta uma moção de censura constitui apenas na obrigatoriedade da iniciativa caber pelo menos a um terço de deputados em efectividade de funções.

 

A possibilidade de ser dirigida a impugnação da moção de censura à Mesa da ANP choca, desde logo com o estabelecido no art. 31.º do regimento, onde se tipificam as competências deste órgão, não se permitindo o controlo de vícios interna corporis.

 

A invocação da inconstitucionalidade da moção de censura por violação do regimento e a possibilidade de controlo jurisdicional, isto é pelo Supremo Tribunal da Justiça, de maneira a que possa verificar a regularidade do processo de formação de acordo com o regimento, a fim de, concomitantemente, poder certificar-se da violação ou não da própria Constituição, é uma situação em si inconstitucional. Na medida em que a nossa Constituição consagra um sistema de fiscalização da constitucionalidade concentrado, por via incidental. A fiscalização incide apenas sobre actos normativos (art. 126.º), não se prevendo a fiscalização abstracta por via principal.

 

De facto, a Constituição guineense só permite a fiscalização da constitucionalidade de normas, ora a moção de censura é um acto político, não um acto normativo. E, ainda que o art. 15 do regimento permita a fiscalização da constitucionalidade por via principal, esta norma apenas permite aos deputados requerer a declaração da inconstitucionalidade de normas.

 

Portanto, na Guiné-Bissau o controlo jurisdicional do acto político é inconstitucional porque viola o princípio da separação de funções, princípio que funciona como freio, balanço e controlo na ordenação de órgãos e funções, de forma a obter o equilíbrio do poder; e viola a norma constitucional que atribui competência e forma do acto político de carácter geral.

 

 

3.  Eficácia política e jurídico-constitucional da moção de censura

 

A ANP é o supremo órgão legislativo e de fiscalização política representativo de todos os cidadãos guineenses. Ela decide sobre as questões fundamentais da política interna e externa do Estado (art. 76.º da Constituição).

 

Segundo o disposto no art. 104.º, n.º 1, al d) da Constituição, a aprovação de uma moção de censura pelos deputados acarreta a demissão do Governo, tratando-se de uma norma constitucional preceptiva que, ao contrário da programática, é uma norma de eficácia incondicionada, imediatamente eficaz, obrigando o Estado, sem que este possa alegar que não estão verificadas as condições de concretização; e, igualmente, uma norma preceptiva exequível por si mesma, por não depender de qualquer acto legislativo posterior para ganhar plena eficácia, dispensando concretização legislativa.

 

O princípio constitucional da máxima efectividade, também designado por princípio da eficiência ou princípio da interpretação efectiva, impõem que a uma norma constitucional deve ser atribuído o sentido que maior eficácia lhe dê.

 

O princípio da constitucionalidade, da separação e interdependência dos órgãos de soberania funciona no caso de uma moção de censura, que acarrete a demissão do Governo, na demanda do PR, dentro do quadro da estrutura organizatória funcional constitucionalmente definida, num esquema triádico de poderes políticos – PR, AR, Governo – e de interdependência funcional entre o PR e a ANP.

 

Consequentemente, demitido o governo por moção de censura dos deputados, compete ao PR, tão-somente, observar o estabelecido no art. 98.º da Constituição, como sendo o mecanismo constitucionalmente previsto para o retorno à normalidade constitucional e institucional, nomeando Primeiro-Ministro, tendo em conta os resultados eleitorais e ouvidos os partidos políticos representados na ANP, intervindo enquanto símbolo da unidade, garante da Constituição (art. 62.º), defendendo-a (art. 68.º al b).

 

 

Quando existe uma normação jurídico-constitucional ela não pode ser postergada quaisquer que sejam os pretextos invocados. Assim, o princípio da constitucionalidade postula a força normativa da constituição: (1) da pretensão de prevalência de «fundamentos políticos», de «superiores interesse da nação», «da soberania da Nação» sobre a normatividade jurídico-constitucional; (2) da pretensão de, através do apelo ao «direito» ou à «ideia de direito», querer desviar a constituição da sua função normativa e substituir-lhe uma superlegalidade ou legalidade de duplo grau, ancorada em «valores» ou princípios transcendentes

 

4.  Conclusões:

 

a)  Nem a nossa Constituição, assim como nenhum diploma legal atribui legitimidade a um «grupo de deputados» para impugnar uma moção de censura da ANP – acto político, com forma de Lei;

 

b)  A Mesa da Assembleia é incompetente para se pronunciar sobre a impugnação de uma moção de censura;

 

c)  O Supremo Tribunal da Justiça, órgão competente para a fiscalização da constitucionalidade das normas, encontra-se constitucionalmente impedido de apreciar a constitucionalidade de um acto da ANP;

 

d)  A aprovação de uma moção de censura pelos deputados acarreta a demissão do Governo;

 

e)  A moção de censura não viola quaisquer dos parâmetros, princípios ou normas constitucionais, por se apresentar em conformidade com os mesmos;

 

f)  A norma constitucional que estabelece que a aprovação de uma moção de censura acarreta a demissão do governo é uma norma constitucional preceptiva, imediatamente eficaz e exequível por si mesma;

 

g)  A actuação do PR deve conformar-se aos ditames da Lei Suprema, viabilizando o retorno imediato da normalidade constitucional


 

[1]Num universo de 100 deputados, 45 são do PAIGC, 35 do PRS, 17 do PUSD, 2 da União Eleitoral e 1 da Aliança Popular Unida

 

 

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