AS LIÇÕES DO ‘NÃO’ DA ONU AOS MILITARES DA GUINÉ-BISSAU: MAIS UM SINAL A SER IGNORADO?
Entretanto, os militares senegaleses – por exemplo - continuam a participar das Forças de Manutenção de Paz da Organização, apesar dos sérios crimes cometidos contra milhares de civis inocentes na Guiné-Bissau, durante a ‘Guerra Civil de 1998-1999’
Por: João Carlos Gomes*
19 de Setembro de 2007
1. Nesta edição, falaremos, entre outros, de um dos principais pontos que devem constar da agenda da delegação governamental, actualmente a caminho de Nova Iorque, para participar na Sexagésima-segunda Sessão Anual da Assembleia-Geral Nações Unidas, ou seja, as razões possíveis que, no seu conjunto, teriam levado a Organização a rejeitar os militares da Guiné-Bissau como parte das suas Forças de Manutenção de Paz, e, não por exemplo, os do Senegal; de como é que uma prática há muito estabelecida de micro-gestão governamental, que não respeita o princípio da separação de poderes, facilitou o sequestro de um carregamento considerável de estupefacientes dos cofres do Tesouro do Estado por indivíduos em uniforme militar, e; por ocasião deste, 24 de Setembro, lança-se aqui um desafio directamente ao Presidente Nino Vieira:
2. Como vai ser demonstrado aqui, a decisão de excluir os militares guineenses é uma medida que representa uma derrota esmagadora para a diplomacia guineense - não necessariamente para a recém-nomeada titular da pasta. Não há dúvida de que esta medida surge como mais uma consequência directa da falta de um embaixador eficaz e, sobretudo, interessado em defender os interesses do país que representa, nas Nações Unidas. Esta é uma questão que não pode, nem deve de maneira alguma, ser dissociada do desvio de cem mil dólares por parte do Embaixador da Guiné-Bissau nas Nações Unidas, assunto que, em parte, deu início a esta série de trabalhos e que, tem vindo a ser alvo de uma denúncia, intencionalmente constante, pelo autor desta peça.
As sérias implicações da decisão das Nações Unidas de excluir os militares da Guiné-Bissau
3. ‘Não posso apresentar esta ideia à capital, porque se trata de um assunto muito delicado. Se o fizer, vão me dizer que, não podemos mandar tropas que não morreram na nossa própria ‘Luta Armada de Libertação Nacional’ para irem morrer na guerra dos outros’. Esta foi a reacção inicial de um alto representante do governo da Guiné-Bissau, face às tentativas do autor desta peça, de o persuadir a convencer os seus superiores a incorporar os militares da Guiné-Bissau nas Forças de Manutenção da Paz das Nações Unidas. Há que admitir que, no contexto político nacional de então (finais dos anos oitenta), o argumento apresentado pelo oficial em questão, tinha muito cabimento. No entanto, apesar de perfeitamente compreensível, esta reacção não impediu ao autor de continuar a enumerar as enormes vantagens de uma tal incorporação. Aliás, o resto é hoje história.
4. O impacto do número de efectivos em armas de que a Guiné-Bissau dispõe desde a sua independência e, o fardo que tais forças representam para a sua economia - sobretudo tomando em consideração, o facto de que não desempenham qualquer papel produtivo – tem sido motivo de muita preocupação. Daí que, ter militares guineenses a participar nas Missões de Manutenção de paz das Nações Unidas, trazer vantagens múltiplas tanto para os militares como para o país, pois:
5. Estes constituem alguns dos argumentos apresentados pelo autor desta peça nos finais dos anos oitenta, ao tentar convencer o governo a disponibilizar os seus militares e, começar a fazer parte dos esforços de manutenção da paz mundial. Mas já lá vão alguns anos e, entretanto, muita coisa mudou. Nos anos que se seguiram, do Cambodja e, mais recentemente, a Libéria - e, sob o comando de oficias como o Domingos Gomes Indi, com quem o autor desta peça teve o grande prazer de compartilhar uma das missões (ONUMOZ, em Moçambique) e, outros - os militares guineenses brilharam, missão após missão. Isso foi, até cometerem o grave e imperdoável erro de assassinar barbaramente dois colegas: o General Veríssimo Correia Seabra, Chefe do Estado-Maior General das Forças Armadas, e, o Coronel Domingos de Barros, em Outubro de 2004.
6. Pela sua natureza, tais crimes levantam questões sérias quanto à capacidade de julgamento dos militares envolvidos, sobretudo porque, foram orquestrados simplesmente por causa de um rumor circulado em Bissau, o qual foi posteriormente confirmado como tendo sido falso. Tais rumores, mantinham que, o pagamento dos salários dos soldados relativos à sua última missão com a ONU (na Libéria), já tinha sido entregue às autoridades, sugerindo que, se o pagamento ainda não tinha sido feito aos militares, era por culpa do seu Chefe do Estado-Maior General das Forças Armadas, o General Veríssimo Correia Seabra. Um outro visado nesta maquinação intencionalmente maliciosa e desestabilizadora, era também o então-Presidente Henrique Rosa.
7. Com a humilhante exclusão dos seus militares agora anunciada, o perfil político da Guiné-Bissau e, por conseguinte, a sua capacidade negocial estão altamente comprometidos, vis-a-vis a comunidade internacional. E, no contexto altamente complexo da política mundial actual, sem esta que constitui uma das ferramentas cruciais nos seus contactos, tanto bilaterais como multilaterais, agora só resta à Guiné-Bissau, a única coisa que aumentou no seu portfolio: a necessidade de continuar a pedir favores, sem poder oferecer contrapartidas. E, negociar a partir de uma posição de fraqueza e, de dependência total, não é exactamente um dos princípios mais recomendados em relações internacionais e diplomacia.
As tropas guineenses foram excluídas das Forças de Manutenção de paz da ONU, enquanto que, por exemplo, os militares senegaleses continuam a participar de tais missões, apesar dos sérios crimes cometidos na Guiné-Bissau, durante a ‘Guerra Civil de 1998-1999. Porquê?
8. A decisão das Nações Unidas de não aceitar mais militares guineenses, por causa dos tristes acontecimentos que resultaram na morte do General Veríssimo Correia Seabra e, do Coronel Domingos de Barros, cujas circunstâncias exactas e, responsabilidades, ainda estão por apurar, é uma decisão correcta. Com base nos seus princípios, e nos termos da sua Carta, a Organização mundial não pode ter no seu seio, a servir sob a sua bandeira, militares tidos como suspeitos criminosos. Neste caso concreto, a única questão que se põe é, até que ponto esta decisão é justa. O problema é que, a ONU tomou tais medidas contra os militares da Guiné-Bissau, por causa de duas mortes, enquanto que, por exemplo, continua a aceitar a participação de militares de um país vizinho, o Senegal, apesar dos sérios crimes cometidos por estes na Guiné-Bissau, durante a ‘Guerra Civil de 1998-1999’, contra um número elevado de civis inocentes, incluindo mulheres e crianças, até hoje, numa impunidade total. Porquê?
9. Os abusos e outros crimes cometidos pelos militares senegaleses e que foram ignorados, incluíram: assassinatos, actos de tortura, violações, espancamentos, etc. Em muitos casos, mulheres guineenses foram abusadas, mesmo em presença dos seus maridos. O próprio autor desta peça, foi detido, espancado publicamente, apunhalado e, quase fuzilado, pelas tropas Senegalesas, a 12 de Novembro de 1998, nas imediações da Ponta Neto, ao intervir para tentar proteger um grupo de jovens, seleccionadas e mantidas como reféns num dos postos de controle e, obrigadas a passar a noite com os soldados. Outras acções envolveram o saque de artigos de alto valor comercial tais como: apetrechos domésticos; jóias; viaturas novas e, usadas, ou; a destruição propositada de material histórico único, como foi o caso dos arquivos do Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas (INEP), considerado um dos melhores do continente africano.
10. Uma grande parte das acções das tropas Senegalesas contra cidadãos inocentes e indefesos, foi devidamente documentada, logo a seguir à ‘Guerra Civil de 1998-1999’, através de um trabalho árduo levado a cabo pela Liga Guineense dos Direitos Humanos, e, organismos internacionais, tais como a Amnistia Internacional, cujo relatório: “Guiné-Bissau: os direitos humanos durante a guerra e a paz”, foi publicado em Julho de 1999. No seu livro, ‘Polon Di Bra’, o autor desta peça também documentou e chamou a atenção para tais problemas.
11. Aqui, é importante notar o facto de que, ironicamente, a razão pela qual o autor desta peça foi alvo da tentativa de fuzilamento, foi exactamente porque os soldados senegaleses sabiam que, como funcionário das Nações Unidas, ele tinha a obrigação de comunicar o que tinha testemunhado à Organização, situação que - à semelhança do agora sucedido com os militares guineenses - deveria ter tido como consequência imediata, precisamente o cancelamento da sua participação em missões de manutenção de paz das Nações Unidas.
12. O facto de que, para tentar eliminar fisicamente uma testemunha, não hesitaram nem mesmo a tentar cometer o crime de execução sumária de um indivíduo que sabiam que era, não só um jornalista mas também um funcionário das Nações Unidas, devidamente identificado, mostra até que ponto os senegaleses estavam dispostos a ir para ‘defender os seus interesses nacionais’. Aliás, o assunto veio à tona durante a detenção do autor, pois no decurso do seu interrogatório um dos oficiais lhe revelou que tinha servido com ele numa mesma missão das Nações Unidas, em Angola. Infelizmente, é bem possível que, graças à impunidade de que beneficiou, o contingente militar senegalês que serviu na Guiné-Bissau, e que, cometeu as atrocidades acima referidas durante a ‘Guerra Civil de 1998-1999’, tenha servido posteriormente em outras missões de paz das Nações Unidas, e, quem sabe; cometido os mesmos crimes, contra civis inocentes.
Kofi Annan tinha conhecimento da situação
13. Como parte do processo judicial que iniciou após o seu regresso a Nova Iorque, em Julho de 1999, e, numa série de acções devidamente documentadas, o autor desta peça comunicou todas estas informações às Nações Unidas, tal como era seu dever. Nos seus esforços, o autor chamou especificamente a atenção dos seus superiores, sobre a importância da abordagem deste assunto, tendo-o feito inclusive, por escrito, directamente com o próprio (então) Secretário-Geral das Nações Unidas, Kofi Annan, e; igualmente com o Tribunal Administrativo da Organização.
14. Lamentavelmente, o autor não obteve o apoio do Representante Permanente da Guiné-Bissau nas Nações Unidas, o Embaixador Alfredo Cabral, o qual, em violação da responsabilidade número um de qualquer governo – a protecção do cidadão - tomou intencionalmente posições que contribuíram para abafar o caso e, atrasar o processo. A pergunta que se põe aqui é: ao se posicionar contra um nacional do próprio país que representa, sobretudo num caso semelhante, que interesses é que o Embaixador Alfredo Cabral estava a defender? Ou seja, pela diplomacia de quem - em nome de quem - e o que é que o Embaixador Alfredo Cabral está a fazer, nas Nações Unidas, à custa da Guiné-Bissau?
15. Por outro lado, tanto quanto se sabe, como Estado Membro, até hoje, a Guiné-Bissau nunca apresentou queixa, às Nações Unidas ou, à União Africana, pelos abusos cometidos pelas tropas senegalesas. Obviamente que, esta atitude de indiferença se deve também ao facto de que, como foi o próprio Presidente Nino Vieira quem tinha chamado as tropas senegalesas para invadir a Guiné-Bissau, ele decidiu fechar completamente os olhos ao sofrimento do seu próprio povo. Mesmo da parte dos outros governos que se seguiram, após o assalto final a Bissau em Maio de 1999, que depôs Nino Vieira e; até o seu regresso ao poder em 2005, não houve nenhum esforço, nem foi tomada qualquer medida ou acção, que se saiba, para uma apreciação dos crimes cometidos pelos militares senegaleses contra civis inocentes, nem a nível nacional, nem a nível internacional.
Impacto das mudanças constantes de governo, e, da ausência de ‘memória institucional’
16. Os próprios governantes da Guiné-Bissau não parecem entender as consequências e implicações sérias que poderão advir da decisão agora adoptada pelas Nações Unidas para a reputação e o futuro do país na cena internacional. Esta situação de ignorância é infelizmente exacerbada, em parte, pelas mudanças constantes de governos, que fazem com que o país careça de dirigentes com experiência necessária para dar seguimento apropriado a certos dossiers, sobretudo os mais sensíveis. Tal ausência de uma ‘memória institucional’, é uma situação que afecta profundamente a diplomacia guineense. Combinado com a falta de arquivos organizados, este défice tem um impacto muito negativo na capacidade de análise e, na ‘continuidade’ de acções, por parte dos governantes guineenses e, obviamente, nas suas tomadas de decisão.
17. Para compreenderem um pouco melhor o que está em causa com a decisão de excluir os militares guineenses ora adoptada pelas Nações Unidas, as autoridades de Bissau deviam analisar os principais argumentos apresentados pelos representantes de países como o Brasil, a Índia, a Nigéria e, a África do Sul, ao reclamarem para si, um lugar como Membro Permanente no Conselho de Segurança das Nações Unidas. Vão notar que, um ponto que é constantemente mencionado pelos seus embaixadores, é a ‘valiosa’ contribuição dos militares dos seus países para os contingentes das Forças de Manutenção de Paz das Nações Unidas. Um outro teste, seria pedir ao actual Embaixador da Guiné-Bissau nas Nações Unidas que apresente uma lista completa, explicando, tanto quanto possível, todos os benefícios que o país obteve durante o período do seu mandato como Membro Nao-Permanente do Conselho de Segurança, este fórum crucial para a guerra, a paz, a segurança e, afinal de contas, o desenvolvimento no Planeta. Entretanto:
É preciso não esquecer o facto de que, se foi possível que militares - ou indivíduos disfarçados de militares – tenham roubado mais de seiscentos quilos de cocaína dos cofres do Tesouro do Estado, é porque estavam criadas, institucionalmente, e desde há muito, condições que viriam a facilitar este assalto
18. Não é por acaso que, como Presidente, o General João Bernardo Vieira passou à reserva e, despiu o uniforme. Conforme demonstrado pelo processo actualmente em curso no Paquistão - no qual, em conformidade com os termos da Constituição, se está a exigir ao General Presidente Pervez Musharaf que dispa a sua farda, antes de se apresentar às próximas eleições presidenciais - este é um dos requisitos indispensáveis para que a liderança de um regime seja certificado como sendo não militarizada e democrática. No entanto, há outros comportamentos que não só, têm sido permitidos mas também tornados comuns no seio da sociedade guineense - mesmo no actual mandato de Nino Vieira – que continuam a dar provas amplas de uma certa ambiguidade.
19. Um tal exemplo reside no facto de, que, a (des)ordem agora restabelecida ‘de facto’, permite acções de carácter claramente intimidativos que incluem o envio de militares não só fardados mas também, armados, directamente a instituições tais como: Bancos, Ministério das Finanças, Tesouro, Alfândegas, entre outros, para procederem a levantamentos de líquido (dinheiro) para os órgãos do poder. Há relatos que dão conta de situações, ainda hoje, em que militares são vistos, por exemplo, de pé, ao lado de funcionários na Caixa das Alfândegas, à espera de entrar receita, as quais são, em seguida, levantadas (pelos militares), mesmo aos olhos do público. Tais situações não parecem ser uma excepção, mas uma norma.
20. Por isso, não admira que, com a crise com que o país se defronta hoje, como ‘hospedeiro-mor’ do ínfimo tráfico de droga no continente africano, surge uma situação em que por exemplo, indivíduos fardados – militares ou não – podem se apresentar a uma das principais instituições do Estado, neste caso, o Departamento do Tesouro, no Ministério das Finanças, para reclamarem a autoridade de verificar um lote considerável de estupefacientes apreendidos no decurso de uma operação policial e, o mesmo (cocaína) acabaria desaparecendo, sem deixar rastos. Esse foi o caso em Abril de 2006. Perante tal situação de caos absoluto, em que as bases do princípio da separação de poderes não são bem definidas e, as irregularidades acabam por estabelecer as normas de comportamento, torna-se difícil culpabilizar, por exemplo, os funcionários do Tesouro, por terem permitido que um grupo de possíveis impostores fardados se apoderassem deste carregamento considerável de narcóticos, completamente à margem da lei.
21. Ironicamente, numa dinâmica análoga, é preciso não esquecer que foi a entrada espectacular, e ilegal, do candidato presidencial Nino, a bordo de um helicóptero militar estrangeiro, durante uma campanha presidencial altamente mediatizada - inclusive na América Latina, via Brasil – e, da impunidade total que se seguiu, que se expôs as fraquezas do país, em termos da sua capacidade de controlar o seu espaço fronteiriço, aos traficantes de droga de todo o mundo. O facto é que, até hoje, numa postura que não pode ser caracterizada exactamente como sendo de exemplar, o Presidente nunca teve a coragem que se requer de um líder para assumir, publicamente, a responsabilidade pelas consequências dos seus actos. Da mesma forma, há que aceitar o facto de que, foi o ‘modus operandi’ (comportamento) que caracteriza o estilo de governação do, agora de novo, Presidente Nino na condução dos ‘affairs’ da nação - nomeadamente, no tocante às transacções económicas e financeiras – que criou as condições que viriam a permitir que, um punhado de militares, ou; de indivíduos disfarçados (de militares), pudessem ter roubado a droga, ‘violando’(?) o funcionamento normal das estruturas governamentais. Por outro lado, se na verdade, os ladrões eram militares reais, este argumento torna-se ainda muito mais relevante.
22. Ou seja, só foi possível que tal grupo de indivíduos fardados pudesse ter, alegadamente, feito o ‘levantamento’ dos 635 quilos de cocaína dos cofres do Tesouro do Estado, porque já existia todo um quadro de comportamento institucionalizado que tornou absolutamente plausível que tal ‘transacção’ não tenha sido vista como sendo uma aberração no comportamento institucional. Daí que, mesmo que os indivíduos em questão não fossem militares reais, há que imputar, ainda assim, responsabilidades, tanto ‘de facto’ como ‘de jure’, e mesmo moral, à pessoa do Presidente, pela institucionalização de um comportamento que permite trespasses constantes da ordem estabelecida. Senão, qual é o próximo passo? Indivíduos fardados a roubar bancos?
‘Habeas corpus’, pervertido?
23. Entretanto, numa outra demonstração clara da inversão de valores a que o autor desta peça se referiu num dos seus artigos anteriores, o respeito por um dos princípios básicos em direito conhecido pela designação em Latim de, ‘habeas corpus’ (obrigação de produzir, apresentar o arguido) ou seja, o direito de qualquer cidadão ou indivíduo comparecer perante um tribunal legitimamente constituído para ouvir, responder e se defender de acusações devidamente formuladas contra ele, nos termos da lei vigente, é um conceito que, na Guiné-Bissau de hoje, quando aplicado, apenas o é selectivamente.
24. A confirmar que a Guiné-Bissau de hoje se encontra refém de alguns dos seus piores filhos, neste preciso momento, em vez de dar caça aos traficantes de droga, policias e militares estão ocupados a utilizar os magros recursos do Estado para - numa mudança clara de estratégia - dar caça (e produzir, agora, em tribunal): críticos, activistas de direitos humanos, magistrados e, jornalistas que - por demonstrarem uma conduta independente no cumprimento dos seus deveres profissionais, e, em beneficio da sociedade - são vistos e, tratados pelos representantes do poder, como sendo, inimigos. Criticar não é necessariamente ser contra, sobretudo num Estado que se diz democrático. O que deve contar é a relevância da mensagem, e não - quem é o mensageiro.
25. Ironicamente, o primeiro caso envolvendo a questão do tráfico de droga, que acaba de ser apresentado à justiça da Guiné-Bissau, por um oficial superior das Forças Armadas (José Américo ‘Bubu’ Na Tchuto, Comandante da Marinha de Guerra Nacional, também suspeito de cumplicidade), não foi contra um traficante, mas... adivinhe? Acertou! O processo agora instaurado foi contra um jornalista, neste caso, Alberto Dabo, da Rádio Bombolon FM, igualmente correspondente da Agência de noticias Reuters na Guiné-Bissau, por causa do seu trabalho de denúncia, precisamente - contra o tráfico de droga.
26. De recordar também que, mesmo após ter anunciado publicamente numa conferencia de imprensa ter informações seguras de que a sua vida estava em perigo, um oficial superior das Forças Armadas, o Comodoro Mohamed Lamine Sanha, cujas relações com o Presidente da República eram descritas como conturbadas, acabou, pouco depois, sendo crivado de balas, mesmo em frente à sua própria residência, numa execução sumária, ‘Mafia-style’ (tipo-Máfia). À semelhança do acontecido com o General Veríssimo Correia Seabra e, com o Coronel Domingos de Barros, Mohamed Lamine Sanha não teve a oportunidade de exercer o seu ‘habeas corpus’, se é que, alguma vez foi oficialmente acusado de algum crime.
27. Em contraste, até hoje, não há indicação de que qualquer traficante de droga tenha sido assassinado. Mesmo quando são capturados, nenhum deles foi julgado ou condenado, facto que indica que, na Guiné-Bissau, os ‘drug dealers’ (traficantes) beneficiam de uma melhor protecção do que, mesmo oficiais, em uniforme. Há necessidade de um melhor exemplo de que o status quo que vigora na Guiné-Bissau se caracteriza por uma situação que só pode ser descrita de - nem mais nem menos - um: ‘estado de sitio’? Admira que, finalmente, a comunidade internacional tenha decidido agir?
Conclusões
Razões adicionais e lógicas que teriam levado as Nações Unidas a adoptar – ou anunciar, só agora - medidas apropriadamente drásticas contra os militares da Guiné-Bissau
28. Numa altura em que a Organização está desesperadamente à procura de militares para completar as suas quotas para as diferentes missões, sobretudo para o Darfur (Sudão), recusar nas suas fileiras um contingente cuja reputação sempre esteve dentre as melhores em tais operações, é de fazer coçar a cabeça. Mas não tanto. A razão é bem simples. Comecemos apenas por recordar o facto de que:
29. Assim que, a decisão das Nações Unidas de excluir os militares guineenses é mais um aviso claro, entre vários outros, de que, a situação na Guiné-Bissau tem que mudar drasticamente nos próximos tempos, no tocante a acções e crimes cometidos pelos militares tais como: declarações de natureza intencionalmente incendiária e intimidativa; interferência nas estruturas da governação; abusos contra civis e instituições; assassinatos; impunidade, e; sobretudo, o seu alegado envolvimento no tráfico de droga. E, para todo o povo guineense, a decisão agora adoptada pelas Nações Unidas é mais uma, entre várias outras consequências sérias que, num futuro próximo, poderão advir da cultura de impunidade - há muito instalada - neste que, no concerto das nações, ainda se julga habilitado a se proclamar como sendo, um Estado de Direito!
30. Entretanto, há a notar o facto de que, começam a surgir alguns sinais positivos por parte das autoridades de Bissau. Para além de um ‘Plano de Emergência para o Combate ao Tráfico de Droga’ recentemente tornado público pelo Governo, através da Ministra da Justiça, o Chefe do Estado-Maior General das Forças Armadas, o General Batista Tagme Na Waie acaba de anunciar que já foram tomadas todas as disposições necessárias para que, doravante, aviões que violem o espaço aéreo da Guiné-Bissau, suspeitos de estarem envolvidos no transporte de droga, sejam abatidos. A ordem foi igualmente confirmada agora pelo próprio Primeiro-Ministro Martinho N’Dafa Cabi, por ocasião da sua recente visita a Portugal. Há igualmente indicações de possíveis progressos nas investigações sobre as circunstancias do assassinato de Lamine Sanha.
Desafio ao Presidente Nino Vieira, por ocasião do 24 de Setembro de 2007 – altura em que celebra também o ‘vigésimo aniversário’ de seu mandato
31. Ao fechar esta peça, há a mencionar o facto de que, ao celebrar este ano, a data de 24 de Setembro, aniversário da independência, o Presidente João Bernardo ‘Nino’ Vieira estará igualmente a comemorar o 'vigésimo aniversário' da sua presidência (dezoito, do primeiro mandato, mais dois, agora). Este é um marco importante difícil de ignorar para o povo da Guiné-Bissau. Assim que, tendo em conta as circunstâncias, vale a pena notar que, apesar de toda a violência que marcou a sua jornada, os guineenses são actualmente um povo muito pacífico. A evidência está no facto de que (ao longo de toda a sua história), os actos mais marcantes de violência que tiveram lugar neste país, foram perpetrados - nao por cidadãos, mas - pelo próprio governo, contra os seus cidadãos indefesos. Daí que:
32. Porque é que Nino Vieira não pode aproveitar esta segunda oportunidade de ouro que lhe foi dada de fazer história, para virar a página, fechando para sempre um capítulo vergonhoso da história do país, olhando o povo guineense nos olhos e, assegurar-lhes que: em nome da reconciliação nacional que prometeu promover; para facilitar o diálogo; para pôr fim à impunidade endémica, e; como prova da sua sinceridade e, intenção real de desempenhar um papel de líder nessa tarefa, a partir de hoje – 24 de Setembro de 2007 – nem mais um guineense será objecto de tentativas de intimidação, perseguido, preso, torturado ou assassinado, por causa das suas opiniões, ideias, ou posições políticas? Este é um desafio!!!
Nota
1. Para um melhor esclarecimento sobre os temas aqui abordados, vejam também um artigo de reflexão mais abrangente, intitulado: “Nino Vieira, a Governação, os Militares, a Droga e, só Agora, a Reconciliação Nacional?”, publicado pelo autor desta mesma peça, a 26 de Julho último, no site, Guiné-Bissau: Projecto CONTRIBUTO, página, ‘Nô Djunta Mon’ www.didinho.org
2. Conforme anteriormente anunciado, o autor está completamente aberto à recepção de material que corrobore ou, dispute, a veracidade das suas afirmações e outros dados até agora apresentados, os quais após verificação, poderão resultar na correcção ou alteração do material anteriormente publicado. A preocupação fundamental é de contribuir para a edificação, na Guiné-Bissau, de uma sociedade na qual ‘todos os seus filhos’ possam encontrar, na decência, o ‘lugar ao sol’, de que tanto necessitam e, a que têm direito, pelo menos, dentro da sua própria terra.
*Escritor/Jornalista
Nova Iorque
VAMOS CONTINUAR A TRABALHAR!
Projecto Guiné-Bissau: CONTRIBUTO