A pirâmide do embuste

 

 

 

Por: Norberto Tavares de Carvalho, « O Cote»

 

 

27.05.2008 

 

Ao ver e ao ouvir do que se diz e … se escreve, levo-me por vezes a pensar que afinal cada um pode ter razão do seu ponto de vista … mas que também, não é impossível que toda a gente esteja errada! A razão é simples: estamos à pega com um vício de fundo e de forma. Porquê? Vejamos um exemplo recente: Numa edição da « Gazeta de Notícias »[1], um leitor teve a complexa tarefa de repôr « … a verdade dos factos sobre as matanças na Guiné-Bissau ». Um exercício que considero extremamente delicado e que ele decidiu abordar de ânimo leve sem se preocupar com as consequências das suas alegações. Aparentemente, foi em reacção à minha intervenção sobre a morte do Comandante Abdulay Seck, publicado no Projecto Contributo e que alguém, de boa fé, julgou importante difundir na « Gazeta ».

 

Ao ler o depoimento do Sr. Mário Ussumane Baldé, pois dele se trata, que a coberto de um descontentamento que até posso considerar legítimo porque reage sob efeito dos graves deslizes cometidos no periodo da reconstrução nacional, confesso que não fiquei surpreendido, nem chocado, pela simples razão de que conheço a versão de cor.

 

E esta versão, como todas as outras, tem a sua origem  nos rasgos de oratórias feitas após o golpe de Estado do Primeiro-Ministro João Bernardo Vieira, visando encobrir verdadeiras responsabilidades nas matanças e nas injustiças cometidas no país sob o seu governo, vituperando a Segurança do Estado e certos chefes militares, transformando uns e outros em bodes expiatórios.

 

E na aula que deu à sociedade guineense, força é de constatar que a lição foi bem aprendida senão mesmo encornada. Hoje, ainda há os que acreditam que as razões evocadas por Nino Vieira no seu assalto ao poder correspondem à verdade. Que houve execuções e torturas é matéria indiscutível. Mas que se pode admitir que depois dos responsáveis terem sido engaiolados e afstados de cena, se morra ainda na Guiné apenas para que se continue a morrer, que se torture e se persiga; quer dizer que há algo de errado nos cálculos.

 

Quando todos são culpados, e isto é um facto, teria bastado voltar-se sobre o passado até ao ponto em que se desvinculou do ideário perseguido e, a partir daí, retomar o caminho. No entanto, ainda hoje o gregário separatista do 14 de Novembro continua a clamar as suas razões, a velar cerimoniosamente pelo conjunto dos factos utilizados de maneira sugestiva, para erigir conscientemente uma pirâmide cujas camadas foram sobrepostas pelas « Razões do 14 de Novembro ».

 

 A pirâmide da mentira, do embuste! Se tivessem dito ao povo que o 14 de Novembro foi feito para acabar com a unidade da Guiné e de Cabo-Verde, talvez não estivessemos aqui a exaltar-nos gratuitamente… Porque afinal, a única consequência do acto foi a separação com Cabo-Verde. De resto, tudo o que não piorou … retrocedeu e, de transitório em transitório, o povo guineense teve que enfrentar uma Guerra civil!

 

Hoje, a osmose que divide a sociedade guineense tem ainda a ver com a questão da identidade (etnias, classes, afinidades, etc.). O 14 de Novembro só conseguiu ressuscitar os velhos demónios…

 

Mas voltemos ao assunto inicial: que um número reduzido de ex-prisioneiros libertados após o golpe e servindo-se duma estratégia institucional que permitiu que fossem maltratados, se quisesse transformar em grupo de heróis com declarações à rádio e à imprensa escrita, isso posso compreender. Mas que aos apontados como carrascos que até hoje nunca tiveram a oportunidade de se exprimir e que agora, ricos de ensinamentos das sociedades democráticas ocidentais, da adesão aos princípios dos direitos universais e à evolução dos meios de comunicação podem fazê-lo e que cada vez que o fazem vozes moribundas se erguem para os vaiar, isto já não posso aceitar. Se acham que sofreram por minha causa estão enganados.

 

Eu pelo menos estou consciente de que não sofri pelas proezas que me atribuiram. Assumi-me sim pelo Estado, pela Pátria, pelo povo e pelo compromisso.

O PAIGC não ia endurar sacrifícios, perder o mais prestigiado dos seus dirigentes para depois de conquistada a vitória pôr logo o poder a leilão. Qual é o país que tem uma boa segurança? A República não se discute, defende-se! E numa segurança que se respeite não há lugar para cordeiros … nem para lobos tão pouco.

 

Se pela minha militância no Partido deveria morrer de isolamento, de envenanamento ou de castigos corporais na prisão (saibam que passei por estas provas, só que os meus dias não estavam contados) não me ajoelharia diante de nenhum batoteiro! João Saoul Jacob não teve a mesma sorte e foi imolado pela pirâmide. Ninguém merece tal morte! Não se esqueçam dele!

 

Mas há algo que o Sr. Mário Ussumane Baldé menciona no seu depoimento, nomeadamente sobre a morte da Sra. Obiara Sambú, que também não posso deixar passar: se espíritos existem, acredito que sim, o desta falecida não estará satisfeito ao ver que atribuem a sua morte a pessoas completamente alheias ao seu infortúnio. Teria razão porque isso quereria dizer que as identidades dos verdadeiros autores da sua execução estariam  a ser positivamente encobertas. E isso é intolerável! Para mais, dizer que minto quando digo que antes do corpo sem vida do Lay Seck nunca antes tinha visto um cadáver,  é uma autêntica vocação de vaidosia.

 

Tomar o que foi pelo que se deseja, o ser pelo dever, é um processo que afasta decisivamente a consecução dos factos. Aos surdos, mudos, cegos e malentendidos advirto: nunca fiz parte das instâncias (se instâncias alguma vez existiram) que decidiam dos fuzilamentos; nunca fuzilei alguém « … nas matas da Guiné »; nunca tive a responsabilidade (nem o interesse) de mandar fuzilar quem quer que fosse; nunca assisti a fuzilamentos. Simples azar de circunstâncias? Talvez sim, talvez não… Em contrapartida, alguém já teve a coragem de pôr em causa a « inocência » de Nino Vieira nos fuzilamentos?  Eis o que os seus subordinados de armas, com os quais estive preso durante dois anos (1980-1982) na Segunda Esquadra, confiaram um dia: que foi Nino Vieira, na qualidade de chefe máximo do exército, rodeado dos seus lugares-tenentes, quem comandou pessoalmente o pelotão que em Cuméré (1975 ?), executou os oficiais dos Comandos Africanos após a intentona falhada do General Spínola em Portugal.

 

Disse-se até que, nesse mesmo dia (ou num outro), um dos sentenciados de nome Braima N’dongo, mais conhecido por Braima « Tchuá », conseguira libertar-se das amarras tentando chegar às matas. Sob as ordens do mesmo Nino Vieira, Braima « Tchuá » foi apanhado e fuzilado no mesmo lugar. Verdade ou não, não sei! Mas vejo mal esses altos graduados do exército caluniarem o Chefe se não tivessem assistido ou pelo menos tido a informação em primeira mão. A Segunda Esquadra não era nem o local, nem o momento, e nem nós (elementos da segurança), o público destinado a compensar as frustrações. Nenhum dos oficiais connosco aí preso, contestou o facto. Por isso, sejamos enfim lúcidos, o 14 de Novembro, para acabar com as injustiças, não podia oferecer sólidos valores de substituição.

 

E se o Nino teve o descaramento de se representar no poder depois de ter sido humilhado pela derrota de 1999,  é que está convencido de que os guineenses são burros. Hoje, se vontade política e governativa existirem para se repôr a verdade, então que se criem condições objectivas que concitem a aderencia de todos e tornem a reconciliação viável. Isso permitiria aos que aprenderam sem nada entender, de se interrogar sobre a realidade ou a probalidade das responsabilidades pretendidas bem como das interpretações que elas suscitam.

 

E seria interessante ver a diferrença entre o que as massas aplaudem e o que cada cidadão sente na sua secreta intimidade. Para tratar este sujeito na sua singularidade, não seria  de somenos importância corporizá-lo à volta duma estrutura reconciliativa nacional. Só que por validar esta orientação, as instâncias competentes deveriam manifestar, sem reservas, a vontade de que o processo ocupe de facto, o lugar de destaque que lhe compete e não apenas,  em ambientes de platonismos sem consequências, deixando propositadamente que se continue a rotular argumentos velhos com palavras novas. A meu ver, só em tais condições é que as teses de uns e de outros poderão mergulhar as suas raízes.

 

 

Genève, 27 de Maio de 2008.

 

[1] Mário Ussumane Baldé, Secretário-geral da RGB, « Gazeta de Notícias » 13 de Dezembro de 2007.

DEPOIMENTO DE MÁRIO USSUMANE BALDÉ

 


NOTA DO EDITOR: O presente texto da autoria de Norberto Tavares de Carvalho , « O Cote», publica-se como direito de resposta a pedido, em relação ao depoimento do Sr. Mário Ussumane Baldé, publicado no jornal "Gazeta de Notícias" de 13.12.2007.

O mesmo texto que ora se publica foi igualmente encaminhado para publicação no Jornal "Gazeta de Notícias".

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