A PROPÓSITO DO DESPACHO DE SUSPENSÃO DE UM MEMBRO DO GOVERNO PELO PRIMEIRO-MINISTRO: UM PRÉLUDIO À MORTE DO ESTADO DE DIREITO DEMOCRÁTICO? Carlos Vamain[1]
04.11.2010 O despacho, em sentido lato, é uma decisão executória com incidência geral ou individual que emana duma autoridade administrativa no exercício das suas funções, mas cuja atribuição depende duma autorização legal, qual seja, dum diploma de valor hierarquicamente superior (leis, decretos-lei ou decretos). E isso, em razão do princípio da legalidade que nortea a acção dum Estado Democrático de Direito por oposição ao Estado totalitário onde reina o arbítrio. E, na Guiné-Bissau, na perspectiva de construção do Estado de Direito Democrático, o constituinte, inspirando-se do direito comparado, estabelece no Artigo 8º da Constituição da República que o Estado subordina-se à Constituição e baseia-se na legalidade democrática e, sobretudo, que a validade das leis e dos demais actos do Estado e do poder local depende da sua conformidade com a Constituição. O que pressupõe que todos os actos do Estado devem respeitar o princípio da legalidade, constituindo assim o fundamento da acção do Estado e da Administração Pública, que igualmente rege-se pelo princípio da legalidade. O que significa que, em Direito Público, não se admitem as presunções de direitos, nem de obrigações, por ser incompatível com a natureza do Estado de Direito Democrático. Neste contexto, do ponto de vista do Direito Constitucional guineense, por imperativo do disposto no Artigo 86º, alíneas g) e i), da Constituição da República da Guiné-Bissau (CRGB), em conjugação com o disposto no Artigo 98º n.º 2, da referida Constituição, se ao Presidente da República compete nomear e exonerar o Primeiro-Ministro, tendo em conta os resultados eleitorais, ouvidos os partidos políticos com assento parlamentar e os restantes membros do Governo (Ministros e, eventualmente, Secretários de Estado), sob proposta do Primeiro-Ministro, respectivamente, a fortiori, só ao Presidente da República compete exonerá-los mediante a devida proposta formulada pelo Primeiro-Ministro e submetida ao Presidente da República para o efeito. E é com base no princípio da legalidade que, à luz da Constituição da República e da demais legislação em vigor no País, se conclui pela inexistência da figura de suspensão do cargo de um membro do Governo por despacho proferido pelo Primeiro-Ministro, seja por que motivo for. Não obstante o Primeiro-Ministro ser, por força do disposto no Artigo 97º, n.º 2 da Constituição da República, o Chefe do Governo, competindo-lhe dirigir e coordenar a acção do Governo e assegurar a execução das leis, em nenhuma circunstância a Constituição ou a lei da Guiné-Bissau o coloca como sendo chefe hierárquico dos restantes Ministros ou Secretários de Estado. Isto porque o Primeiro-Ministro é também membro do Governo (Artigo 97º, n.º 2). Por outro lado, fala-se, em sentido estrito, do Governo, quando o Primeiro-Ministro, Ministros e/ou Secretários de Estado se reúnem em Conselho de Ministros. E é, designadamente, neste caso, que o Primeiro-Ministro coordena e dirige, por excelência, a acção do Governo. Em suma, o Primeiro-Ministro é primo inter pares que, neste caso, dispõe de precedência sobre os restantes membros do Governo, dada à relevância e importância políticas que assumiu a função do Primeiro-Ministro no decurso da história constitucional, mas não a ponto de se converter ou ser convertido em Chefe hierárquico dos Ministros por ele escolhidos e propostos à nomeação ao Presidente da República (Artigos 68º alínea i) e 98º n.º 2 da Constituição da República da Guiné-Bissau). Assim, pelo facto de os Ministros e Secretários de Estado serem cargos eminentemente políticos, não estão ainda submetidos, tanto pelo ordenamento jurídico como pelas leis da Guiné-Bissau, ao estatuto do pessoal da Administração Pública, não se lhes aplicando, em consequência, as regras de suspensão aplicáveis aos funcionários públicos. Isso, pelo simples facto de estarem adstritos ao exercício de funções de natureza política e, portanto, submetidos a estatutos especiais, por tratar-se de cargos ou de funções políticas temporárias e pelo facto de não estarem os membros do Governo submetidos, repita-se, hierárquica e disciplinarmente ao Primeiro-Ministro, na sua qualidade de Chefe de Governo. Em conclusão, por despacho do Primeiro-Ministro ou por despacho do Presidente da República não se pode proferir a suspensão de um membro do Governo, em razão da sua inexistência no ordenamento jurídico da Guiné-Bissau e na legislação infraconstitucional pertinente. Uma situação que, a verificar-se, pode, no caso em espécie, configurar abuso de poder previsto e punido pela disposição constante do Artigo 24º da Lei n.º 14/97 de 2 de Dezembro e relativa aos crimes de responsabilidade dos titulares de cargos políticos. Aliás, embora o despacho seja tão-só um acto administrativo derivado da previsão legal, executório e de incidência geral ou individual, que normalmente emana dum membro do Governo (Primeiro-Ministro, Ministro ou de vários Ministros) por delegação da lei lato senso e em seu cumprimento, ele só pode ser proferido em face de uma autorização legalmente expressa, em respeito escrupuloso pelo princípio da legalidade dos actos em Direito Público. Caso contrário este comportamento e atitudes só podem conduzir ao império do arbítrio e não da legalidade porque se pugna na Guiné-Bissau. Tenho dito. [1] - Carlos Vamain é Mestre em Direito Internacional pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (Brasil) com defesa de dissertação sobre «Acção de nulidade da sentença arbitral perante a Corte Internacional de Justiça: o caso Guiné-Bissau/Senegal». É igualmente Advogado e Consultor na Guiné-Bissau.
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