A PROPÓSITO DE AUTO-ENGANO NA ANÁLISE POLÍTICA GUINEENSE
Roberto Quadé *
msiao06@yahoo.com.br
20.06.2009
Há algum tempo para cá com a massificação dos meios de comunicação eletrônica, ficou mais fácil veicular nossas opiniões numa velocidade assustadora, resultado do processo da globalização na comunicação. Assim, cada indivíduo pode participar de forma ativa na vida política do seu país através de sua opinião, ainda que este esteja bem distante dele.
Foi com base nesta realidade que tomei contato com diferentes conjecturas dos meus queridos conterrâneos no que se refere à situação sócio-política da Guiné-Bissau, sobretudo, nos que se referem aos últimos acontecimentos sombrios que têm pairado sobre o nosso país. Estas posturas animam-me bastante. Em parte, porque cada um está fazendo uso consciente do seu direito sagrado de livre expressão; e por outro, porque deflagra o interesse crescente às questões do nosso país. No entanto, é nessa conjuntura que decidi discorrer um pouco sobre os últimos acontecimentos na Guiné e participar do debate em que alguns dos meus colegas acadêmicos postaram suas opiniões.
Acredito pois, que ninguém concordaria que assassinatos, golpes de estado, ditaduras, expor um povo à mais alta miséria e privação, sejam caminhos para a construção de uma nação. Alguns apontaram sem escrúpulo as questões tribais como origem do que está acontecendo na Guiné, todavia, propositalmente, deixaram de perceber que os problemas tribais são apenas consequências do que se tem vivido, fruto de sucessivos governos e governantes arrivistas e incompetentes que dirigiram a Guiné-Bissau desde a independência.
O apelo para questões tribais é recurso de pessoas que manifestam algum tipo de clivagem política; pessoas ultrapassadas e descontentes com as rupturas naturais que estão ocorrendo na Guiné-Bissau e que ocorrem em qualquer sociedade para que ela possa progredir e se renovar. Assassinar um Presidente da República e seu Chefe do Estado-Maior General das Forças Armadas, é a prova de um desmando total já existente num país mal governado desde os seus primórdios e não a origem deste.
Somando ao fato recente dos assassinatos arbitrários de dois expoentes do nosso cenário político sem direito a julgamento nem a devida condenação a que supostamente teriam, temos a prova de que na Guiné-Bissau a sociedade política vive uma série de problemas relacionados com a crise moral e política como ápice da desordem generalizada que se vem arrastando desde 1980, tendo nos finais dos anos noventa o início do seu ponto máximo. Recorrer à especulação simplória de uma causa atrofia nosso olhar crítico para explicação de um problema.
Neste sentido, o que acredito hoje ser fundamental é a preocupação de como todos nós poderemos nos reunir em torno da questão: como será possível a construção de uma Sociedade e Estado nacional com uma Nova identidade Cívica de “Guinendade” que não seja baseada em questões tribais? O processo de construção da nação não é um processo fácil, chega a levar séculos. As nações não são fatos naturais, mas construções sociais, ou seja, construções artificiais com suas implicações históricas e culturais como estas que estamos vivendo hoje na Guiné-Bissau. Portanto, não seria suficiente inventá-la, seria necessário um trabalho pedagógico que levasse as populações a se identificarem com ela.
Transformá-la numa referência coletiva aceite por todos os indivíduos dessa comunidade. Nesta tarefa o papel dos governantes e intelectuais é muito importante, mas não o de apelar para problemas étnicos ou religiosos. Desta forma, o Auto-Engano de muitos dos meus conterrâneos na análise da situação política na Guiné é grave.
Os Estados Unidos da América, que muitas vezes atacamos pela sua postura beligerante e arrogante diante do mundo, sempre tiveram uma idéia bem definida de que tipo de nação querem construir. Talvez a comparação aqui seja bastante injusta, mas nós precisamos ter esta clareza, saber que modelo de nação pretendemos construir. Vários países do mundo neste processo de construção de nação passaram por rupturas cíclicas que hoje estamos passando.
Na Europa do século XVIII não existia, por exemplo, línguas únicas por território, coexistiam a língua da corte, a língua administrativa, a língua do ensino e a língua do povo. Só depois de um século, no final do século XIX, as identidades nacionais europeias estariam construídas. Eu acredito que é neste sentido que o nosso país caminha.
Angola, um país irmão, do pós-colonialismo português recente como nós, logo depois da independência, mergulhou numa desastrosa guerra interna que durou mais de três décadas, mas eles souberam ultrapassar isso e hoje é uma das nações africanas que mais cresce, levando em conta todos seus problemas.
Espero que alguém não me tome como legitimador da barbárie que se vive na Guiné, todavia, quero mostrar que conflitos de ordem moral, social e político fazem parte do processo de ruptura e reconstrução de uma nação e que cabe a todos os seus cidadãos participarem na construção de uma nova ordem, cada um à sua maneira. Porém, não se pode participar dela com discursos e atitudes radicais, mas com uma postura cívica conciliatória.
Não pretendo fazer discurso universalista da identidade nacional homogénea ou ignorar o fato de que os países africanos são constituídos por diferentes grupos tribais internos e que se tem que levar em conta esta diversidade como pretende o multiculturalismo, mas o processo de construção de uma nação não pode coexistir com fundamentalismo tribal, seja dos Balantas, dos papéis ou de quem quer que seja.
Cabe ao Estado preservar a soma destas diferentes identidades tribais, para que com ela se possa solidificar uma identidade geral nacional, não permitindo que as identidades tribais em algum momento insurjam para solapar a identidade nacional. Isso não é uma visão romanceada da realidade, mas uma realidade concreta pela qual passaram vários países que consolidaram hoje suas identidades nacionais.
Alguns apontam Cabo-Verde, outro país irmão, como exemplo de unidade nacional e que tem quase a mesma história que a nossa por causa da nossa imbricação política e histórica. Todavia, desconsideram o fato de que a formação do povo cabo-verdiano é diferente.
Primeiro, porque historicamente Cabo Verde foi um ponto de encontro de diferentes povos da costa ocidental africana, arrancados das suas realidades culturais para serem escravizados fora de África, o que implicava desde cedo no aniquilamento de qualquer forma de identidade, fato que poderia atrapalhar o comércio então lucrativo.
Portanto, a necessidade de moldar “corpos dóceis” fez-se necessário desde cedo neste caso, para não atrapalhar o empreendimento escravocrata.
Segundo, há que levar em conta a grande miscigenação que se seguiu, o que posteriormente diluiu profundamente as características da pertença identitária tribal.
Assim, aconteceu este paradoxo de consequências, o fato que surgiu por um fim acabou gerando outro que não se previa antes, fazendo com que Cabo-Verde não conservasse as diferentes identidades étnicas que os demais países africanos, a exemplo da Guiné-Bissau, conservam.
Como formula de conclusão, renovo a idéia de que as rupturas são cíclicas na história humana. O que estamos vivendo na Guiné-Bissau acredito ser uma grande ruptura, a passagem de um momento moral e político para outro. Às vezes isso implica uma grande turbulência social e política como a que estamos presenciando em Bissau, mas acredito na reconstrução da nossa sociedade política, pois o ser humano tem a poderosa capacidade inata de emergir do seu próprio caos.
O nosso povo vai sair dessa, ainda que as mudanças sejam lentas. A Guiné-Bissau precisa ser exorcizada de todos seus demônios.
* Mestrando em Sociologia do Desenvolvimento pela PUCSP (Pontifícia Universidade Católica de São Paulo – Brasil)
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