SETE INSTANTES DE UMA PRIMAVERA

O REJEITADO LEGADO DE AMÍLCAR CABRAL

POR UM POVO QUE REJEITOU-SE A SI MESMO

 

SEXTO INSTANTE

AS VERDADES QUE NÃO PROCURO…

 

                                                                                                “A razão humana, num determinado domínio                                                                                                                 dos seus conhecimentos, possui o singular                                                                                                                    destino de se ver atormentada por questões,                                                                                                                que não pode evitar, pois lhe são impostas                                                                                                                pela sua natureza, mas às quais também não                                                                                                           pode dar resposta por ultrapassarem                                                                                                           completamente as suas possibilidades”

 

 Immanuel Kant

 

 

 

 

 

 

MEDITAÇÃO ACERCA DA RAZÃO HUMANA VERSUS RAZÃO GUINEENSE, EM FORMA DE INTRODUÇÃO E UM PEDIDO DE DESCULPA

 

                                                                                                 “Ma i kê nha iermons-sô?                                                                                                        ali nô sinta na sucuro…

                                                                                                  sucuro di tempo di tchuba”

 

                                                                                                                      Aliu Bari       

 

 

 

 

 

 

 

 

Fernando Jorge Pereira Teixeira *

teixeira_ferjor@hotmail.com

31 de Julho de 2011

Chegado ao VI e penúltimo capítulo desta minha modesta epístola, peço desculpas a aqueles que me têm acompanhado durante todo este tempo, pelas minhas evidentes limitações pessoais, intelectuais, históricas e outras, para ser escrevente de matérias tão relevantes, sensíveis como transcendentes, para o nosso povo e país. Neste instante devo ainda elucidar-vos, que infelizmente, não possuo conhecimentos, tempo nem espaço para analisar cabalmente todas as nuances sobre este capital acontecimento que é o assassinato de Amílcar Cabral, em todas as suas vertentes, para depois reunir a necessária coragem e capacidade literária para o acomodar neste pequeno texto.

Mas como, no fundo, nem é esse o objectivo, apenas o caminho, estou a salvo de certa maneira; pois não sou obrigado a expor, as minhas fracas capacidades, a críticas que poderiam advir dessa minha impossibilidade. O objectivo – que é tentar encontrar respostas racionais para perguntas que apenas existem no nosso imaginário colectivo – pode não ser conseguido, mas mesmo que com este texto não lograr este desiderato, ele servirá para “levantar” questões que entendo terem o seu relevante interesse histórico e não só. Pois mesmo depois de tanto tempo, muitas se mantêm actuais e quiçá determinam o nosso presente viver, feito de tantos nonsenses que raramente alguém, no mundo actual, dentro ou fora do nosso universo guineense, entende.

Mas devo dizer que, este objectivo, obedece a critérios não definidos e tão pouco sancionados por mim; pois este texto, um dia começado por mim, agora tem vida própria; cada frase anterior determina uma posterior, que será escrita no futuro, mesmo que seja trinta paginas depois, sendo ou não, essa, a minha decisão.

E assim, numa contínua dinâmica que muitas vezes me ultrapassa, tanto no conteúdo como na forma, sigo um caminho, escrevendo para outros, mas no fundo para mim mesmo; pois para mim, pensar e escrever, são indissociáveis. E como já devem ter percebido, este texto não é um texto acabado; é um texto “aberto” que pretende suscitar questões e responde-las na medida do possível, sem nenhuns constrangimentos de ordem temporal, existencial ou guiando-se por interesses, sejam eles quais forem. Aquilo que atrás chamei de “dinâmica que me ultrapassa” tem sentido no facto que as diferentes partes deste trabalho, se entrecruzam de modo quase que aleatório, fazendo com que “o que é dito antes” tem seguimento depois, e o que “é dito depois” as vezes tem explicação só no “antes dito.” E muitas coisas apenas afloradas, só terão um desenvolvimento posterior, no capítulo seguinte, ou nunca o terão…

E no cômputo geral, as dezenas de diferentes partes que compõem estes Sete Livros, não foram convenientemente aprofundados e tratadas em todas as suas complexas dimensões, infelizmente; precisam ser desenvolvidas, independentemente de uns e outros, um dia... Mas independentemente disso, hoje, terminado este sexto texto posso dizer que entendendo cada vez melhor quem somos, como somos, e porque é que assim somos. E este texto é fruto desse entendimento, um compromisso tomado por mim, para mim, em cima de certos pressupostos já anteriormente anunciados na minha compreensão do “dever de escrever”.

A guisa de despedida, confesso, que durante a sua elaboração, estes “Sete Instantes” proporcionaram-me momentos de introspecção, sobre a minha vida inteira, desde a minha terna infância, desde os meus quatro anos, permitindo-me crescer como “ser humano”. Permitiram-me entender, diafanamente, que os seres humanos não “crescem” apenas influenciados pelo mundo exterior, feito de pessoas, mestres, experiencias, leituras, sofrimentos e alegrias. Eles também crescem “interiormente” sozinhos, sofrendo, chorando, pensando, sistematizando, criando e obtendo respostas que as vezes não desejavam, quando “perguntaram”, quando começaram… As vezes essas respostas obtidas - boas ou mas - consequências do nosso cogitar, vão ao encontro do nosso eu mais profundo; as vezes pelo contrário violentam profundamente o nosso ser; mas não deixam de ser as “nossas respostas”, frutos da nossa cultura - por sermos guineenses, nada que é guineense nos é estranho - e do nosso ser e farão parte de nós para sempre; e o nosso agir futuro será condicionado por elas.

 

II

 

Começo com Kant, porque na verdade, estas que aqui trago, também “são questões que não posso evitar”, porque “me são impostas”, não só pela minha particular natureza humana, mas pela sua importância capital para a compreensão da nossa história.

Pela sua natureza intrínseca, e porque eles ainda determinam o nosso viver (e morrer) actual; e tiveram e têm imenso peso no nosso, ainda por sarar, tecido nacional; que depois de tantas barbaridades esta furado, roto, e a cair aos bocados.

Com Kant começo, porque como ele diz, acerca da “razão humana”, também não tenho todas as respostas para as questões “que se colocam” (pois não sou eu que as coloco, mas a realidade degenerada em que se transformou a Guiné) não só por “ultrapassam completamente as minhas possibilidades” com ser humano, como ainda por cima, elas não existem perceptivelmente, - de modo a serem racionalizados formalmente - diluídos que estão em mitos, verdades feitas, mentiras, superstições e em todo o resto que veio a determinar o nosso presente. Aliás, o seu, caro compatriota, onde quer que esteja, e o meu, aqui, escrevendo para si; aqui, sentado, sozinho, olhando para o infinito, contemplado o passado e o presente, pressentindo o futuro de todo um destruído mundo. Aqui no escuro da nossa existência, onde todos nos encontramos, aonde “nô sinta na sucuro/ sucuro di tempo di tchuba…” neste nosso mundo país.

I nin ka na “djurmentabós pa ki lua alto no céu” que era o mundo possível que não se realizou pela improficiência. Pois sei que este presente não é fruto do acaso, mas resultado de um descaso e de uma irresponsabilidade histórica, por termos construído sonhos em cima de grandes pessoas... e o tempo passou... e descobrimos que grandes mesmo eram os sonhos e as pessoas pequenas demais para torná-los reais!

Nesta contemplação, nesta escuridão “di tempo de tchuba”, não procuro a “verdade”, mas tão simplesmente, a “compreensão”.

Na verdade, procuro aquele “instante sagrado” que nos foi dado pela Providencia, e que não se repetirá; procuro um mundo que existiu, algures, baseado num acreditar, fortalecido de heroísmo, fundado sobre duros alicerces, feitos de cadáveres de tantos guineenses que morreram por esse acreditar, e que foi venalmente desperdiçado.

 

O INSTANTE DOS INSTANTES: O INSTANTE DE MORRER PARA VIVER PARA SEMPRE

 

                                                                       Almocem comigo aqui, e jantem no inferno!

 

                                                                                   Leónidas, Rei de Esparta, 481 A.C.

 

                                                               Quando for assassinado, sê-lo-ei por um homem do                                                               meu povo, do meu partido, provavelmente fundador,                                                                        ainda que guiado pela mão do inimigo”.

 

                                                                                   Amílcar Cabral, 1969 D. C.

Já afirmei uma vez, que Amílcar Cabral tinha a aguda percepção de que se escapasse com vida da Luta de Libertação, isso seria pura sorte, um acaso do destino. Examinando o passado, baseando-me em certas afirmações, parece-me que para ele, essa possibilidade de ser morto, era uma espécie de fatalidade: se no fim se salva-se…, “tudo bem”, e a realização do sonho teria início; se não, se perecesse, outros realizariam o seu sonho… Afinal, era apenas disto que se tratava, por mais simples que parece.

Portanto nesse aspecto já era imortal e ultrapassava, em todos os azimutes, os seus futuros matadores… pois ao mata-lo por fim, mataram quem já não podia morrer, kil ku ka ta muri… Não tinha ele dito que outros Cabrais se levantariam no dia da sua morte para segurar o ceptro? Dois anos antes, em Outubro de 1971, não disse ao director da revista “Afrique/Asie” Simon Malley o seguinte: “se eu morrer amanhã, nada mudará na evolução inelutável da luta do meu povo e da sua vitória”?

Mas não só em questões ideológicas, ele era diferente de outros revolucionários do seu tempo; havia, creio, um realismo, excessivo, que levado ao extremo pode conduzir ao seu contrário, ao devaneio, ao um falso acreditar que leva ao “deixa andar”, com esperança que tudo acabara em bem.

Estas minhas afirmações são motivadas pela análise de inúmeras afirmações (como as que transcrevi atrás) de Amílcar Cabral, e outras ainda mais conclusivas de terceiros; sobre este particular. Amílcar Cabral fez questão de dizer, com todas as letras, ao político Português, Manuel Alegre (que foi candidato Presidencial pelo PS nas ultimas eleições portuguesas), quatro anos antes da sua morte, o seguinte: Quando for assassinado, sê-lo-ei por um homem do meu povo, do meu partido, provavelmente fundador, ainda que guiado pela mão do inimigo”.

Muitas certezas quatro anos antes da sua morte, da que pensar. Mas independentemente destas nuances doutrinárias, crenças e possivelmente desejos pessoais feitos crenças, percebia-se que na sua mente, ele tentava casar o sonho com a realidade objectiva. Transformar o seu desejo em realidade, embora sabendo que o movimento no seu todo, ainda não estava preparado... e não podia desconhecer isso, nem em 1971, quando disse o que disse, nem em 1973, quando se veio a provar que tudo o que disse se realizou.

E só de imaginar a pressão interior com que viveu durante anos, sabendo ser um alvo a abater, vendo companheiros como Mondlane, Lumumba e outros, sendo assassinados, sem falar de dezenas de compatriotas, que morriam todos os dias na Luta…

Este sentimento, essa certeza macabra, de que também seria traído, que também seria morto, nunca o abandonou, na verdade, durante toda a luta; e mesmo assim ter conseguido fazer tudo o que fez, é impressionante. Outro, no lugar dele, teria fugido a sete pés: outro que fosse cobarde, que não amasse o seu povo, claro.

E como ele não era cobarde, - é necessário frisar que foi abençoado por Deus, com uma coragem imensa - não se pode por a questão de fugir, de se salvar. Mas mesmo que fosse cobarde, Cabral não podia fugir, simplesmente porque ninguém pode fugir de si mesmo. Nem mesmo ele. Todos podiam fugir da Luta, menos ele. Ele era a Luta. Cabral era o seu próprio movimento; seu idealizador, seu realizador; seu guia e seu ideólogo. O comandante em chefe. E desde pequenos que na Guiné, sabemos que o comandante é último a abandonar o barco que esta a afundar. E se nos sabemos, ele também sabia certamente... Nas últimas semanas antes da sua morte andava preocupado e aborrecido, talvez porque a sua intuição lhe dizia que o barco estava a meter agua e podia afundar.

De certa forma, Cabral estava num dilema existencial, que posso resumir com aquelas amargas, mas sabias palavras que Bob Marley veio a proferir anos depois, que já conhecem de cor (por serem de meu agrado, pois são também o meu maior temor, pois eu pessoalmente sonho com “grandes pessoas” mais do que com “grandes sonhos”; pois estes que realizam aqueles, e aqueles são a demonstração da grandeza destes): “As vezes construímos sonhos em cima de grandes pessoas (…)”

Plausivelmente, posso dizer que tinha a mais completa confiança na sua obra, pois mais adiante, no mesmo compasso, diria que ao advir esta fatalidade, sendo morto, então: “teremos dezenas, centenas de Cabrais no nosso povo. A nossa nação encontrará um militante para tomar o testemunho”. Mas ao mesmo tempo sabia que dentro do movimento havia traidores, inimigos e gente sem escrúpulos, só ali estavam para se servirem, para se aproveitarem. Gente que não se deteria perante nada, nem mesmo perante o assassinato do líder e companheiros, apenas para ter mais poder. Gente que a própria destruição do Partido, se preciso for, não era importante, se em troca pudessem apenas elimina-lo. Pois o que eles queriam era acabar com ele para por fim a Luta, e fazer pazes com os colonialistas.

Por isso falo do dilema existencial, pois aparentava ter plena confiança nos “companheiros” dizendo que com a sua morte “encontrar-se-ia um militante, e não um “homem” - para continuar a sua obra - o que seria mais lógico. Se bem que entendo que isso era uma maneira, clara, de reforçar o seu movimento; pois um homem com a sua estatura, não podia desconhecer que os Cabrais futuros, não tinham que provir forçosamente de um determinado partido ou movimento, deviam forçosamente proceder em primeiro lugar, do povo, pois só assim teriam legitimidade.

Pois nem ele próprio proveio do “partido”, veio do povo, para realizar a obra do povo; e nesse caminho fundou o Partido. Mas também disse isso porque acreditava que a sua obra já dava frutos, e só um militante do seu Partido, estaria doutrinado, com ideias certas, e estaria capaz de continuar essa grande obra.

Mas aqui ele não separava o seu partido do povo; como se os considera-se uma unidade, não de contrários, mas de objectivos. É nessas simbologias que se criaram mitos futuros. Por isso se atentarem bem na frase, não dizia que o “partido” encontraria um militante para o substituir, mas que “A nossa nação encontrará um militante para tomar o testemunho”.  

Mas vamos por partes: vou usar a famosa frase que proferiu sobre a sua morte para tentar explicar esta minha tese. “Quando for assassinado, sê-lo-ei por um homem do meu povo, do meu partido” não estava a separar o partido do povo que na sua cabeça muitas vezes eram um só, naquela compreensão muito difundida nessa altura, baseada na ideia que um movimento com ideais tão altruístas só podia ser povo, para o povo e pelo povo.

Acredito que Amílcar Cabral era um homem que acreditava, com a certeza de um iluminado, em si próprio; embora suficientemente realista para poder racionalizar a possibilidade eminente da sua morte, e quiçá falar abertamente sobre isso; mas de também racionalizar as suas hipóteses de sobrevivência, suas capacidades humanas de organizar uma defesa pessoal competente (naquelas circunstancias em que vivia, sem que as pessoas a sua volta sentissem-se ofendidas pela “sua desconfiança”; e sem com isso desse impressão de covardia. pois nesse caso perderia o respeito; e quando um chefe perde o respeito a sua vulnerabilidade é maior ainda). 

Quando for assassinado!”. Concebem a sequência das palavras? Mais do que a lógica do pensamento, havia nelas um certo determinismo fatal. Não disse: “se for assassinado”; o que seria mais lógico. Parecia saber (quase sem sombras de dúvidas) que isso haveria de acontecer, mais cedo ou mais tarde; que “esse dia” da sua morte sobreviria mais cedo do que tarde porventura. Portanto não valia a pena preocupar-se muito com isso. Por isso mesmo não se alarmava muito com os avisos sobre atentados. E essa sua faceta, de homem despreocupado, temerário até, era conhecida de muitos companheiros e por todos os seus inimigos, de Sekou Touré a Spinola.

Mas não menos importante que a primeira parte, ainda temos que analisar a segunda e a terceira parte da sentença, no futuro; pois estavam imbuídos de certezas capitais que me fazem pensar que ele já conhecia os futuros autores do crime que viria a ser perpetrado contra ele: Quando for assassinado - sê-lo-ei por um homem do meu povo, do meu partido e a terceira: provavelmente fundador, ainda que guiado pela mão do inimigo”. E conhecendo-os conheceria os seus motivos, oportunidades, modus operandi e momento…

Mas por agora, a pergunta que se impõe é esta: Porque não abandonou a Luta como muitos outros? Como muitos simples combatentes, que ao verem que a Luta nunca mais tinha fim, resolveram voltar para as suas tabancas, para a lavoura? Como muitos quadros iguais a ele, que vindos da Europa para participar na Luta acabaram por abandonar o movimento. Um exemplo famoso é do Mascarenhas Monteiro, que depois no multipartidarismo, veio a ser Presidente de Cabo Verde. Ou como muitos outros (que segundo algumas publicações) nesse momento estavam a preparar-se para abandonar o barco? Ou por fim a Luta simplesmente, fazendo o mesmo que os seus próprios assassinos? Por isso, baseado neste pressuposto, procuro aquele entendimento que habitualmente escapa a toda a gente que participa numa grande obra, menos o seu fundador e realizador; seja um movimento, uma religião, uma grande empresa, uma universidade, etc., etc. Há uma relação quase passional , no sentido “pai filho” que se estabelece pouco a pouco e só é apercebida (até pelo fundador) em momentos críticos ou limites.

Agora vamos tentar racionalizar o irracional: Voltando a minha pergunta sobre a heroicidade de ir até ao fim, mesmo que o fim seja a morte: Que homem vê a morte caminhando em sua direcção não foge? O corajoso entre os corajosos? O homem que procura a imortalidade?

No caso dele, não creio; pela formação e carácter, não creio mesmo. Entendo que a explicação não pode ser racional, e tem que ser encontrada num contexto que vai para além do concebível: Outro, no lugar dele, teria escapado; teria arranjado mil e uma desculpas para abandonar a Luta; podia ser doença, estudos, convites internacionais, etc., outro, que obviamente, fosse cobarde, e que não amasse o seu povo; e não apenas amar (isso é elementar) mas estar disposto a morrer por ele.

Aqui a explicação não pode ser racionalizada, e tem que ser entendida num contexto que ia para além do concebível e para alem da realidade imediata que o cercava e acossava por todos os lados. Aqui já não estamos no reino da especulação política; estamos no reino da especulação filosófica, se queremos, ou existencial. Se disserem a qualquer um de vós, morram agora ao serviço do vosso povo e terão a imortalidade, ou vivam em paz e troca serão apenas mais um que passou fugazmente neste planeta, qual escolheriam? Penso que escolheriam a imortalidade; digo, escolheriam a imortalidade e não a morte, porque morrer pelo povo é já a imortalidade; e não há melhor morte, nem mais bela morte do que essa. Isso desde o inicio da humanidade. Por isso disse no Primeiro Instante que precisámos saber realmente quais eram os sonhos, motivações e ambições de Cabral; ir para alem do óbvio e penetrar na essência das coisas e saber por fim, quem é este Amílcar Cabral, que anos e anos a fio não deixa o nosso espírito comum repousar. Mas ninguém pode responder a esta pergunta, nem Cabral, pois isto é algo que vai para além de um “pensamento puro”, e nem a “razão pura” o pode analisar e equacionar; não pode ser pensado ou raciocinado de modo formal. faz parte daquele “algo” ténue, quase imperceptível, que faz parte de nós, mas que nunca o nosso espírito consegue trazer do subconsciente para a realidade objectiva dos nossos pensamentos. 

II

 

Por isso tudo o que vou dizer a seguir, a primeira vista pertence ao reino da especulação ou até da efabulação; mas acredito piamente nesta possibilidade; pois já a “vi” na historia centenas de vezes e as vezes realizada por pessoas menos dotados (no sentido do patriotismo e amor ao seu povo) que Amílcar Lopes. Nos meus textos sempre vos dei exemplos de heroísmos como a sublimação do ser humano antes da sua passagem para a imortalidade. Cabral acreditava na imortalidade e no determinismo histórico e creio que mais que ninguém nesse movimento (muito menos os seus assassinos), tinha a consciência exacta do seu papel e da sua importância histórica já nesse momento que atravessava; e qual é que seria no futuro; e sabia que ficando vivo seria um, sendo assassinado seria outro. 

Portanto, embora creio que fosse um ser suficientemente perspicaz para alcançar as consequências imediatas da sua morte no futuro (calcular com alguma margem de certeza, o impacto politico interno e externo que teria esse acontecimento), e até “saber” o que viria a acontecer com o seu movimento depois disso, de modo frio e impessoal, e continuar a exercer as suas funções como se nada fosse é obra. Pois realisticamente ele, com as suas capacidades de previsão e liderança, podia alcançar (e creio que alcançou) que a sua morte poderia ser “benéfica” para o seu movimento, numa determinada lógica (e tal veio a ser provado, também numa determinada lógica, é certo). Mas depois de ter alcançado essa certeza, depois de todos os prós e contras que passaram pela sua cabeça, será que queria ser o cordeiro sacrificado?

Tinha quarenta e nove anos, estava no auge da sua maturidade como ser humano, no zénite da glória como politico mundial, e um dos líderes africanos mais respeitados do seu tempo. Já tinha feito mais do que qualquer outro Guineense vivo ou morto fez ou viria a fazer proximamente. Era já reconhecido (em vida) como um estratega de guerrilha incomparável, superior ao próprio Che Guevara; comparável a Ho Chi Min e quiçá a Mao Tse Tung, salvaguardadas as proporções. Ao mesmo tempo era tido como um dos maiores pensadores africanos de todos os tempos, na linha de um Leopold Senghor, Kwame N Nkrumah, de um Ahmed Ben Bela (que gostava dele e sempre o apoiou) e outros que fizeram a história. Falava de igual para igual com François Mitterrand (que o admirava), Olof Palme e com varias personalidades mundiais do seu tempo. O que lhe faltava? O que o “impedia de morrer”? Nos, na verdade, só estamos vivos enquanto algo nos impede de morrer, quando esse algo desaparece, temos muita pressa em morrer. Tanta pressa que os próximos não entendem. Mas a morte só pode ser almejada com pressa. Almejar a morte, devagar, não é possível. Quando se decide morrer, tem que ser depressa…

Mas já tinha atingido a supremacia; sobre si mesmo, sobre a vida, sobre o destino, tal qual um Alexandre, acreditando profundamente em si próprio, sabendo para além do céu e do inferno, que a sua causa era justa, pois era a causa do povo. E ainda por cima sabendo que não podia delegar em ninguém as suas responsabilidades, pois não era uma questão burocrática, não era um posto que uma outra pessoa pudesse ocupar. Não era “o posto” de Secretario Geral do Partido que era ocupado por ele; ele era “o posto” em si. Portanto só por cima do seu cadáver, podia ser ocupado por alguém, como veio a suceder.

Voltando atrás, Cabral não “fugiu” porque já tinha tomado aquela decisão, que depois de tomada, nem o medo da morte nos abala? Aquela decisão inabalável de acreditar que o povo merecia “tudo”, e “mais ainda”: a nossa própria morte se preciso for? Aquela decisão, que no fundo, não pertence a dimensão do material, mas do espiritual?

Já vos disse que um homem pode não dar a vida pelo filho, mas dá-la pela nação. A lógica é a mesma (se é que podemos falar da lógica aqui). Creio que existe uma dimensão que ultrapassa o próprio homem, e podemos viver toda uma vida sem a conhecer, até que um dia, somos confrontados com ela…

Para entenderem melhor este meu ponto, devo recuar no tempo e dar-vos um exemplo “clássico” da antiguidade clássica, que muitos jovens Guineenses na diáspora, conhecem, pelo filme de grande sucesso intitulado “300”:

Quando o rei de Esparta, Leonidas, com 300 homens apenas, partiu para enfrentar o exército persa calculado entre de 50 000 a 200.00 homens, sabia, quando despediu a sua amada esposa e filho único, que nunca mais os veria. E este saber era “sem nenhuma dúvida”. Sabia que nenhum deles voltaria vivo (ou morto) a Esparta. Sabia que ao enfrentarem aquela monstruosa máquina de Guerra, alem de serem mortos, seriam destruídos e triturados". - Almocem comigo aqui, e jantem no inferno" - teria dito (por isso pediu que dos trezentos voluntários que o acompanhariam, só fizessem parte os que já tinham um filho pelo menos); percebeu portanto, com clareza total, que iam para uma derrota total e inapelável, pois nenhum poder sobre a terra os poderia salvar; mas percebeu acima de tudo, que as suas mortes serviriam a “algo” maior, do que as suas próprias vidas. E esse “algo” era a preservação do povo. E como ele previu, as suas mortes, o glorioso sacrifício, serviu; pois esses trezentos que caíram no desfiladeiro de Termopilas mudaram a Historia do seu tempo, da sua nação e do nosso mundo actual. O tempo decisivo em que aguentaram o exército de Xerxes, permitiu que outros Gregos viessem em socorro de Esparta, e assim por fim derrotarem os persas.

Por isso, mitologia a parte, mesmo sem o sacrifício de Leónidas, 200.000 persas contra 7 ou 9 mil gregos, que seja, é mais que heroísmo. Se os persas tivessem vencido, a Europa (e África) teria caído nas garras desse tirano rei Xerxes e a História do mundo seria outra hoje.

Nesse momento, para o rei Leónidas e os seus 300 bravos, não era uma questão de vencer ou ser derrotado, pois a derrota era certa; não era uma questão de viver ou morrer, pois a morte era certa; era uma questão de dar a vida, para o povo “continuar”: era uma questão de preservar o povo. É neste entendimento que num dos meus escritos disse que as mortes dos Guineenses, se não puderem ser evitadas, devem servir para o engrandecimento pátrio. Devem ter uma utilidade para além de gerações. Utilidade, essa, que deve ser tão significativo, que mesmo depois de uma centena de anos estarão actuais e prontas a implementar. Pois o povo precisa de “continuar” depois de nós…

A vida dos povos, como a de pessoas, as vezes é bafejada por vezes, com estes “instantes” transcendentais de que vos falei. Por isso sem fazer anologias entre o presente e o passado, creio que Cabral, em certas alturas entendia e encarava a possibilidade da sua morte, não apenas como uma fatalidade inevitável, mas como algo necessário. Isto num certo entendimento difuso “que diz” que se essa morte, viesse a suceder, seria útil e impulsionador da Luta. É nessa lógica de pensamento, creio, que afirmava que quando o matassem, a Luta não seria travada. Que quando morresse, surgiriam “novos Cabrais” para ocupar o seu lugar. Espero sinceramente que neste particular venha a ter razão um dia...

 

O INSTANTE DA MINHA GERAÇÃO: O INSTANTE EM QUE CHEGOU O NOVO MUNDO VISLUMBRADO PELOS NOSSOS OLHOS DE CRIANÇAS

 

                                                                       “Teremos que nos arrepender nesta geração,                                                                            não tanto das más acções da gente perversa,                                                                            senão do pasmoso silêncio da gente boa.”

 

                                                                                                                      Luther King                           

Sendo de uma geração que por ser então muito nova, não pôde participar na gesta de Amílcar Cabral e Domingos Ramos, mas que no entanto, veio a viver e adquirir valores iguais aos deles, que nos fizeram quem somos hoje, no que concerne ao nosso povo e nação. São esses valores, de permanente dever para com a pátria (sempre estaremos em divida para com a nossa pátria e povo até morrermos) que a nossa geração veio à herdar a seu tempo e assumi-los como parte intrínseca da sua mundivisão e seu natural sentir, nesse sociológico espaço temporal feito de mortos e vivos, de valentes e cobardes, de heróis e traidores, num tempo que não nos foi dado viver.

Por sermos já possuidores de conhecimentos e segredos, que ultrapassavam a nossa idade cronológica (mas não a mental) já intuíamos que as “coisas iam mal” e que os que nos governavam “não sabiam o que faziam”; e para a nossa desgraça nem podíamos dizer como nas Sagradas Escrituras, “Pai perdoai-lhes pois não sabem o que fazem”, pois o que faziam não tinha perdão. E assim, nos umbrais de uma revolução social – politica, industrial e comercial se quiserem - que nunca se realizou, num permanente “um passo em frente dois passos atrás”, sem glória e sem futuro, esperamos em vão, e em vão ainda esperamos. E assim num ritmado “marcar passo”, tivemos a sorte ou azar, de crescer no limbo de uma ideologia, que pese a nossa pouca idade, não nos subjugava, nem intelectualmente, nem, pese a redundância, ideologicamente.              

Isso aconteceu por já sermos parte da “parte humana” dessa própria ideologia que não nos cegava e nem convencia, mas que não podíamos mudar, tornamo-nos pouco a pouco na prova física da existência do projecto de “construção do homem novo” que se pretendia realizar nas escolas, ciclos preparatórios e liceus do País. E nesse estranho país de faz de conta, tivemos a sorte de atingirmos a maturidade muito cedo, nesse afã de educar e ensinar a geração seguinte, nesse grandioso desiderato teórico e ideológico de Cabral, de tentar acabar com o analfabetismo e obscurantismo, no espaço de uma geração.

Também porque atingimos a maturidade juvenil, a faculdade de entender, no preciso momento em que o mundo se cindia a frente dos nossos olhos, que incrédulos contemplavam a transformação da teoria em prática; da escravidão à liberdade, da colónia ao país, de desgarradas tribos soltos aos ventos da história, à nação. A promessa do homem novo habitante futuro de um mundo novo que seria a pátria onde viveriam os nossos filhos; filhos de crianças de 12 anos, que tinham certeza que depois de todo o desespero, depois de todas as tempestades, a bonança chegaria no porvir glorioso. Num mundo que bela sua beleza justificaria todos os sacrifícios consentidos e não consentidos.

Mas mesmo acreditando em certos valores que de uma maneira geral fazem parte dos valores da humanidade, nunca os pondo em causa, para a nossa geração, esses valores, quiçá essa concepção do mundo, não eram extáticos para nós; e sempre olhamos para o futuro próximo; sempre esperando o “the next move”. Esperando esperançosamente o próximo desenvolvimento, que nunca veio a suceder, na cadência dos passos dados no mesmo sítio. Quando não era “um passo em frente e dois atrás” como o nome do famoso livro de Lenin. E nem era por questões tácticas, mas por inépcia e falta de patriotismo.

II

 

Disse várias vezes que este texto é apenas uma tentativa de através da vida e morte de Cabral, “entender” o “que se passou connosco” como povo, durante estes últimos quarenta anos. Entender porque o tão ansiado “new step of revolution” não se sucedeu; porque é que esta revolução foi afogada em sangue de tanta gente inocente; sim inocente; inocentíssima, porque não é pelo facto de uma parte do povo não comungar dos mesmos valores ideológicos que o poder defende, que a faz culpada de algo. O desenvolvimento económico e social foi preterido, e substituído por sanguinários ajustes de contas e no afã de amordaçar todo um povo. E o resultado anos depois foi ter criado um povo sofrido, silencioso e paciente, as vezes até a apatia, em relação ao seu destino.

Mas como esse povo é único que Deus me deu, a única maneira que tenho - de “através de Cabral chegar aos Guineenses” - é contar o que vivi naquele instante em que o novo mundo chegou. Quero voltar no tempo e no espaço, para vos contar como o novo mundo encontrou a nossa geração; possuindo a nossa lama, entrando pelos nossos olhos adentro, dominando a nossa existência: foi de repente, como uma tempestade de verão, interrompendo a nossa infância com o fragor de um temporal de “chuva de pedra” nas densas florestas de Quinara.

Mas foi numa bela tarde de sol radioso, postados nos jardins da “Praça do Império” (que viria a ser gloriosamente rebaptizada de “Heróis Nacionais”) , vimos o novo mundo subindo a avenida, em caros e camiões, em motos e bicicletas, em cavalos e trotinetas, em todo o tipo de viaturas improvisadas, na cadência de milhares de pés, cheios de pó, molhados com o suor dos seus rostos, nos olhos lacrimosos dos velhos e brilhantes das crianças, na toada de gritos, que enrouqueciam as nossas gargantas, no som dos aplausos e estrondos; de “vivas” e “hurras”.

Vinha vestido de panos legoss, panos de pinte, balalaicas, camisas bambi, calças jeans da Lee e da Levis`s, de lopé e kanossobá, cobertos de lama e vestidos de palha de Kumpó, lembrando-me a minha infância em Farim. Vinha carregado de armas e cinto de bala dizendo com orgulho: sou um combatente. Vinha de sumbea na cabeça, vinha de camuflado, vinha de canhuto na boca, cheirando o intenso odor de tabaco, espalhando o fumo que cobria a sua cara enrugada de velho muro; vinha no riso das crianças, nas exclamações de admiração das meninas casadoiras que vislumbravam um potencial futuro marido; vinha em dezenas de rapazes mais velhos que nós, pendurados nas árvores da praça para dai ver a varanda do palácio, onde os “heróis vivos” se perfilhavam esperando a hora. Vinha nos microfones espalhados pelos candeeiros, de onde escapavam acordes de canções revolucionárias, canções de intervenção, ouvindo-se os acordes de “Cabral ka muri”…

Assim veio e assim chegou, o novo mundo, nesse dia que foi o dia mais fantástico e alegre da nossa curta existência. Nesse momento magico, nesse instante só nosso, em que estávamos a deixar de ser crianças brincalhonas para transformar-nos em sérios jovens, adultos demais para a nossa idade, que já olhavam para o mundo com olhos de ver. E ainda hoje já “velho e cansado”, cada vez que vou a Guiné, escolho um dia, em que sozinho vou a essa praça, e as vezes na escuridão total, sento-me num dos bancos (não consigo escolher nenhum, pois em cada um, uma recordação, uma lembrança querida; um abraço amigo, uma troca de olhar, o dia que meu avó me ofereceu a minha primeira maquina de barbear, aí ao lado, um beijo furtado, um olhar cúmplice, um olhar cheio de promessa de uma menina de cabelos despenteados, um discurso emotivo, uma alegria inexplicável de apenas ser um menino na sua meninice, na terra que o viu nascer), fecho os olhos, deixo-me levar, deixo de escutar os ruídos do mundo, para apenas lembrar: e relembrar. Lembro um tempo que não voltara, lembro um tempo que fui feliz; lembro, lembro e lembro. Ah, como me lembro… E ainda hoje, volvidos tantos e tantos anos, essas lembranças, que já são mais que lembranças… ainda fazem o meu coração bater mais depressa.

Lembranças de um mundo que chegou, mas nunca adveio na verdade, mas que existirá sempre no nosso espírito; porque foi forjado em cima das nossas juvenis almas que ainda acreditavam que a matéria-prima da realidade é o sonho. Por isso não conseguiram profanar os nossos sonhos, que ainda existem incólumes, esperando a redenção; não lograram embaciar os nossos olhos, que ainda contemplam o amanhã glorioso.

E assim, vislumbrando o milagre, apercebendo o milagre, herdamos aquele instante sagrado em que o tempo e o espaço se dividiam perante os nossos curiosos olhos de crianças, para assistirmos a chegada de um novo mundo, que se não existia na realidade, existia nos nossos sonhos de criança; naquela concepção do mundo que foi a segunda a ser incutida nos nossos jovens espíritos, que tal tabula rasa do John Locke, desconheciam ainda as subtilezas do entendimento humano.

 

O INSTANTE DE DOMINGOS RAMOS E VITORINO COSTA

                                                                                                    

Os bons vi sempre passar/ No mundo graves            tormentos;/ E para mais me espantar/ Os maus vi sempre nadar/ Em mar de contentamentos.                                                                                                                                                          Luís de Camões

 

A nossa Luta de Libertação Nacional não teve um poeta “maior” que a eterniza-se no tempo e na memória das gerações vindouras. Um bardo que escrevesse o seu poema épico, onde o heroísmo e a glória seriam contados. Um trovador que compusesse em versos a nossa “Canção do Rolando”. E não menos importante, um Tolstoi para em prosa escrever a nossa “Guerra e Paz” feito igualmente de heroísmos e cobardias, de sacrifícios e malandragem… Mas a matéria-prima - de que são feitos a prosa heróica, as canções patrióticas, os poemas homéricos - tivemos... A nossa medida, é certo, mas tivemos… e a nossa medida, vendo bem, não pouco.

Geralmente poemas patrióticos como os “Lusíadas” são a estilização de factos reais, que depois com o passar de tempo, de geração em geração, são mitificados. Essa transformação em mitos, essa mitificação é necessária, pois é ela que da beleza aos actos “menos belos” e gloria eterna aos “menos notáveis”, sem deixar de realçar os mais gloriosos. E isso não se compadece com “provas” e “inquéritos” e “testemunhas”. Combates lendários, heroísmos insuportáveis para um ser humano, não podem ser baseados em verdades provadas.

Alem de que essa mitificação é quase que uma necessidade histórica para que os vivos “… mereçam os mortos” e se orgulhem do seu passado. Conta-se que um dos nossos primeiros heróis a cair em combate, Vitorino Costa, teve a triste sorte, de depois de deceparem a sua cabeça, esta ser exibida pelos colonialistas, em tabancas da nossa terra, para desse modo aterrorizar as populações. Esta barbaridade inominável era como que um aviso mudo de forma a dissuadir o povo de apoiar a Luta de Libertação e os jovens a juntar-se as fileiras dos combatentes.

Disse uma vez, que se naquele fatídico dia da sua morte, Domingos Ramos, não escreveu de facto - com o sangue, que caia dos seu ferimentos de balas - aquela carta dirigida a Amílcar Cabral, como nos contaram em criança, eu não quereria saber disso para nada; pois a mim o que interessa é saber que Domingos Ramos caiu pelo nosso povo, tombou por um ideal sagrado, e que por isso, devemos ser eternamente gratos a esse filho do nosso povo.

Instantes como estes é que são a matéria-prima dos mitos, e muitas vezes quando são contados, não o são exactamente, como se passaram; mas são importantíssimos para “reunião” do povo e para o seu despertar patriótico. A quem diga que nunca houve o “Grito de Ipiranga” que simboliza a independência do Brasil; que é uma mistificação para dar mais gloria a História do Brasil. Seja como for, “provar” ou não estes factos não acrescenta e nem tira nada ao sentimento de patriotismo e pertença de um Brasileiro a sua Nação. E se isso aumenta esse sentimento, prefiro que ela seja contada as gerações vindouras como “factos” (no sentido histórico) e não como meras “hipóteses” que se podem ou não provar.

Conta-se que quando pela primeira vez Cabral viu a bandeira da Luta a ser içada, foi Domingos Ramos - a frente de um grupo de combatentes -, é que realizou esse acto sublime. A gesta destes jovens combatentes, pela sua importância e dignidade, só podem ser contadas numa prosa heróica, em versos épicos e canções patrióticas.

Nesse sentido, entendo que a morte de Cabral - que também morreu jovem como aqueles - que aqui analisamos especificamente, também não pode ser “analisada” apenas de uma forma “formal”, despido de magnificência, como um acontecimento particular ou que apenas que concernia ao seu partido ou movimento. Pois de uma forma ou outra, a sua vida e obra (e a dos seus heróicos companheiros) ainda influenciam o nosso viver actual.

Cabral como que prestando-lhes uma homenagem diz dessa classe de pessoas: “(…) há um grupo pequeno que desde o começo se levantou com a ideia de lutar, que é contra o colonialismo português, que está pronto a morrer, se for preciso, contra o colonialismo português. E é nesse mesmo grupo que surgiram pessoas que pegaram no Partido. Porque se vocês repararem bem, a maior parte das pessoas que criaram o Partido, nem pagaram imposto, nem levaram porrada, nem mesmo tiveram falta de emprego, pelo contrário, tinham uma vida razoável. Essa é a situação da nossa pequena - burguesia diante da luta, quer na Guiné, quer em Cabo Verde.

Aqui o dever impões dizer que, embora Cabral não tivesse falado deles, de modo particular aqui, sabemos que muitos que cabem nesta descrição de Cabral não chegaram a pertencer ao Movimento dele, mas isso não lhes retirou a glória de à sua maneira terem tentado lutar pela liberdade do seu povo. Pois o movimente de Cabral, com toda a sua gloria, não foi o primeiro, foi um herdeiro de todo um passado heróico. talvez por isso, para não se confundir os lutadores pela liberdade com o próprio povo, aqui nunca se gritou tão convictamente “PAIGC é o Povo e o Povo é o PAIGC”, como em Angola, se disse até a exaustão que o “MPLA é o Povo e o Povo é o MPLA”, porque diferentemente de Neto, porventura Cabral não só entendia que isso era uma falsidade (e não estava para enganar ninguém), como queria manter viva a separação entre o Povo e o Partido; e percebia que - mesmo que apenas ideologicamente – no dia que essa separação se esfumasse, não haveria quem libertar (e consequentemente não seria necessário haver libertadores). Embora, saliento, que “encontrei” nele esse desejo de fundir o movimento no povo (como forma de proteger este daquele?).

Estas vidas e obras, muitas vezes, são desconhecidas da maioria de Guineenses. Aqui quero lembrar de guineenses ou descendentes de guineenses como Henry Labery, Vicente Có (que cheguei a ver uma vez em Bissau, no meu tempo do liceu), Lopes da Silva, Kankoila Mendy e antes destes, outros em Bolama, Bissau e outras povoações, que também lutavam, pela emancipação do povo Guineense.

Mas hoje, as vidas e mortes, vitórias e fracassos, de tantos outros Guineenses que da sua maneira, da forma que acharam melhor e mais correcta, tentaram fazer algo pelo nosso povo, devem ser estudados, realçados e dados o seu devido valor, podem ser usados para mudar o nosso paradigma existencial. Pois um dos nossos problemas é um vazio espiritual sobre quem somos como povo e quais são realmente as nossas capacidades reais de transformar as nossas adversidades em oportunidades. Transformar o nosso país num lugar maravilhoso para se viver.

Devemos isso ao nosso povo, pois nunca demos-lhe nada, absolutamente nada de palpável e concreto em termos de desenvolvimento e progresso. Apenas instabilidade, instabilidade e mais instabilidade. Apenas crimes, crimes e mais crimes. Apenas divisão, tribalismo e ódio. Apenas uma a “filosofia da miséria” consubstanciada numa “ideologia do nada”.

A nossa elite esclarecida - mesmo que seja apenas aquela parte que ainda não claudicou perante a enormidade da miséria e da tarefa - deve repensar o seu entendimento profundo quanto a esta nação e o seu porvir, e finalmente reconhecer o seu dever na condução do povo rumo ao futuro; e corajosamente, por fim, pela primeira vez, desempenhar o papel que lhe cabe por dever e direito, como todas as elites, em todas as nações.

 

NEM TROTSKYSTAS NEM STALININISTAS, APENAS IDEÓLOGOS DO DELÍRIO E PROGRAMADORES DO NADA

 

“Às casas, às nossas lavras
às praias, aos nossos campos
havemos de voltar.
Aos nossos rios, nossos lagos
às montanhas, às florestas
havemos de voltar.

 

                                                                                                                                     Agostinho Neto, in “Sagrada Esperança

 

 

Hoje volto a um outro tempo, que como esse, jamais voltará. Quero voltar com vocês, hoje, à noite dos tempos, a um tempo anterior a este que nos foi dado viver, para tentar entender “o que realmente aconteceu”. E não apenas para “conhecer” os acontecimentos, os diálogos, os ditos, afirmações, actos e tiros, mas também penetrar na essência das coisas, no caldo de cultura onde fermentou a impunidade e desgraça. Pois para além dos factos reais, existe a dimensão espiritual que a fundação de um estado e a criação de um povo, não podem dispensar. E quem ignora isso, como foi futilmente ignorado durante anos na nossa terra, só pode herdar este deserto de almas, que chamamos pátria.

Há bem pouco tempo, me contaram a triste história de um quadro Guineense - relativamente jovem, que portanto nunca poderia ter participado na Luta de Libertação, e que presumo que tudo o que sabe desse tempo é por ouvir dizer (e como disseram-lhe, é claro) – que se vangloriava aqui em Lisboa, em alto e bom som, de ter ido ao exacto local onde o Amílcar Cabral foi assassinado, para mijar despudoradamente em cima do pequeno monumento ali erigido, para assim demonstrar o seu desprezo por esse homem. De facto este nosso “grande quadro” deve ter feito realmente muito para a nossa pátria, ao ponto de poder desprezar o contributo “daquele outro” chamado Amílcar Cabral, que “nada fez”.

Aonde é a origem deste rancor? Donde vem esta nefanda cultura? Esse acto insano de vangloriar-se por algo tão espúrio, que qualquer pessoa normal, em qualquer sociedade, acha abjecto, tem a sua “explicação” num passado feito de mitos e de mentiras que é espalhado por um “programa do nada”. É este “programa do nada” que nos levou a onde estamos. Por isso estes e outros actos vis remetem-nos, querendo ou não, para esse tempo do antigamente, para o tempo dos assassinos, para procurar as raízes do ódio, pois as consequências do mesmo, conhecemos bem demais.

Há já uns anos, logo depois da Guerra de 1998, quando as emoções nacionais estavam a flor da pele, e as paixões ao rubro, li num site (Portugalnet?), as palavras de um jovem Guineense, que odiava tanto a Cabral, que escrevia qualquer coisa como “era bem feito o terem morto” e que “sentia alegria por ele ter sido assassinado”.

Aqui só posso pedir licença a Sua Excelência Ernesto Dabó, para também dizer que “se ca triste i ta dá garassa”. Mas se fossse apenas isso, tristeza e alegria, dois dos mais maravilhosos sentimentos humanos… ou apenas incompreensão, algo que pode ser esconjurado com frases sentidas como “tenho profunda vergonha de ser compatriota de tais individuos” ou frases feitas como por ex: “são gente sem cultura que não interessam a ninguem.”, etc., etc. mas é muito mais que isso, é algo muito mais profundo e complicado, é algo vindo de uma podridão moral, deletério, muito mais complexo e amoral do que parece a primeira vista.

E aqui nem estou falando apenas do ódio e maldade pessoal ou particular de um ou outro dos nossos compatriotas; estou falando de uma outra dimensão, que tem a ver com a nossa cultura actual, e com o estádio de desenvolvimento da nossa pátria. Com a mentalidade atrasada, cansada, inepta e completamente estapafúrdia que tanta gente nossa conhecida tem, para a nossa desgraça, para a profunda desgraça do nosso povo. 

Na verdade este povo precisa de um vingador; de um que não tenha olhos, nem ouvidos e boca; que não tenha tribo nem cor da pele; que não tenha ideologia nem querer; um que não tenha pai e mãe, filhos e netos; um que vem do nada para lá regressar; um que use apenas a “razão pura”; de um que não tenha “nada a perder”; de um que exista apenas para “vingar o povo” por fim; um que só exista para a realização do povo e se consuma totalmente nesses desiderato (pois sem esta condição nada será possível). Um que saiba como Cabral que a sua vida só tem um destino: morrer para a redenção desta nação. Um que não deixe pedra sobre pedra, de todos os nossos males e desgraças, para que por fim as sementes do nosso envenenamento como povo sejam expurgadas para todo o sempre. Para por fim, por fim, ao abastardamento do povo.

II

 

Por isso quero voltar ao fim dos tempos, ao dia em que mataram o homem que proporcionou o dia da tempestade. O homem que para nós, na nossa inocência, despido de vestes humanas, alçava-se até o infinito. O homem que nos disseram, significava o presente e o futuro do seu movimento. O alfa e o ómega do seu Povo.

Voltar para ouvir e entender as antagónicas divergências ideológicas que originaram o seu assassinato. Pois quando atingimos um determinado nível, num duro combate pela vida, não podemos morrer de coisas prosaicas, de causas insignificantes.

Voltar para conhecer o materialismo de uns e o idealismo dos outros, seguir o raciocínio dos partidários da autarcia e dos da unidade africana; dos que queriam, depois da Luta, construir um país socialista e os que queriam um modelo híbrido capitalista e socialista; os que eram apenas partidários do modelo social democrático sueco, digamos; os que queriam unidade das duas colónias que o movimento libertador queria e assumia representar, e os que queriam a separação; queria conhecer as teses de uns e de outros; as razões económicas, sociais e históricas defensáveis e indefensáveis; assim para entender as paixões políticas, escutar o fragor dos duros combates ideológicos.

Infelizmente nada encontrei de significativo, teoricamente forte e contestador da liderança de Cabral. Nada; não encontrei vestígios de nenhumas “revoltas activas”, ou “do Leste”; não encontrei trotskistas, maoistas ou leninistas de sempre, que nesses tempos, eram sempre gente incontornável em qualquer movimento, seja na Europa ou Ásia. Nem a facção “bolchevista” nem a “menchivique” do movimento; nem os comunistas impenitentes, nem os defensores do livre mercado; não encontrei textos teóricos (tirando os de Cabral) com inflamadas ideias sobre o futuro da pátria (embora o movimento possuísse uma mão cheia de intelectuais e militantes com boa formação).

Não encontrei a essência da divergência teórica, que deve estar na vanguarda de uma verdadeira Luta ideológica, política e moral para a derrota de toda uma concepção do mundo e a sua substituição por outra mais justa e mais progressista. Pois na Guiné os soldados portugueses não defendiam colonos portugueses ou minas de ouro e diamante como em Angola. Na Guiné defendiam uma ideologia e uma concepção do mundo, por isso mais difíceis de derrotar. No entendimento maior defendia-se o mais antigo sonho do ser humano: a igualdade entre todos os seres humanos. Defendia-se a igualdade entre o negro e o branco.

Mas do combate teórico, nada encontrei: enfim, não encontrei nenhuma facção Chipenda, rivalizando com a facção Neto; nenhuma “revolta do leste”. Nenhum Viriato da Cruz disputando ideologicamente a liderança com ideias e teorias mais avançadas. Não encontrei o que gostaria de encontrar, não encontrei a determinação de construir uma nação com todos os guineenses, sem excluir ninguém: nem pela cor da pele, nem pelo nascimento, nem por ser militante ou não, nem por estar a viver na zona controlada pelos portugueses, nem por ter trabalhado do lado colonial. Queria encontrar a disposição de concórdia, de paz e união nacional, baseada numa comunidade de iguais; um espírito de perdoar e reconciliar.

Um espírito que os teóricos da Revolta Activa contra a facção do presidente Neto, no seio do MPLA exprimiam no seu “manifesto”: O facto de resistir à colonização cimenta a Nação em constru­ção. Constitui um dever sagrado de todos os nacionais, independen­temente da sua ideologia política, local de nascimento, sexo, origem racial ou étnica, da sua religião ou da nacionalidade dos seus ante­passados, lutar pela construção de uma Angola definitivamente liber­ta do flagelo colonial. E cumprido inteiramente esse dever primordial para com a Pátria, o nosso continente e o mundo, que nos tornamos realmente, cidadãos nacionais angolanos, um povo digno do respeito dos demais povos do mundo. (…)

Há algo mais bem escrito que este texto? Este texto define-me como ser humano e define a minha geração. É isto que sempre desejei e ansiei para o meu povo. Este deve ser o crer, a filosofia e a ideologia do homem novo que quero um dia ver. Mudar a palavra Angola por Guiné e mais nada; não precisava escrever nem uma linha do que escrevo; pois nada do que digo diz melhor do este texto com mais de quarenta anos.

Aqui, onde foi a última trincheira entre o Estado Novo de Salazar e um novo mundo sem o Colonialismo, não houve o verdadeiro confronto teórico e ideológico. Tudo faltou de modo gritante; mas se fosse só isso; apenas uma questão politica ou de divergência política, sobre como conduzir a Luta, sobre as alianças feitas ou não com os soviéticos, Chineses ou com os Americanos; estratégia de Luta total… ou pontuada com negociações; o papel e lugar das mulheres no processo de libertação; como combater o tribalismo no seio do movimente, como acabar com a superstição, as crenças atrasadas em irãs e djambacusses, etc., etc., tudo muito compreensível, dentro de um movimento heterogéneo, feito de varias sensibilidades, e composto por militantes de vários extractos sociais e tribais.

Nada encontrei de parecido pois nunca foi isso no fundo, nunca foram disputas ideológicas e programáticas, foram sempre coisas baixas e rasteiras, da altura das cobras… “Encontrei” uma mão cheia de nada, feita de boatos, acusações, insinuações, complots, tentativas de assassinatos reais e fictícias. Encontrei desejos de vingança e de ajuste de contas que viria a custar tão caro aos Comandos Africanos e a muita boa gente. Desejos de vingança, que como um boomerang, depois voltaram contra os seus mentores.

III

 

Encontrei sombras de “Fraccionismo” e candidatos a futuros “Nitos Alves”; encontrei não um círculo virtuoso mas um vicioso, feito de muita gente, de uma cultura estreita, armados de uma ideologia tacanha, que se moviam no lodo da mentira, obscurantismo, ódio tribal e racial, no ódio ao ser humano, no ódio a tudo que é excelso - no aproveitar dos sentimentos baixos e mesquinhos de pessoas fracas e não instruídas para dividir e reinar – e passível de ser transformado num projecto grandioso. E não deviam ser poucos em Conacri desses dias.

Sem programa sem visão e sem uma verdadeira ideia para a nação... apenas com um pobre simulacro de ideologia feita de simplistas noções, esquecendo que uma Luta, como uma Revolução, é feita com ideias e não com boa vontade. E não é com “nô djunta mon” e “nô pintchas” por mais honestos e patrióticos que fossem.

 (e para a nossa desgraça depois tentou-se construir a pátria com estes mesmos simplistas “nô djunta mons” e “nô pintchas”, sem substancia real, sem sustento económico, sem pés nem cabeça, mas disso falaremos a frente).

Na Guiné não sonhávamos com o voltar “às nossas terras vermelhas - do café, brancas de algodão – verdes, dos milharais”. Sabíamos que não havíamos de voltaràs nossas minas de diamantes ouro, cobre, de petróleo”. Sabíamos, pelo contrário, que voltaríamos a triste desolação de uma pátria, onde o colonialista nada fez em 400 anos. Sabíamos que o que nos esperava, o que devia ser realizado, era mais duro ainda, que o titânico combate agora travado.

Mas como eles, também devíamos ter a sagrada esperança de voltar para transformar a nossa terra em verdes milharais, brancos arrozais, amarelos laranjais que agasalhariam o amendoim e o sorgo. Saber que voltaríamos para pastorear o nosso gado, rentabilizar o nosso mar e transformar a natureza em riqueza, em escolas, em hospitais, em pontes e estradas largas para escoar os produtos e o povo caminhar rumo ao futuro.

 

A COR DA PELE: UM PROBLEMA DE SOPA DOS POBRES

 ENTRE OS “PRETOS WAKS” E “BURMEDJOS NOCKS”, PROVOCADO POR “BRANCOS FANDANS

 

                                                                       Não sentiremos nenhuma piedade dos antigos                                                                           governantes (…). Para nós, aquele que adora o                                                                        preto é tão “doente” quanto aquele que o                                                                                 execra.             Inversamente, o negro que quer                                                                                    embranquecer a raça é tão infeliz quanto                         aquele que prega o ódio ao branco.

 

                                                                                                           Frantz Fanon

 

Álvaro Nóbrega, já antes mencionado neste texto, é um Português, que de uma tese de mestrado, fez um livro intitulado “A LUTA PELO PODER NA GUINÉ-BISSAU”, onde fala sem tabus desta questão que nós Guineenses evitamos sempre que possível (e quando não evitamos baseamos a nossa análise em mitos, inverdades e valores reaccionários ultrapassados pela historia. Valores esses que nos ensinam hoje, que dentre tantos acontecimentos trágicos que pontuaram a nossa história, ela nunca deve ser entendida a luz de suposições, superstições e de tentativas de adivinhar o futuro a luz dos acontecimentos passados; pois são essas tentativas que muitas vezes provocam a mitificação errada do passado, e levam o imaginário colectivo a criar certezas (e mitos) sobre acontecimentos que não aconteceram).

Num ponto, de um dos capítulos, que se chama simbolicamente “PRETO-NOCK CONTRA BURMEDJU-WAK”, Álvaro Nóbrega tenta explicar a verdadeira importância desta questão no seio do PAIGC. E sua descomprometida análise, demonstrava que nesse Partido, ainda hoje (leia-se 2003), pode-se votar em alguém esmagadoramente, não por méritos ou deméritos da sua plataforma política, ou pelas suas capacidades humanas, mas simplesmente atendendo a “cor da sua pele”.

Mais a frente, tentarei sucintamente, explicar o surgimento e desenvolvimento deste fenómeno, essa questão de “burmedjo” e “preto” (que já foi tão nefasto para este país na nossa sociedade) e a sua posterior radicalização dentro das estruturas do PAIGC; e a sua expansão exponencial em forma de ódio racial; e como a partir deste movimento se potenciaram os ódios, os mitos e a sua transposição para o imaginário colectivo da nação, com todas as suas negativas consequências. E isso acontecia já nessa altura da morte de Cabral, dentro de um movimento que liderava - graças ao seu chefe agora assassinado - uma das mais gloriosas Lutas de libertação no Planeta. Um movimento que era olhado como exemplo a seguir em todas as partes do mundo; seja entre negros, amarelos, vermelhos ou brancos de cor da pele.

Este “problema” da cor da pele – “inventado” por oportunistas - foi mais um problema do PAIGC (de oportunistas dentro desse partido, para ser justo), do que do nossa povo, que na sua esmagadora maioria, sempre “passou olimpicamente” ao lado desse complexo de inferioridade de algumas mentes fracas. As outras tribos Guineenses, “este problema” não dizia respeito directamente, pois mesmo que instintivamente, sabiam que acontecesse o que acontecesse, eles não voltariam a viver pior do que antes. E apercebiam disso também dia a dia, mesmo que por portas travessas, como na política de “Guiné Melhor” que os colonialistas estavam a realizar, graças a luta de Cabral. Viram que por causa deste os tugas pela primeira vez estavam a tratar os africanos gentios com algum respeito; construindo aldeias inteiras, casas, estradas, poços, postos sanitários, no fundo melhorando a vida de seus parentes que não tinham ido a Luta. Por isso não tinham nada a perder com a Luta, apenas ganhar.

Pelo livro acima citado, percebemos que uma certa arcaica e reaccionária mentalidade - contrária aos próprios interesses e fundamentos doutrinários da Luta -, para a qual a cor de uma pessoa era mais importante que a sua capacidade ou conhecimentos que podia aportar a Luta, existia na cabeça de muita gente dentro do Partido de Cabral. Dentro de um Partido onde “oficialmente” homem valia pelos seus actos, pela sua rectidão, pelo amor ao povo e a sua entrega a causa, e não pela cor da pele. Isto era a doutrina de Cabral e do Partido. Mas sempre que alguém percebia que podia ganhar algo com a cor da sua pele, usava-a. O que não tem nada a ver com os actos de Amílcar Cabral em vida, nem com a sua herança, depois de morto. Pois a história ensina-nos que o ódio racial na Luta de Libertação foi levantada sempre por aqueles elementos que usavam isso para seu benefício pessoal e não para ajudar o movimento ou o povo a resolver os problemas e ganhar a guerra. Esses oportunistas, nunca sonharam com nada. Ou se sonharam, os seus sonhos foram contrários a tudo que é bom e justo na terra, transformaram em ódio visceral algo.

Esta questão de cor da pele é antiga; existe e existiu sempre na nossa sociedade, de uma forma ou de outra: e como existe, sobre ela devemos falar, e não apenas porque tiveram o seu papel e importância no assassinato de Amílcar Cabral, mas porque por sua vez, esse acontecimento - ainda não totalmente analisado e estudado - de suma importância vai levar a uma posterior radicalização e desenvolvimento de ódios, complexos de superioridade e de inferioridade (ou apenas de parvoíce), desejos de vingança, assassinatos de inocentes e por fim erros crassos na condução do estado futuro, que por sua vez vai gerar um ódio incompreensível entre elementos de um mesmo povo. Tudo isto também contribuirá enormemente para o descalabro e a destruição do País anos mais tarde.

Mas também falo de tudo isto, como um simples cidadão que viu, entendeu e acompanhou esta deriva, apenas para desmistificar certas noções erradas que nos foram sendo inculcados desde a nossa infância sobre a questão da cor da pele e a sua verdadeira importância (que como já disse é nula). E assim, nestes instantes, falo, ainda que sucintamente, de certas coisas que sempre foram e serão delicadas para nós guineenses. Uma das quais a questão do racismo e do tribalismo - que sempre é negada com veemência, por todos os nossos políticos e simples cidadãos, de serem seus apologistas - mas que sabemos que existiu, existe e prospera no nosso seio numa certa mentalidade que nunca desapareceu desde a Luta de Libertação Nacional.

Mas felizmente na nossa sociedade, os Guineenses no geral, sempre tiveram orgulho em ser negros, em ser Africanos e acima de tudo é ser Guineenses. E sem nenhum complexo de inferioridade dado pela cor da pele. as famílias guineenses habitualmente são constituídas por gente com diferentes tonalidades ou pigmentação de pele. E é essa “protecção” de sabermos desde a mais terna infância, que ninguém é melhor que nós por ser mais claro ou branco) que nos ajudou a suportar a discriminação e viver orgulhosamente com a nossa cor quando fomos estudar em países (como a Rússia, Bulgária, etc., em que o povo na sua maioria, por factores históricos e sociais que aqui não cabem, era racista).

Lembro-me em particular de um Guineense do bairro de Chão de Papel, de ascendência italiana (chamavam-lhe cabo-verdiano, é claro) que foi estudar para a antiga União Soviética, como nós; ele era tão branco (de olhos claros ainda por cima) como os russos; e como estava sempre com o pessoal da Guine que maioritariamente eram negros, os russos não entendiam isso, pois pensavam que era um deles. Um belo dia uma senhora (racista por sinal) lhe perguntou se não tinha vergonha de andar com pretos, ao que ele respondeu que “como poderia ter vergonha se ele era também preto?” a mulher não entendeu, e de resto nunca poderia entender, a sua mente era atrasada e complexada (como a mente de muitos dos nossos). De facto conheci este rapaz desde os tempos da escola primária e nunca nenhum de nós foi “mais preto” do que ele, no seu coração, na sua cultura e na sua amizade.                            

II

 

Este “nosso problema” nacional, da cor da pele que existia desde os inícios do século XIX, nos pequenos centros urbanos da colónia portuguesa dos “Rios da Guiné”, foi provocado pela competição miserável, para os poucos lugares de guarda-livros, ajudantes de escriturário, condutores, cipaios, serventes e outros um pouco melhores ou piores que os Portugueses deixavam para os “não brancos”. E nessa luta vergonhosa pelas migalhas da mesa dos brancos e pela sopa dos pobres, surge a questão da cor da pele como elemento importante para identificação sócio cultural e sua posterior utilização na vertente económica (se analisarmos as contendas judiciais desse tempo que chegaram até nós, percebemos que havia muitos problemas de índole económico). E essa luta pelas migalhas era ainda mais exacerbada, pela não menos importante, questão de “casta” (chamemos-lhe assim.), introduzida pelos colonialistas.

Na sopa dos pobres, o civilizado tinha primazia em relação ao gentio. O assimilado “mandava” no indígena. E assim, estava tudo bem, na cabecinha triste desses “tristes civilizados. Mas o que acontece quando a sopa começa a escassear? Quando os empregos começam a rarear? Pois nos últimos anos do século XIX, a Guiné esta votada completo abandono por Portugal que tem mais que fazer com os seus próprios problemas internos. Os gentios, bem entendido, não são um problema, pois ninguém quer saber se vivem bem ou mal, se são vendidos como escravos, se são explorados ou não nos trabalhos forçados - a primeira pessoa, “civilizada”, a preocupar com eles de verdade, com a sua sorte, com a sua dignidade de homens, em 300 anos foi Amílcar Cabral (pois mesmo os primeiros movimentos protonacionalistas como a Liga Guineense, lutavam para uma igualdade e melhoria da sua vida dentro de um império português - consideravam-se portugueses e tinham orgulho nisso - e não contestavam nem as suas leis e nem a condição do indígena. há um trecho longo de Cabral que fiz questão de por aqui,  pois hoje, depois de o ler, percebi que dava certos esclarecimentos a quase tudo o que este texto trata:

Volto a minha pergunta anterior: o que acontece quando os poucos privilégios estão em perigo? Cada dia que passa, há mais civilizados e assimilados na ilha de Bissau, em Geba, Bolama, Cacheu, Farim e cada vez mais chegam emigrantes da outra parte da colónia ali perto (era uma única colónia, com uma parte no atlântico e outra no continente); então como resolver a questão da concorrência?

Pois, porque, o bolo tinha agora que ser repartido por muito mais gente (até gente que chegava da colónia de São Tomé, indianos, libaneses, senegaleses, serra leoneses, etc.,; e como com a crise económica portuguesa, já quase não havia bolo, mas apenas migalhas, a luta recresceu, entre os mais escuros e o mais claros. assim uma questão de foro económica, motivada pela pobreza endémica e irresponsabilidade dos colonialistas, veio anos depois a tornar-se uma grave questão sociológica e racial; de ódio racial infelizmente.

Os civilizados do continente, pela inclemência do clima são mais escuros, quase “preto nocks” todos, com algumas nuances; os outros mais claros. A cor é um identificador seguro. Portanto há que usar a cor da pele para uns lutarem contra outros; mas a cor, como o sangue (de resto como a mentira) nunca é uma coisa segura. Havia cabo-verdianos da ilha de Santiago mais escuros que alguns guineenses de Bolama ou Geba (se bem que esses eram também guineenses que nasceram lá de pais que foram levados daqui como escravos, trabalhadores ou concubinas; por isso a sua cor da pele era também “preto nock”) esses tinham alguma primazia nessa guerra de sopas, pois quando queriam, passavam por guineenses “puros” e quando precisavam por “cabo-verdianos ratchados”.

É daqui a origem da animosidade entre cabo-verdianos e guineenses (que de resto só existe no nosso território nacional; pois em Portugal são muitos amigos, como em França, em Cabo verde, Senegal, Angola, Rússia, Estados Unidos, etc.,. inclusive conheço cidadãos guineenses de etnia fula, mandinga e outros, que só sabem falar crioulo cabo-verdiano, pois de tanto lidar, trabalhar e viver lado a lado com estes acabam falando a língua destes em detrimento do nosso crioulo guineense. E queremos ou não acabam assimilando, infelizmente para nós, a sua cultura também.

Mas independentemente da cor da pele o povo também estava dividido por uma segunda e terceira animosidade: entre cristons (aqui já todos eles, os que se consideravam-se civilizados) e os elementos de outras tribos como papeis, mancanhes (e depois os islamizados como os fulas no Leste), que também começaram a se interessar por lugares na administração pública. Esta animosidade sempre foi explorada pelos colonialistas na sua politica de dividir para reinar. E neste particular temos que admitir que foram bem sucedidos. Pois a terceira animosidade era entre “preto nockscristons e “preto nocksmuçulmanos. Aqui como exemplo vou usar um acontecimento verídico, que uma amiga minha de Bissau, que há já longos anos vive fora da Pátria, me contou. Resume-se ao seguinte: nos inícios dos anos setenta a filha de um “assimilado criston(“preto nock” ou “puro guineense”) cruzou-se em Portugal com aquele que viria a ser seu futuro marido e pai dos seus filhos e resolveram casar. Este era muçulmano e consequentemente o seu nome e apelido tinha essa conotação.

Aqui tenho que explicar um pormenor, não para os guineenses, mas para os estrangeiros que me lêem: entre nós quem tem apelidos como Baldé, Embaló, Banjai, etc. São considerados muçulmanos, mesmo não o sendo, pois parte-se do princípio, que pertencem as duas etnias islamizadas, a saber, Fulas e Mandingas. Os cristonspreto nocks” (aqui não interessa também se a pessoa pertence de facto a religião cristã ou não) achavam nesse tempo que essas pessoas eram “não assimilados” ou para ser mais claro “não civilizados” (embora houvesse muitos “assimilados muçulmanos”) no geral não queriam misturar-se com eles, seja pelo casamento ou por qualquer outra ligação sanguínea. E quando viam uma mulher “burmedjo” ainda por cima, casada com um fula ou mandinga chateavam-se ainda mais. Quando era menino, ouvia na minha casa e na casa de meus familiares, histórias de que todos riamos a bom ruir, de senhoras “preto nocks” que não tendo nenhum orgulho na sua cor (patetas) diziam as filhas, “burmedjos waks”, para não casarem com “preto nocks” porque, basicamente, estes não “as mereciam”. Noutro diapasão, não sei se pior ou não, mas facto é que havia as senhoras “preto nocks” que diziam as filhas, também “preto nocks”, para não casarem com “preto nocks” pois deviam “limpsa raça” (embranquecer a raça ou “melhorar a raça”).

Mas voltando a nossa estória inicial, ao jovem par de namorados: a minha amiga contou-me, portanto, que quando a boa nova foi anunciada em Bissau, uma “mindjer garandi”, mas  “assimilada/civilizada” teria dito: “ Eh! No na kaba na nada. Cal dia que fidjo de um ....(nome do pai da menina ) ta casa cum Balde, Camara, Embalo .....

Estas são exactamente as palavras da minha amiga, que como pessoa culta, condena tais atitudes racistas e inomináveis - que fizeram parte de uma certa elite nossa, ultrapassada pela história, que depois apareceria como os tais defensores de “preto nocks” no contexto da Luta de Libertação e depois da independência, na procura de um lugar ao sol no aparelho do Estado - embora ela seja “burmedjo wak” e de família “burmedjo wak”.

 

III

 

Mas o que importa aqui dizer é que esta mentalidade de escravo, esta semente do diabo, foi plantada, pelos colonialistas, nas desprotegidas mentes dos nossos bisavôs, avós e pais, cresceu forte e vigoroso na nossa terra. Tudo baseado numa concepção do mundo errada que Cabral combateu encarniçadamente.

No século XX esta mentalidade foi incentivada e promovida pelo Governador Spínola até a exaustão. Na rádio, nos discursos oficiais, nas promoções, no recrutamento dos comandos, dos cipaios, nas nomeações, nas viagens a Meca, nas ferias a Portugal de funcionários, na criação de uma Assembleia Provincial representativa de etnias de modo separado, nas comemorações de Portugal, etc.. A política de “Uma Guiné Melhor” tinha duas vertentes, a social e a ideológica: a social em construir aldeamentos, alguns postos sanitários, escolas, fontenários etc., A ideológica baseada no mais extremo racismo encapotado, na divisão étnica e promoção do ódio entre os guineenses no geral, e entre estes e os cabo-verdianos (por causa da Luta de Libertação onde eles vislumbravam um perigoso precedente de unidade) promovido com ódios entre as tribos; mentindo e enganando uns e outros. Na divisão entre os cristão e muçulmanos, entre os civilizados e gentios, entre os mais claros e mais escuros, entre os nascidos na Guiné e outros nascidos onde quer que seja, entre os pobres e ricos, entre os camponeses e citadinos, entre animistas e cristãos, etc. etc., até ao infinito. Há um texto de Cabral sumamente interessante sobre isto que embora seja longo, devo expor partes aqui:

“(…) O tuga sabia isso muito bem. Carreira, com todos os seus abusos na Guiné, sabia - o bem. Mas eles fingem não saber para nos dividirem. A sua esperança era—se Cabo Verde pega na luta, mobilizar os guineenses para combater os cabo- verdianos que não prestam e que estavam na Guiné como chefes de posto. Se os filhos da Guiné pegarem na luta, mobilizar os cabo- verdianos, tanto na Guiné como em Cabo Verde para combater duro contra os filhos da Guiné, para não deixarem levantar, para não deixarem ser livres. Ora o nosso Partido, passou - lhe aquela grande rasteira (boló). A maior rasteira da vida dos tugas é essa: na primeira fornada de gente que foi para a cadeia, havia guineenses e cabo- verdianos juntos. O tuga espantou - se (mâria). E se repararem bem, vejam: há muita gente em Bissau que podia falar na Rádio, não nos parece estranho ? Podiam falar na Rádio descompor - nos, etc., podiam fazer bons artigos na Rádio dos tugas, mas nenhum faz isso. A Rádio é só Alfa Umarú, Malan Ndjai e não sei quem mais, ou então algum bandido que fugiu, da República da Guiné ou do Senegal, e foi falar em Francês em Bissau. Vocês já viram isso bem? Como é que não há nenhum patrício nosso, seja da Guiné ou de Cabo Verde, que foi à escola, que sabe bastante para falar na Rádio e que o faça na nossa Guiné? Não há, porque há muito tempo que o Partido passou a rasteira. O tuga perdeu a confiança nessa gente, duma vez, e essa gente também perdeu a confiança e não se mete nisso, porque não sabe, não sabe o que pode acontecer. Mas os tugas, não há muito tempo, em português, depois de algum tempo, de começar a luta armada, em português e mesmo em crioulo, já afirmavam: «Filhos da Guiné e Cabo Verde vocês são um só, debaixo da bandeira de Portugal». Vocês nunca ouviram? Mas, enquanto isso, em mandinga, dizem que os cabo- verdianos não prestam. Para verem se conseguem manter ainda uma certa divisão. Hoje estão já a acabar com isso, aos poucos. De vez em quando põem um a dizer: «eu sou filho da Guiné, completo, não sou filho de estrangeiro como alguns que nasceram aqui». Para verem se mantêm uma certa idéia de divisão.(…)”

Os portugueses usavam estas guerrinhas e animosidades para atiçar ódios (se bem que eu falo de “Sopas de Pobres” no sentido figurado, elas existiram na realidade, literalmente); e duzentos anos depois, os portugueses faziam isso, quando os meninos da minha geração e mais velhos, iam pedir sopa no quartel de Amura ou no Q.G, em Santa Luzia e também na Manutenção militar. E assim vim a assistir no meu tempo, brigas entre esses pobres jovens, por causa de latas de sopa. Para não desperdiçarem pratos ou marmitas, os soldados punham as sopas em latas de cinco litros e davam cada lata para repartir por cinco ou mais pessoas (como resultado sempre havia porrada e dentes partidos). Mas isso acontecia também em Mansoa, Tite, Farim, Olossato, Bafata etc., onde havia tropas e essa mentalidade. Era uma “caridade” estúpida e vergonhosa, tanto para quem recebia, como para quem ofertava (havia mesmo uma canção na Guine que dizia “ nosso cabo patim sopa…). Mas isso não é importante para este contexto, é apenas um testemunho, que vi com estes olhos que a terra há de comer.

 É necessário dizer que se há combate que Cabral ganhou, foi este, pois depois dele, não passa na cabeça de ninguém dizer ou praticar tamanhos disparates (não digo que um pateta qualquer não o possa dizer, mas eu aqui trato do povo em geral e não de patetas particular). Depois dele, pelo menos na Guiné, ficou provado que os homens valem por seus actos, convicções, valentia, cobardia, inteligência ou burrice, mas nunca pela cor da pele. Há um ditado português que diz que “os homens não se medem aos palmos” pois bem, Cabral provou a esses portugueses que os homens não se respeitam pela cor da pele, mas pela integridade, bravura, inteligência e altruísmo.

Bem, tenho que dizer que foi assim que tudo começou, por mais que tentemos dar a volta ao assunto e apresentar-lhe com outras vestes mais dignas. Mas este estado de coisas durou séculos, eternizando no tempo: com a independência do Brasil, a queda da monarquia, a implantação da República em Portugal, com todas as convulsões políticas e económicas, com a crise geral, nas colónias e particularmente na Guiné, a questão da “Sopa dos Pobres” descambou, para se tornar numa questão de “Canja de Cacre dos Pobres” se é que posso assim exprimir no meu querido crioulo.

IV

 

É necessário afirmar que aqui não ouve plantações de escravos para tomarem nome dos seus senhores como na América do Norte. Os seus nomes vieram dos seus tetravós e bisavôs. Para dar apenas um exemplo: Na nossa centenária história existiu um tal tenente-coronel Nozolini que serviu no exército português. Esse ficou na história, porque em 1846 resolveu construir à sua custa, um forte no sítio que hoje chamamos Pindjiguiti ou «Pigiguiti». E sobre essa obra anterior a fortaleza de Amura actual, reza a história que ”edificou-o em pedra e cal, com acomodações precisas para a guarda e arrecadação das munições. A obra terminou em Março de 1846 e a mesma foi denominada Forte Nosolini.”. Os actuais Nozolinis (ou Nosolinis) “preto nocks” eram bisnetos de escravos desse tenente-coronel ou seus descendentes directos?

Entendo que são seus descendentes, pois negro descender de branco e branco descender de negro foi coisa que sempre vimos neste nosso globalizado mundo; mas esse Nozolini, que embora português, deve ter sido por sua vez descendente de italianos, não era cabo-verdiano é claro (quer dizer, não sei se nasceu em Cabo-verde, embora naquela altura não havia Cabo-verde e Guiné, apenas uma colónia única que depois veio a dividir-se em Guiné e Cabo-verde): mas o que quero com isto dizer é que os guineenses dessa altura eram cabo-verdianos. Ou para ser exacto, eram descendentes de guineenses que primeiro foram levados como escravos para Cabo-verde e de onde voltaram como Cabo-verdianos por fora, com sangue guineenses por dentro. Como não havia população nessas ilhas e eram parte de uma mesma colónia, as pessoas que daqui eram levados sofreram uma miscigenação secular que primeiro acabou com as suas tribos de origem, depois com os seus hábitos seculares, fundindo, amalgamando e criando um outro povo, novo, pois nunca antes existiu, com uma mesma língua crioula. E séculos depois, esses seus descendentes sentiam-se inimigos dos outros guineenses que “lá ficaram” e não voltaram para aqui procriar.

Centenas de apelidos guineenses como Almada, Aires, Aquino, Almeida, Abreu, Alves, Araújo, Alvarenga, Amado, Brito, Barros, Barbosa, Barreto, Belo, Borges, Bento, Bastos, Brandão, , Carvalho, Cardoso, Cordeiro, Cruz, Capistrano, Cabral, Costa, Camacho, Chantre,  etc., só para citar alguns até a letra C pois senão todo este trabalho seria de apelidos; mas contei centenas de apelidos até ao Vaz do meu avô materno, passando por Vieiras, Delgados, Dias, Esteves, Gamas, Godinhos, Gomes, Gonçalves, Guedes, Lacerdas, Leites, Lobos, Lopes, Matos, Soares, Meneses, que na verdade vieram das ilhas de Cabo-verde. E os guineenses não os têm por acaso, ou por terem sido escravos desses detentores do nome.

Mas é ainda necessário dizer que na Guiné todos os que têm apelido cristão são descendentes de “cabo-verdianos”? De Guineenses que foram levados para Cabo verde e voltaram como cabo-verdianos? Ou de Português com Guineense, que nunca foram muitos. A Guiné nunca foi uma colónia de povoamento como Angola. Desde os primórdios dos “descobrimentos” até aos finais do século XIX eram muito poucos os portugueses nas nossas terras. Mesmo em pleno século XX, já depois das “guerras de pacificação”, os portugueses eram pouquíssimos e por isso nunca chegaram a constituir um factor de mudança demográfica como em Angola e porventura Moçambique. Mesmo no auge da Guerra, os cerca de 35.000 soldados portugueses destacados para o nosso teatro de operações, nunca puderam constituir um factor de mudança demográfica.

 

O POVO GUINEENSE ANTES E DEPOIS DA GESTA DE AMÍLCAR CABRAL

                                                                      

                                                           "Não tenham dúvida, a hora chega quando                                                                                           Deus quer. Ajam, que Deus agirá!"

                                                                                                          Joana D`Arc

 

 

Cada povo do mundo tornou-se no que é, através e por força de “Instantes” Mágicos” na sua história que os transformaram naquilo que vieram a ser. Geralmente estes instantes são feitos de heroísmo, sacrifício e muitas vezes da aniquilação de parte desse povo. Mas por alguma razão transcendente, só valem, permanecem, e tornam-se divinos, se forem feitos para o bem do povo, em seu nome e em sua protecção. E embora esta dimensão filosófica não seja perceptível no momento da realização, são eles que futuramente “criam” a Nação e cimentam o entendimento popular na aquiescência de um destino comum que é vulgarmente chamado de “Pátria”.

E mesmo que durante centenas de anos (a sua lembrança) não servir, objectivamente, para a resolução dos problemas do presente, são marcos perenes, que permanecem no imaginário colectivo dos povos, que um dia imergem, das profundezas das suas almas, para darem um sentido ao presente, por mais horrendo que ele seja. São esses momentos que dão a coragem e animo ao povo no momento mais desesperante da sua existência, dando um objectivo, apontando um caminho e definindo um destino.

A gesta da Joana D`Arc (de quem Winston Churchill disse que “foi uma pessoa tão acima da maioria dos homens, que em mil anos não se encontra outra igual") na guerra dos Cem Anos, determinou o porvir da França, mas acima de tudo, o do povo Francês. Pois mesmo nos nossos tempos, séculos depois da façanha dela, nas suas duas grandes guerras, a França inspirava-se e revia-se no exemplo da Donzela de Orléans. Joana d`Arc, foi queimada viva aos 19 anos, defendendo a sua França natal, e só quinhentos anos depois foi reabilitada e tornada heroína nacional dela; mas isso só veio a acontecer porque, passe o tempo que passar, o que é feito em nome do povo e em nome pátria, geralmente, nunca é esquecido.

A gesta de Viriato, defendendo o chão lusitano, derrotando sucessivos exércitos romanos - até ser assassinado pelos próprios companheiros (como Cabral), subornados pelo general romano S, Cipião, - veio ser determinante para a futura fundação de um país chamado Portugal. e durante séculos essa lembrança ajudou os lusitanos a resistirem durante centenas de anos aos castelhanos e assim preservar a sua independência. E esse heroísmo, faz com que por sua vez, que esse povo acreditasse em si, com uma autoconfiança tal, atendendo o seu tamanho e meios materiais, ao ponto de aventurar-se “por mares nunca antes navegados”, dando inicio a “epopeia dos descobrimentos”.

Esta epopeia que terá o seu ponto mais elevado no “instante” de Vasco da Gama, que ao descobrir o caminho marítimo para índia, fez com que o povo português fosse este que é hoje, e não outro (para o bem e para o mal). Para a nós actual esta “epopeia dos descobrimentos” viria a ter o seu epílogo na chegada de Nuno Tristão (e seus 24 companheiros) a nossa costa, no mês de Junho de 1446 - onde logo morreu, com mais vinte companheiros, em luta com os naturais -, marcou o início do nascimento de uma entidade que hoje conhecemos como Guiné. O resto é História… mas que começou nesses dias, com as mortes desses vinte europeus e não sei quantos nacionais, que a Historia deles não registou… Ou como nos conta Fernando Rogado Quintino, “… assim, com o sangue de vinte lusitanos, se escreveu uma nova página na História dos Descobrimentos.Pois os quatro marinheiros que sobreviveram, conseguiram chegar ao continente Europeu, para contar sobre nós, sobre as nossas terras, as nossas ilhas e os nossos rios. O que contaram originou o colonialismo lusitano nas nossas terras.

Estes dois exemplos, sobre os dois povos europeus, - que foram os que vieram a ocupar o nosso território e determinar o nosso porvir - serve apenas para demonstrar o que foi dito acima. Porque independentemente do que antropologia cultural e biológica nos possa ensinar, os “instantes históricos mágicos” - embora com o passar do tempo só vivam no imaginário dos povos -, têm mais valor do que Doutrinas politicas, Regimes, Governo ou quaisquer políticas económicas ou sociais, para alicerçar a nação.

II

 

Estes “instantes históricos”, como a “gesta de Cabral”, que pela sua temeridade e heroicidade - e a capacidade de elevar e levar o povo a um limite extremo de entrega e desprendimento -, acontecem na vida dos povos, uma vez em centenas de anos, e por isso são “imperdíveis”. Além de que, estes “instantes” pelo heroísmo e o extraordinário dos actos particulares dos elementos individuais do povo perante a adversidade, têm também a utilidade moral de fazer com que o povo no seu conjunto, em momentos difíceis, não perca a confiança em si mesmo e acredite que é mais do que aparenta. E isto é tanto mais importante, quanto a História prova-o à exaustão. Em boa verdade ouso dizer que nenhum povo é realmente capaz, daquilo que fez.

Objectivamente, pensadamente, nem o povo romano podia edificar o maior império que o mundo conheceu, nem o macedónio podia conquistar o império de Alexandre, ou o francês, com Napoleão a frente, quase toda a Europa, Egipto e partes da África árabe. Nada preparara ou talhara especialmente estes povos para semelhante heroísmo e titânica realização.

Ao ter que defender a sua cidade-estado, o povo romano percebeu (no fragor dos combates, no perigo de perecer ou ser escravo) que era capaz de muito mais, do que apenas ser uma pequena aldeia de pescadores às margens do Rio Tibre; e percebeu isso de forma tão clara que com o tempo tornou-se o povo mais poderoso do mundo. Por isso, hoje é comum dizer que sem as Guerras Púnicas, sem esses adversários que foram Amílcar e Aníbal Barca, Roma nunca teria sido o maior império que o mundo conheceu.

III

 

É assim que opera a Providência no sentido histórico: os líderes desse povo, por amor ao seu povo, na luta pela sua defesa, alem de ganharem a guerra, incutiram - com essa vitória - no povo a certeza de que era poderoso bastante e capaz de fazer mais do que jamais tinha feito. E isso levou por sua vez a um orgulho nacional que potenciou a elevação desse povo, acima de todos os outros que o rodeavam, e a transformar-se naquilo que não podia ser objectivamente. Todos os actos heróicos de um povo só foram realizados quando este acreditou no impossível e não no possível, não na objectividade. Quando acreditou que era mais do que era; maior do que era, realmente. Especialmente quando teve um líder capaz e carismático bastante para o fazer acreditar nessa possível impossibilidade. Quando acreditou que “impossible is nothing”.

Durante a gesta de Cabral, o nosso povo acreditou que era mais do que era, pois doutra forma não se sublimaria, esquecendo todas as suas diferenças existenciais seculares, para sob o comando desse homem, alcançar a excelência e realizar o irrealizável. Acreditou no “impossible is nothing”.

Por isso falando da dimensão particular e existencial de Cabral, como um facto aglutinador do passado e futuro da nossa nação, devo dizer que a sua morte foi o separador do tempo, do nosso tempo nacional. O “antes” de Cabral e “depois” de Cabral, é o traço definidor da nossa nação actual; esta nação, como ela se apresenta aos nossos olhos, exangue de homens e mulheres de valor, de sonhos e de realizações, todos os dias das nossas pobres e desafortunadas vidas.

Com ele inaugurou-se uma nova época; época de heroísmo, de sonhar, de acreditar e de viver as nossas próprias vidas para um dia construir o próprio futuro, e nesse caminho, escrever a própria historia. Cabral inaugurou uma nova época, a nossa época, época dos modernos heróis Guineenses; a época de Domingos Ramos, de Vitorino, de Pansau, Titina e tantos outros iguais… O “antes” de Cabral, era o colonialismo, o medo, a ignorância, o tribalismo, a desunião e nenhum porvir. O “existir por existir” na noite dos tempos, vivendo a historia dos outros, vivendo a vida dos outros, e trabalhando para a gloria de outra nação.

 

CABRAL E OS “CIVILIZADOS” VERSUS CABRAL E OS “INDÍGENAS”

 

 

                                                                                   “N`odja mon di pecadur riba di bu                                                                                                                  carna bu djubim,

                                                                                    N`falou na nha sintido sufri, sufri,                                                                                            djitu ka tem és ki luta di no terra”

 

                                                                                                                      J. C. Schwarz 

 

Disse atrás que em 300 anos foi Amílcar Cabral o primeiro que pós em causa a questão indígena denunciando a lei do indigenato ou o estatuto do indigenato como um atentado a dignidade humana e ao ser humano guineense; e demonstrava amiúde que a sua Luta tinha como leitmotiv esse tipo de discriminação. Anos depois ele diria que questões como essas que motivaram a sua revolta (e não o bem estar ou não de assimilados dos centros urbanos). Para uma pessoa de vistas largas, leituras abalizadas, sólida formação intelectual, conhecedor de todo um mundo fora da pequena colónia da Guiné e para além do império português, uma luta só teria sentido se destruísse todo a arcaica concepção do mundo que vigorava no império português.

Isto não é um estudo sociológico ou antropológico, nem um ensaio no campo social ou qualquer outro, é apenas análise política, com todos os inconvenientes que acarreta este tipo de exercício; por isso tenho que cingir-me bastante no uso de termos; mas é a “questão civilizacional” que provoca a primeira divisão do povo. Aquilo que era de ordem natural das coisas passa a ser lei, com todas os inconvenientes e problemas que isso acarreta. O povo começa a ser dividido em gentios e civilizados; Assimilados e selvagens. E isso provocou outras subdivisões que escapava ao escopo da Lei: “Na cor somos todos iguais, mas não confundas, eu sou civilizado e tu és selvagem (gintiu)” ”.

Cabral, diferente deles, contestava (sacrilégio dos sacrilégios), o próprio estado português e o colonialismo; e não se revia no limitado conceito de “melhoria de vida” com igualdade racial e económica de três mil assimilados (civilizados, portugueses do ultramar ou lá o que eram, segundo a lei portuguesa) e seus dependentes directos e indirectos, que “não queriam saber”, para nada, da exploração que estava submetida o nosso povo em geral.

Aqui não havia povo para ninguém. Era “que se lixe o povo” ; aqui “cada um deve conhecer o seu lugar”; aqui todos os civilizados “são irmãos” na repressão do gentio. E a cor da pele pouco importa. Com esta ideologia como base, assiste-se a formação e consolidação de Gãs, que desempenham um papel concreto e revolucionário no surgimento da ideia de Guinendade (mas reaccionário na opressão e escravização do povo) e também como protecção contra a sociedade indígena (coisa que de resto o extremamente racista Estatuto do Indigenato já garantia por lei).

Mas se no meio de toda esta confusão de cores, credos, e ideologias surge um civilizado, que diferente dos outros (que embora lutem entre si, estão firmemente unidos contra os gentios), “impensadamente” acha “todos somos iguais? e ainda por cima que devemos nos “juntar” como irmãos e lutar contra os colonialistas?” diz, entre outras coisas, que essa treta de civilizados e gentios é tudo uma balela, uma aldrabice em suma. Um disparate que deve acabar, dando instrução e escola a toda a gente, sem fazer distinção entre filhos de civilizados ou de gentios

Acham que os “civilizados” bateram as palmas de contentamento? Claro que não, - “só isto é que nos faltava.” Daqui há algum tempo “minha filha vai casar com gentio?”. Pois bem, esse “civilizado”, que se chamava Amílcar Cabral (“que até era um engenheiro formado pelos tugas, que portanto devia ser um defensor acérrimo de Portugal e dessa politica civilizacional levada a cabo em África”) era um tipo perigoso para toda a gente. Tanto para os “com cor” como os “sem cor”. Pois ele com as suas ideias avançadas, com a sua modernidade, não lutava só contra os tugas; lutava também, de certa forma, contra os Guineenses civilizados, os assimilados, os cipaios fulas, os cabo-verdianos da Guiné, os funcionários públicos, os chefes tribais com práticas mesquinhas e exploradores do povo, etc.,“afinal, estava de lado de quem? dos gentios? só pode ser maluco.

Amílcar compreendia isto bem de mais, como fez questão de mais tarde dizer: “(…) Daquelas pessoas que foram a minha casa em Pessubé, como gente grande, bem empregada, comendo bem, bebendo bem, que vai a férias, etc., sentaram- se e disseram: «Bom, queremos conversar contigo. Tu, filho do fulano de tal, nós conhecemos - te bem, estás - te a meter em problemas, estás a estragar a tua carreira de engenheiro, nós queremos aconselhar - te, porque nós não temos nada que fazer contra os tugas, nós todos somos portugueses». Para esses não há remédio.”

Portanto, se Cabral ganhasse a guerra ou não, a população da Guiné no seu grosso (para não dizer na sua totalidade) passaria sempre a viver melhor do que antes de o deflagrar das hostilidades; isso era um dado adquirido pela população indígena, que sabia que se Cabral não tivesse iniciado a guerra, nunca teriam nada da parte dos colonialistas. Uma das provas disto é que e sob esta pressão o Adriano Moreira, o Ministro do Ultimar de Salazar trata de revogar a lei do indigenato (a vergonhosa lei do apartheid português).

Pois bem, a maior parte de pessoas dessa época, infelizmente não tinham capacidade intelectual, formação académica e política suficientes para entender que os tempos eram outros, que era possível sacudir o jugo colonial e libertar o povo; havia o medo crescente de associar o seu futuro ao de Cabral sem saber se ele teria sucesso.

 E todos, claro, sentiram medo desse homem, desse “terrorista dos infernos” que queria destruir os sagrados fundamentos da sociedade; pois embora os “civilizados eram de certa maneira protegidos dos indígenas pela lei (que como Cabral demonstrou que para ser assimilado era preciso saber ler e ser filho de assimilado, ter bilhete de identidade e bens, coisa que um indígena não podia ser ou ter; para ir a escola era preciso bilhete de identidade e para ter bilhete era preciso ir a escola. sair deste circulo vicioso era difícil. Os portugueses continuaram a usar este espírito ainda com os emigrantes em Portugal depois de 1974, onde para ter documento tem que ter trabalho, mas para ter trabalho precisa ter documento legal.) havia o medo real de que sem a tropa colonial e os polícias para os proteger, os gentios tomariam conta das suas casas e bens num ápice. Portanto, nas suas cabeças, se Amílcar Cabral queria a emancipação dos “gentios” então não estava de boa fé.

Havia portanto que e combate-lo, denegri-lo o máximo possível e desacreditar a sua empresa. E nisso uniram-se tanto os tugas, como os guineenses e cabo-verdianos, esquecendo as diferenças pigmentais e as tonalidades de pele; e com essa união conseguiram realizar alguma coisa nesse sentido, pois coisas que ainda se ouvem e se escrevem aqui e acolá pejorativamente sobre Cabral, são ainda resquícios dessa decisão. Entre eles podiam ter os seus problemas, mas para combater Cabral, o inimigo comum, que queria trazer a perigosa ideia comunista de igualdade entre os homens, na “graciosa e mui leal colónia da Guiné” estariam sempre unidos, e assim foi. Aqui os cabo-verdianos (de verdade) combateram Cabral da mesma maneira que os guineenses e os portugueses.

Um texto de Cabral ajuda-me a elucidar este ponto: “ (…) E nós, africanos? Entre os grupos a que podemos chamar pequeno - burgueses, gente com uma vida certa, seja descendentes de guineenses ou de cabo-verdianos, aparecem sempre três grupos de pessoas. Um grupo pequenino, mas forte, que é a favor dos colonialistas, que nem mesmo querem ouvir falar disso, da luta contra os tugas. (…) Continuando, esse é um grupo de gente, grande grupo de pequeno - burgueses que têm o seu vencimento no fim do mês, e que o seu desejo de fato é que os tugas se vão embora, mas têm medo, porque não sabem se na realidade nós podemos ganhar. O Cabral veio com a sua gente, as suas idéias, mas se nós perdemos? Perdemos a nossa geleira, o nosso dinheiro no fim do mês, o nosso rádio, o nosso sonho de ir a Portugal passar as férias. Férias em Portugal para virem depois gabar - se (roncar), etc. Tudo isso fá- los ficar na indecisão na balança.

Todos esses medos da pequena burguesia nascente, a ansiedade perante um futuro desconhecido que não logravam imaginar, conhecendo apenas os limites do seu rincão natal, penso (embora possa estar errado) que este foi um dos motivos para que Rafael Barbosa não tivesse fugido para o mato, embora tivesse tido oportunidades para isso; e isto, sem por em causa o seu patriotismo e o afincado trabalho de mobilização e envio de jovens para a Luta de Libertação em prol do nosso povo). Amílcar Cabral falando de muitas coisas, acaba falando de algo que tem a ver com este particular: “Uma grande maioria de pequeno -burgueses, que está indecisa, que estava indecisa e que certamente ainda está hoje, porque eles pensam: «O Cabral vem com as suas coisas, com a sua gente, de fato seria bom que corrêssemos com os tugas, mas...»”.

 

CABRAL E OS “MILITANTES” VERSUS CABRAL E O “POVO”

 

                                                                                   “N`odja bu udjos suma dus fonte,                                                                                                                           fonte de dur                                                                                                    n`odja bu pena pena di alma                                                                                                                   sufrimentu di curpo”

 

                                                                                                                       J. C. Schwarz

 

As animosidades de décadas, os medos imensos, a incapacidade de acreditar e lutar, tudo isto foi transportado para Luta de Libertação, dentro da cabeça desses assimilados, que muitas vezes fugiram das cidades para ir se juntar a Cabral, apenas quando cometiam crimes ou eram perseguidos na cidade pela polícia. E finalmente, no mato - num ambiente de guerra, de sacrifício, de fome, de violência e morte, em que o ser humano está submetido a uma tensão extrema –, todos estes os complexos e temores foram potenciados ao máximo, até se tornarem num problema de ódio (ódio racial) comum e recíproco entre várias pessoas e grupos.

Às outras tribos Guineenses, “este problema” não dizia respeito directamente, pois mesmo que instintivamente, sabiam que acontecesse o que acontecesse, eles não voltariam a viver pior do que antes. E apercebiam disso também dia a dia, mesmo que por portas travessas, como na política de “Guiné Melhor” que os colonialistas estavam a realizar, graças a luta de Cabral. Viram que por causa deste os tujas pela primeira vez estavam a tratar os africanos gentios com algum respeito; construindo aldeias inteiras, casas, estradas, poços, postos sanitários, no fundo melhorando a vida de seus parentes que não tinham ido a Luta. Por isso não tinham nada a perder com a Luta, apenas ganhar.

Numa das suas conversas que chegaram até nós, Amílcar Cabral falando de muitas coisas acaba falando de algo que tem a ver com este particular: “Quem mais sofre com os tugas são essa gente da cidade, todos os dias os tugas estão em cima deles, a aborrecê - los, nas cidades, quer dizer, Mansoa, Bissau, Bissorã, Praia, S. Vicente. Os brancos que vêm como aspirantes ou escriturários. Se há concursos, os brancos passam logo à frente. Por exemplo, o pai do Cruz Pinto, tanta gente que lhe passou adiante, mas ele estava lá, assim como os pais de outros que estão aqui. É gente que sofre diretamente com o colonialismo todos os dias. Enquanto, por exemplo, o homem que vive no mato, lá no fundo do Oio, ou no Foreá, por vezes morre sem ter visto um branco. Lembro - me, por exemplo, que, quando um agrônomo português foi comigo visitar certas áreas no Oio, as crianças chegavam perto dele e esfregavam- lhe o braço para ver porque é que ele era assim, branco. Alguns lhe perguntaram mesmo—mas porque é que você é assim? Nunca tinham visto um branco.”

Volto a este ponto para dizer que se em cinco séculos os portugueses deram formação superior apenas a cinco Guineenses: um por cada século (uma pouca vergonha nunca vista no mundo). Cabral em dez anos deve ter “dado” a centenas de Guineenses. Só por isto ele já merecia ser lembrado para todo o sempre com gratidão (mas não: denegriram esta grande obra dizendo que só os “burmedjos” se formavam”; e a mentira foi tão difundida que acabou por se tornar uma “verdade” de tal forma que não tinham vergonha de dizer isso ao próprio “preto” que se tinha acabado de formar e voltado para o país.). E tudo isso porque para certos combatentes (militantes) civilizados não era assim tão linear; não tinham essa compreensão nem no âmbito teórico nem prático.

E assim as ansiedades e expectativas continuaram a alimentar a surda “guerra das sopas”, agora transformado pela pelos delírios verbais em toda uma verdade insofismável; numa “guerra de sopas” ideológica, dentro da guerra maior que era a Luta de Libertação”; e na procura de aliados, insidiosamente tratou-se de envolver as outras tribos nessa querela de civilizados, nessa contenda geracional e pigmental baseada no interesse pessoal em detrimento da defesa do povo no seu todo. E a arma usada foi outra vez a “cor da pele”; o que veio a transformar este problema localizado num “sentir” e numa “tragédia” nacional foi a tentativa de alguns de espalhar esse “problema” pelas mentes de militantes de outras tribos, tanto os islamizados, como os animistas como os balantas, mandingas e fulas.

Usando fora do contexto directo, apenas para fundamentar a minha análise, uma constatação de Álvaro Nóbrega, no seu livro já citado: “Não havendo nem uma etnia ou uma religião claramente maioritárias, assistiu-se, no entanto, a curiosa combinações de forças que conduzem à ascensão ou exclusão de facções no interior do Partido como, por exemplo, em 1986, onde todas as forças se combinaram para banir a importante presença balanta na hierarquia militar e do estado.”

“1986” não foi apenas uma repetição de práticas anteriores, com outras datas? E creio que todos que me lêem sabem onde este “banimento” dos Balantas nos levou. É isto que é o tribalismo em acção, que nunca para; pois depois de despoletado, como o boomerang, volta sempre e como  vírus da SIDA, pode metamorfosear-se. Pois tudo que tem uma origem e um começo pressupõem um desenvolvimento, e este desenvolvimento que leva futuramente a inimizade entre pais e filhos do mesmo sangue; entre guineenses de cor clara e de cor escura; que por efeito de contagio e de aproveitamento leva depois as incompreensões e ao ódio entre tribos, como o caso dos mandingas e fulas.

Assim a miserável doutrina de “pretundade” ou de “preto-nock” foi fazendo o seu enganador caminho na mente de pessoas que na sua esmagadora maioria nunca ganharam ou ganharão nada com esse pensar e sentir. A esses oportunistas, nunca hei-de perdoar, pois fizeram tanto mal a este povo que nunca devem ser perdoados por ninguém. Devem ser sempre desmascarados em todo o lado onde se apresentem. Mas este poderoso incremento e desenvolvimento deu-se durante a Luta de Libertação nacional.

Na verdade o desenvolvimento de ódios entre os guineenses só era possível durante a Luta. Nas condições específicas da Luta de Libertação. Pois os desentendimentos, invejas, ciúmes, etc., entre seres humanos passam rapidamente a ódios profundos quando existem mortes e derramamento de sangue. E durante a Luta o derramamento de sangue e mortes eram “cama de gato”.

Ali, no meio de uma resistência difícil, isso era um problema entre centena meia de cristãos (na verdade cristons, pois aqui não se trata de religião mas de educação) nascidos na Guine e outros nascidos em Cabo Verde. E para complicar tudo, muitos desses nascidos na Guiné, embora de pele mais escura (“preto nock”), tinham “sangue cabo-verdiano” a correr nas veias (que no fundo nem existe como tal, porque parte do sangue cabo-verdiano original, “saiu” das veias dos Guineenses que foram levados para cabo verde há duzentos e trezentos anos atrás como escravos). Baseando a sua “razão” e “legitimidade” na parecença da cor com eles (cor escura) e na diferença com os que eram mais claros. E como muitas vezes os destinatários dessas mistificações eram pessoas com pouca instrução, isso foi sendo interiorizado e pouco a pouco transformado em aversão, que em casos extremos chegaram a ódio profundo sem motivo aparente.

Mas como muitos deles eram os dirigentes da sociedade (tanto no mato como depois da Independência), por imitação acabaram espalhando-a por toda a sociedade, dividindo o povo; dividindo irmãos, primos, familiares, marido e mulher, pais e filhos, avós e netos e estragando a vida e felicidade de muita gente. Baseando a sua “razão”, a sua “verdade”, e “legitimidade” na parecença da cor com eles (cor escura) e na diferença com os que eram mais claros. E como muitas vezes os destinatários dessas mistificações eram pessoas com pouca instrução, isso foi sendo interiorizado e pouco a pouco transformado em aversão, que em casos extremos chegaram a ódio profundo sem motivo aparente.

É neste ambiente de ansiedades e de medos infundados procuravam-se aliados e “contavam-se espingardas”; posicionavam-se campos, mesmo que apenas teoricamente ainda, que se deu o assassinato de Cabral. E foi assim que este povo, através do seu próprio Movimento de Libertação, foi artificialmente dividido. A Luta de Libertação nacional, na verdade, também teve consequências extremamente negativas, que Amílcar tentou atalhar na sua luta inglória para criar o “homem novo” liberto da vulgaridade e da decadência moral. Por mais que me doa, tenho que aceitar que o meu povo (como todos os outros) é feito de heróis e anti-heróis, de gente de bem e gente de mal; de traidores e mártires. Sem um não há outro, como duas faces da mesma moeda, entrelaçadas numa dialéctica unidade de contrários. É a lei da vida, e nós, os Guineenses, sabemos isso dolorosamente, com muita clareza.

Portanto, alem da velha questão da cor da pele, ainda dentro do âmbito, das antigas rivalidades do tempo da “sopa de pobres” da sociedade colonial, desenvolveram-se novos antagonismos. São estas noções sem nexo, estes delírios verbais, mais nefastos que uma ideologia escrita, juntamente com o terror e vontade de destruir, que alguns trouxeram da luta e o espalharam em todos as cabeças, de tal forma, que os rancores de alguém, ou complexos de inferioridade de outrem, ou inveja de terceiros acabou sendo, de tanto repetido, uma “verdade nacional”. Essa “verdade espúria” dizia que os que têm pele mais clara não prestam e os que têm pele mais escura são bons ou vice-versa.

 

O ÊXODO DOS BURMEDJOS WAK VESUS ÊXODO DOS PRETO NOCKS

 

                                                                       "Bardadi i ka malqueta…”            

              

Provérbio Guineense

 

Escrevi antes que o regime instalado no nosso país depois da Independência Nacional tinha ainda falta de “ideias frescas”, conceitos novos, que não aquelas do tempo da Luta; e pecava por uma fraqueza económica gritante e evidente, que tinha como origem a incapacidade de definir um modelo económico viável e claro; isso somado a erros grosseiros que de uma penada destruíram a produção agrícola (arroz, mancara, feijão etc.); simplesmente, muita gente não entendia que as vezes uma simples decisão boa, de um presidente ou de um ministro, transformada em lei, pode por si só melhorara a vida de milhares de pessoas; da mesma maneira que uma decisão errada pode destruir todo um sector produtivo. E mesmo que se fizesse depois cem reuniões para discutir o assunto, não serviriam para nada.

Dando exemplos simples, se decido liberalizar a economia, de forma mal pensada, importando camiões e camiões de óleo alimentar do Senegal, a um preço de chuva, claro que a produção de mancara ira por água abaixo em dois tempos. Se o arroz oferecido pelos países amigos, importado da Tailândia, é vendido a um preço abaixo dos custos nacionais, claro que os produtores de arroz “passam” para castanha de caju, na melhor das hipóteses, ou pura e simplesmente vão para os centros urbanos engordar o “lumpemproletariado” nacional que vive de biscates e venda ambulante, mas que nada produz. Quando não vão para a tropa e para bandos que assaltam casas e etc.

Mas da política económica, falaremos noutra altura, dou exemplos simplistas até, mas verdadeiros, de coisas que fomos constatando durante esses tempos primeiros, como forma de situar o leitor e dizer que com tudo o que foi mal feito na economia, tendo havido ou não o 14 de Novembro, o regime teria entrado em colapso mais tarde ou mais cedo.

Mas isto é um pormenor apenas, pois o regime nessa altura, já ser criminoso, separatista e divisionista social; E claro que um regime é feito do seu tecido económico e social que são “inseparáveis”. e quando o tecido social esta de rastos, não é o económica que estará pujante. em suma a politica do governo desde o inicio, foi um entrave ao desenvolvimento das forças produtivas nacionais e um inimigo declarado da economia do mercado, com um pendor planificador socializante . Mas que percebo eu de economia para dela falar? Deixo a economia paras os nossos doutos economistas, só estou a falar de “bom senso”. e o bom senso nos manda apenas fazer o que se faz, com sucesso, há centenas de anos e melhorar o que podemos melhorar que o resto virá por acréscimo. Mas se temos dirigentes sem nenhum bom senso, já para não falar de falta de capacidades técnicas e conhecimentos científicos; já para não dizer com falta gritante de moral (pois de economia tratamos?) o resultado é o descalabro; Pois nem no mais perfeito dos mundos 4 – 2 é igual a 6.

Para não falar de uma ilegitimidade gritante que o regime conquistou num tempo recorde de menos de três anos, que o fazia existir e aguentar, apenas baseado numa força policial cada vez mais descontrolada. Quanto tempo duraria, se não tivesse havido o golpe de estado de 14 de Novembro, não sei, mas como já disse, há muito que esse regime estava em crise. As famosas obras do regime eram a montra que escondia uma economia decrépita, e cada vez mais periclitante, que nem mesmo as remessas de ajuda internacional (que não eram poucas, mas mal utilizadas, não serviram para robustecer a economia; pelo contrario destruíram a nossa pequena, mas organizada economia, totalmente).

A nossa elite, crioula e tribal, que tinha trabalhado na administração colonial, não só na Guiné, mas em alguns casos em Angola, Cabo-verde, Moçambique e até em Portugal, estava nesse aspecto (organizativo e experimentalmente) a léguas deles, mas venalmente não foram aproveitados; foram descartados da governação, da economia e da comunhão nacional, e por fim temerosos pelas suas próprias vidas emigraram. Porque contrariamente do que se imagina, o Governo de Luís Cabral nunca protegeu os ditos “burmedjos”, pelo contrário estigmatizou a maioria; e muitos foram expulsos do país de uma forma ou outra. Outros, como os comandos, mesmo tendo fugido para o Senegal, e republica da Guiné, eram muitas vezes detidos pelas autoridades desses países (a pedido do nosso Estado claro) e recambiados para aqui, para uma vida de privações, se porventura não forem mortos.

II

 

Quem mais “odiava” o antigo Presidente Luís Cabral (particular e pessoalmente) não eram fulas, mandingas, balantas ou mandjacos - Luís Cabral até tinha “filhos” de várias etnias que criou como seus próprios filhos (balanta, mandjaco, etc., conheci pessoalmente, e de um, fui amicíssimo e ainda sou) - eram os ditos “burmedjos” ou “civilizados”, que a política económica e social do PAIGC, destruiu completamente. As suas vidas e a dos seus filhos foram desarticuladas, interrompidas e desorganizadas.

 Exemplifico com as classes dos enfermeiros, dos funcionários públicos, etc., que ele nem deixou terem uma reforma condigna, que o estado português os queria dar depois de toda uma vida de trabalho. Se eles aceitassem a reforma (e a obrigatória respectiva nacionalidade) que o Estado português lhes concedesse, os “camaradas” tiravam-lhes a cidadania Guineense.

Este é apenas um exemplo acabado de incúria e impreparação para governar dos antigos combatentes: o Estado Guineense não ia gastar um cêntimo com as reformas de milhares de pessoas (facto só por si muito bom para as finanças depauperadas do novo país), alem de que essa gente ia continuar a servir o estado Guineense; o dinheiro das reformas que receberiam do governo português serviria para ajudar a trazer divisas para o país e consequentemente para desenvolver o país; eram técnicos imprescindíveis para a Reconstrução (escriturários, enfermeiros, condutores, contabilistas, comerciais, canalizadores, técnicos de gás, de combustível, electricistas, etc. etc. etc. até ao infinito) com quem o Estado Guineense não ia gastar um tostão na sua formação (já tinham sido formados pelos portugueses) e poderiam transmitir os seus conhecimentos as gerações vindouras. Mas foram hostilizados com uma ignorância atroz, e proibidos de almejar tudo o que é normal nos seres humanos; isto é que veio a gerar a primeira vaga de fuga de quadros (técnicos e médios) do país que infelizmente continua até hoje.

Estranho paradoxo este que o meu Pai caracterizava como: O estado a tirar nacionalidade aos seus próprios cidadãos. Em contrapartida vinham senegaleses, gente de Conacri e outras partes do mundo buscar a nacionalidade Guineense e lhes davam, com muita alegria e solidariedade…. Africana, ou seja lá o que isso era. Outros países mais “inteligentes, modernos e desenvolvidos”, procuram descendentes seus até a terceira e mais geração nascida fora dos limites fronteiriços, sabendo que um país só tem a ganhar acarinhando os seus filhos e descendentes. Mas nós, que eramos superiores, o que é que isso interessa?

Meu velho por não querer perder a nacionalidade nunca pediu a reforma dos Correios (onde trabalhou por algum tempo). E assim revoltado com esse estado que em vez de libertar o povo, aterrorizava-o, espancava-o e vilipendiava, veio a saudar i 14 de Novembro não como uma segunda libertação como alguns diziam, mas como a primeira. Mas anos depois, já vivendo na felicidade que o 14 de Novembro nos trouxe, “comendo ananases na lua”, eram agora os órgãos de soberania a fazer leis, para de novo tirar a nacionalidade a outros guineenses, noutro paradoxal paradoxo. Já não eram os “burmedjos” que queriam a reforma dos tugas, mas o pobre e simples povo que emigrava do seu país porque essa gente com a sua má governação tinha-lhe destruído todas as fontes de rendimento. e para não morrer de fome tinha que emigrar. pela primeira vez analfabetos começaram a chegar a Portugal, vindos dos confins de Oio, Gabu, Bafata e outros pontos do país. Os emigrantes de Angola, Cabo Verde, Moçambique e S. Tomé tinham, na sua maioria, uma formação qualquer para se adaptarem a nova realidade. Nós não; nós vínhamos directamente das tabancas, da ordem tribal, sem nenhuma escolaridade, sem ao menos crioulo dominar, pois o descalabro já não tinha medida. E quem era culpado disto tudo fazia leis e mais leis, a “despojar” essa gente de nacionalidade.

Nessa altura – em que os dignitários do regime andavam em viaturas 4X4 de 50 000 dólares e não havia incubadoras de 5000 nos hospitais para salvar a vida de tantos inocentes filhos de coitados - meu pai desistiu de entender esse Partido. Afinal não era uma questão de cor da pele, de pais ou local de nascimento (Luís Cabral afinal nasceu na Guiné), era muito mais complicado que isso. Mas como dizia, o velho (quando falo no meu velho, é apenas um símbolo, mas na verdade falo nos velhos de centenas e centenas de pessoas iguais a ele e a mim próprio) desistiu de entender esse Partido, que depois de 14 de Novembro, tendo lhe dado beneficio da duvida, tinha parado de vituperar. Ao fim ao cabo era o Partido de seus irmãos e irmãs, sobrinhos e primos, amigos e colegas de infância; ele tinha familiares que morreram na Luta de Libertação, familiares no aparelho de estado, sobrinhos militares do exército e marinha do PAIGC (ele tinha um sobrinho um pouco mais novo que eu, que tinha um nome único mundo; chamava-se Congresso, por ter nascido na Luta e por altura de um dos Congressos do PAIGC. Sorte dele o nome era em Francês e soava de modo estranho para a maioria de nós seus primos e amigos).

Depois de “cair na real”, como dizem os brasileiros, e ver que nada melhorava, pelo contrário, desistiu de estender essa gente…

Percebeu por fim que não podia nem amar nem odiar essa gente. Apenas lamentar e lamentar… e sentir profundamente na sua alma, que os erros deles eram erros de todos nós. O PAIGC no fundo era apenas o espírito guineenses, sentado numa sala roubada (Carlos Domingos Gomes Sénior dixit), discutindo o passado, enquanto o presente teimava em escapar das suas trémulas mãos. Esse Partido já não era um Partido, era um estado de espírito, era apenas o espelho de uma certa nação, que quando se fitava a si mesmo nele, encontrava lá todos os seus vícios, complexos, incúria, maldades, ódios e pouco mais.

 

III

 

Se algum “defensor do indefensável”, para outro nome não dizer, me diz que eles não podiam actuar de outra forma, porque não estavam preparados, porque tinham que se “defender” (algum dia gato defende-se do rato?), porque a ideologia revolucionária que transportavam apontava-lhes este caminho da perdição, respondo que nenhuma ideologia que não se baseia no bom senso e na valorização do passado correcto, em detrimento de futuros incertos, não pode sobreviver e frutificar. As ideologias de “defuntos i ba cabanta”, baseadas e delírios verbais, em devaneios, em voluntarismos desvairados, em “ pintchas” e “no pui na um mon” por mais imbuídos de boa vontade que fiassem, só podiam redundar no fracasso.

Mas devo ainda dizer que este pensamento retrógrado, reaccionário e obtuso teve consequências nefastas também para a economia e desenvolvimento nacional. Com a fuga de quadros médios, enfermeiros, professores, torneiros, lavradores, calceteiros, construtores civis e muitos pequenos artesões que foram engrandecer outros países. Porque uma das consequências de todo este problema foi o facto de hoje em dia, mais de 90% de Guineenses de “cor clara” já abandonaram o “nosso país”; muitos abandonaram o “seu pais” apenas por terem cometido o crime de infelizmente terem nascido com a cor mais clara que os seus compatriotas, coisa mais que normal em qualquer parte do mundo. E aquela parte do povo, a que tinham a “cor mais escura” ganhou alguma coisa com o êxodo destes seus compatriotas? Lucraram alguma coisa com a imigração de parte do povo que tinha a “cor mais clara”? Passaram a viver melhor? Não, claro que não. A vida piorou de forma insuportável nos últimos anos e já nem havia “burmedjos” para culpar. O país parou no tempo, e quem ganhou com isso foram somente aqueles que instilaram o ódio e o divisionismo no meio do povo. Ganharam? Se isso é vitoria…

IV

 

O êxodo dos “burmedjos” da Guiné na verdade, ao contrário do que se diz, começou com o governo do Luís Cabral e o advento de 14 de Novembro apenas manteve e reforçou essa tendência. Mas nessa altura o êxodo já era generalizado e filhos de todas as tribos emigravam sempre que pudessem pois a descrença e o descalabro já tinha chegado. Pois enquanto o regime de Luís Cabral estigmatizava os seus “burmedjos” (ou burmedjos do seu tempo), o Partido (aqui não há partido, não há regime, não há governo, não há órgão de soberania, não há exercito, confundiam-se totalmente uns nos outros) no seu todo, estigmatizava todas as etnias restantes, até descobrirem o caminho para a sua “solução final”, que foram os massacres e valas comuns de que falei antes e de que falarei adiante.

Mas isso não deu em nada e nem salvou o regime. Quando digo que “não deu em nada”, quero apenas dizer o regime de Luís Cabral foi acusado na mesma, de ser parcial e de proteger os ditos “burmedjos” no “14 de Novembro”. Pois aquela meia dúzia de “burmedjos” que havia no aparelho de Estado (que nem Luís Cabral podia demitir, pois também eram combatentes de Liberdade da Pátria como ele) veio servir de exemplo, para demonstrar desonestamente a pessoas sem estudos, ou capacidade de análise, que os “burmedjos” é que mandavam, que prendiam, e que matavam. E paradoxalmente, Nino Vieira quando deu o golpe, para demonstrar que não era racista ou que o golpe não era contra os “burmedjos”, foi buscar de novo essa meia dúzia de “burmedjos” para outra vez os pôr no seu novo Governo Reajustador.

Todo este desvairo, tudo isso que aconteceu desde a Independência, era derivado do complexo criado com a morte de Amílcar Cabral. Falou-se na altura, de que o seu assassinato tinha motivações racistas, por ser “burmedjo/cabo-verdiano”; e que os que o mataram eram “pretos/Guineenses”. Sendo irmão do Presidente Luís Cabral, fez com que este primeiro governo Guineense quisesse demonstrar aos ditos “preto nocks” que pese embora o Presidente “ser Cabo-verdiano” (embora nascido na Guiné) não tinha uma política pró cabo-verdiana ou pró burmedjos. Achavam que assim tranquilizavam uma certa “opinião pública” e dominavam uma certa ala radical do Partido, que embora ninguém acusasse formalmente, entendia-se que estiveram moralmente ao lado dos assassinos de Cabral, mesmo que só em pensamento.

E nesses casos como habitualmente há sempre um excesso de zelo e como sempre, sofrem muitos inocentes (fazem lembrar-me aqueles policias negros que há em Portugal, França ou Inglaterra que para demonstrarem que não é por serem pretos que vão proteger os pretos, são geralmente mais rigorosos com os pretos “seus parentes”, do que com outras raças).

De disparate em disparate, hoje em dia, mais de 90% de Guineenses de “cor clara” já abandonaram o “nosso país”, o “seu país” e o único crime que cometeram foi terem tido a infelicidade de nascerem com a cor mais clara que os seus compatriotas, coisa mais que normal em qualquer parte do mundo.

Mas a vitória foi de piro, pois hoje quem mais imigra, quem mais foge desse país, quem mais foge deles, são justamente aqueles que têm a cor mais escura, os tais que eles consideravam “pretos nocks”. Desde infância escutamos estas “verdade”, muitas vezes dita de modo escondido, mas bem presente nos espíritos. Há uma frase crioula que é geralmente dita sem terminar completamente, sempre com reticências no fim ou no inicio que simboliza esta relação ambígua e de desconfiança que se estabeleceu entre uma parte de Guineenses com relação a outra parte: “burmedjos…” ou “ki burmedjo la…”; “ Esta “verdade” é também uma das causas subjectivas mais importantes do descalabro que o nosso país veio a ter. E ainda hoje, com quase toda a população mestiça ou de cor clara do país imigrada, ainda continua a ser uma fonte de erros e imensos disparates.

E hoje, mesmo passado tantos anos esta mentalidade tacanha que veio da Luta continua fazendo o seu caminho, como o boomerang que volta cada vez. Pois anos depois, já na vigência do multipartidarismo, dizia-se a “boca pequena” em Bissau, que certos dirigentes de partidos de oposição, que tendo saídos do PAIGC (portanto produtos da sua matriz) continuavam ainda com essa mentalidade, chegando ao ponto de nas eleições porem os “mais incapazes” a “frente” nas listas eleitorais e eles ficarem atrás, pois segundo se dizia aqueles eram “preto nocks”, e por isso o povo votaria neles, passando assim um certificado de racista ao nosso povo que nunca o foi.

Por isso mesmo, e para ser isento e imparcial, como sempre tento ser nestas reflexões, devo dizer que o livro do Álvaro Nóbrega, atrás referido, foi publicado em Março de 2003, e que acerca dessa votação no seio do Comité Central desse Partido, o escritor referia-se aos primórdios do multipartidarismo na Guiné, portanto nos inícios dos anos 90. Para reforçar o seu argumento, ele apresenta trechos de entrevista com o actual Presidente da República Malam Bacai Sanha (na altura candidato a liderança no PAIGC) e com outros políticos nacionais, que conhecendo este flagelo falaram sobre ele, cada um a sua maneira, para repor alguma verdade.

 

AS VERDADES QUE NÃO PROCURO…

 

                                                                       "Se muitas são as coisas que digo nestas                                                                                  páginas, muitíssimas são aquelas que não digo,                                                                                    simplesmente porque não tenho ideias                                                                                    precisas a seu respeito."

 

                                                                                              Umberto Eco, in

                                                                                               “Kant e o Ornitorrinco

 

                                                                           

Ao matarem Amílcar Cabral, os assassinos, alcançaram algo transcendente: conseguiram permanecer unidos a ele para toda a eternidade. Pois sendo quem disparou o primeiro das balas que ceifaram a vida de Cabral - mas não o “tiro da misericórdia -, Inocêncio Cani vai ser lembrado para sempre. Quando já passados centenas de anos, quando ninguém mais se lembrar dos nomes dos protagonistas da gloriosa Luta de Libertação Nacional - tirando o nome de Amílcar Cabral - um nome nunca será esquecido e fará parte do mito de Cabral; esse nome será do “tristemente célebre” Inocêncio Cani. Triste porque não morreu lutando pelo povo, como tantos outros heróis nossos, mas matando o condutor do povo. E assim, na morte, deles e de Cabral, os assassinos acabaram ligando-se a àquele que mais odiavam. E este com a sua sombra imortal, igual Polon garandi, acabou cobrindo-os a todos e dessa maneira dando-lhes também a imortalidade; um pouco da sua imortalidade.  

Eram criminosos sim, mas nossos criminosos. E deles não podemos fugir; pois a sua maneira de pensar era (nesse seu tempo) idêntica ao de muitos de nós (hoje neste nosso tempo). O seu sentimento era igual ao de muitos que lá estavam, ao lado de Cabral, que embora não carregassem o gatilho, se calhar não desgostavam de o fazer. E ainda hoje, a sua maneira de pensar, a verdade seja dita, é a maneira de pensar de alguma gente; alguns por errada convicção racista, obscurantismo ou simplesmente a incapacidade de evoluir; outros, muitos, quando há algum interesse pessoal em jogo, esquecem que existe coisas como a dignidade, patriotismo e respeito pelos outros. Mas isto não faz parte do mito. Isto infelizmente é a realidade, por mais que nos doa. E em verdade vos digo, doe.

Mas mesmo com dor, nesta particular dimensão, sendo coerente com o que disse antes sobre a Guerra de 1998, - “(…) sem fazer distinções, pois para mim a condição primeira da análise eram o facto que os unia: serem todos guineenses. Guineenses enganados ou não, mas apenas Guineenses; e para mim era o que realmente importava nesse caso. (…)” - sou obrigado a dizer que, por mais que nos doa, também eram filhos do nosso povo. E como povo e não podemos renega-los levianamente: nem filosoficamente, nem moralmente; nem esconjurando-os e amaldiçoando-os. Pois a História da Guiné e dos Guineenses, sendo do nosso agrado ou não, inclui Momo Touré, Inocêncio Cani e o resto dos seus companheiros conjurados. E com eles, como com Amílcar Cabral, estaremos ligados para a eternidade. Pois querendo ou não, eles eram também “carne da nossa carne” e “sangue do nosso sangue

Mas para deixar bem claro esta minha asserção, vou socorrer-me desses meus escritos anteriores, onde também afirmei que a história que contava era daqueles que lutaram ao lado do Governo e ao lado da Junta, sem fazer distinções; pois para mim muita gente lutou ao lado da Junta, não porque comungava das reivindicações desses soldados, mas porque ao lado deles julgou encontrar uma base sólida de apoio para lutar contra o sistema, que considerava corrupto e errado. Assim como muita gente lutou ao lado do Governo não porque entendia que ele era “um bom governo” ou “mau governo”, mas apenas porque entendia que esse era o seu dever; porque entendia que era um Governo legítimo, a resistir a rebeldes fora da lei.

Mas o verdadeiramente importante, muito para além das palavras, é perceber (e nunca esquecer), que nesse particular contexto, alem desses dois grupos, havia o grupo maior, o grupo do povo, que apanhado no meio do fogo cruzado, morria em canoas naufragadas, tentando atravessar o Oceano revolto para chegar ao Ilhéu do Rei ou a Bolama…. Que morria assistindo impunemente a destruição de todo um modo de vida, de todo um país, que merecia melhor sorte do que aquele que tinha e melhores governantes do que aqueles que possuía (que faziam a guerra). E a nossa lealdade, quando posto em cheque, mesmo quando temos duvidas existências, deve ser sempre para com esse grupo maior.

Hoje só posso dizer que independentemente de por quem e quando foi dada a ordem de fuzilar (ou não) Amílcar - coisa que talvez nunca saberemos - havia motivações de várias ordens, cálculos políticos ou apenas ambições pessoais e os tais complexos e “verdades mentirosas” que acabaram para despoletar essa decisão limite. Por isso quando analiso todos estes acontecimentos passados e não posso deixar de ver que eram todos eivados de oportunismo mais perverso e interesses pessoais que sempre nortearam muitos os dirigentes deste país. Desde antes da Luta, durante a Luta e depois da Luta.

Nino vieira com todo o seu percurso político e militar - desde jovem militante do PAIGC, galgando todos os postos de militante, combatente, comandante, presidente de Assembleia Nacional, ministro, primeiro-ministro, presidente da república, até ao seu assassinato - sabia o que dizia quando qualificava a Guiné “como um país de traidores”. Creio que ele na verdade não falava da Guiné nação e povo; falava, mesmo que inconscientemente, dos seus companheiros de Luta, dos militantes do seu partido.

Mas mesmo assim, aproveitando a deixa, eu diria que pior que ser um país de traidores, é ser um país de oportunistas. Pois se “ser traidor” de certa forma é humano, como Cabral disse, “ser oportunista” de todas as formas, é desumano.

 

II

Para sustentar o meu pensamento e baseá-lo na rectidão, devo deixar claro que não interessa a ascendência nem a cor da pele de quem executou Cabral (aqui não estamos a diferenciar quem matou ou quem mandou matar); só interessa o facto de que eram gente que alem de impreparados, com baixa capacidade de análise, infiltrados pela polícia portuguesa e tudo o mais, eram também “complexados”, no sentido em que foram manipulados porque estavam profundamente enganados e iludidos. Em suma eram apenas gente sem escrúpulos; traidores degenerados, e inqualificáveis filhos do… nosso povo.

José Pedro Castanheira diz no seu livro já citado, sobre a morte de Cabral, diz o seguinte: “A lista de hipóteses é comprida e variada. Nela figuram a PIDE e os militares portugueses. Guerrilheiros, alguns deles heróis da Luta Armada contra a ocupação da Guiné por Portugal. Um ex presidente do PAIGC. Até o Presidente do País que acolheu e apoiou durante os anos da luta os dirigentes e combatentes da “Liberdade da Pátria” – esse mesmo Sekou Touré que cedeu a casa a Cabral, e horas depois do assassínio ainda recebia os golpistas, no seu palácio, antes de ordenar a sua prisão”

Mas por todas estas contradições, mistérios e mitos, de que já falei, sou obrigado a aceitar que de uma certa forma, a sensação de impotência que o antigo Secretario Geral do PAIGC fala no seu livro, é uma constante, em toda tentativa séria de dissecar este importante instante da vida do nosso povo. Muitos estudiosos, jornalistas, historiadores, antes de nos, em trabalhos hercúleos, tentaram estabelecer verdades rigorosas. E nós hoje com ajuda dessas análises, felizmente podemos criar as nossas próprias hipóteses.

Algumas agências de notícias (internacionais e portuguesa), personalidades políticas de renome, e pessoas anónimas, em muitos recantos do mundo, conforme a sua interpretação e tendência política, apressam a dizer que os autores do atentado (os executores) eram todos Guineenses em contraposição aos cabo-verdianos (todos inocentes). Ou como veio a escrever o biógrafo de Cabral, jornalista português, J. P. Castanheira que já citei várias vezes por ser uma fonte incontornável: Um Golpe de Guineenses.

Falou-se, em outros contextos, do antagonismo histórico no seio do PAIGC, entre os que nasceram na Guiné e os que nasceram em Cabo verde e quiçá, entre os claros e escuros (pretos e burmedjos). No meio disto tudo um perturbador depoimento (segundo testemunhas) de um dos conspiradores, Valentino Mangana de que os “negros” do Partido (quais?) tinham missão desembaraçar-se de todos os “mestiços” (como? Matando-os?), e só depois Portugal constituiria um governo com aqueles que tinham tomado parte na missão.” Claro que Portugal nunca aceitou esta afirmação e repudiou toda e qualquer participação no assassínio de Amílcar Cabral.

Assim, cedo, começaram a surgir explicações várias índoles: mas esta fez o seu caminho e até hoje é apontado como um dos motivos da morte deste herói africano: que dentro do movimento havia um antigo e agudo conflito motivado pela cor da pele e proveniência; entre os nascidos nas ilhas de Cabo verde e os nascidos nos rios da Guiné; e mesmo no seio dos que nasceram na Guiné: entre os “mais claros” e os “mais escuros”.

Tudo isso contribuía para transfigurar, de uma só penada, todo o heroísmo da Luta de Libertação, toda a abnegação, sacrifício e morte de muitos heróis, em quase nada. Eram, afinal, apenas um grupelho de racistas sem nenhuma dignidade, em que a baixeza e sordidez não tinham limites, chegando ao ponto de matar o seu próprio líder (homem probo, admirável, respeitado internacionalmente) por este ser de cor um pouco mais clara ou menos clara? e isto num mundo moderno, em que toda a gente que tem dignidade, dois dedos de testa e um pingo de nobreza é anti-racista.

III

 

Existem várias verdades para este acontecimento; arriscaria dizer, que cada um criou a sua verdade e vestiu-a de vestes dignas e justas, tornando-a assim inatacável. Mas como não somos tolos, nem desconhecemos as premissas, resta-nos a questão da comodidade. E o “mais cómodo” é aceitar um que esteja de acordo com a nossa mentalidade política e não pensar mais no assunto.

Por isso preciso seguir por outros caminhos, ainda não trilhados, pois como já foi afirmado, independentemente do valor dos factos existe o valor dos mitos. E cada um a sua dimensão, cada um com o seu lugar no nosso imaginário colectivo, são ambos essenciais. Por isso sou obrigado a abordar esse trágico dia com todas as suas profundas implicações e consequências; sejam elas de dimensões políticas ou morais, raciais ou tribais, ideológicas ou espirituais. 

Coisa sumamente difícil, devo dizer, já que o facto, o acontecimento, é uma coisa e a sua descrição forçosamente tem que ser outra coisa. E esta “outra coisa” pode por sua vez “modificar” a percepção que dela tem os contemporâneos, independentemente do tempo que passou ou das suas verdadeiras consequências históricas.

 Mas como aqui os instrumentos de investigação não são a lupa e o microscópico, temos como instrumento apenas o nosso cérebro, recordações, e o nosso discernimento, com toda a imparcialidade possível. E como a memória é falível, em muitas situações, tenho que usar apenas a “intuição” e “razão pura” com todas os seus perigos. Mas mesmo assim, por ser da raça humana e consequentemente possuidor da razão humana sou também como Kant “atormentado por questões que não posso evitar” e às quais “não posso dar resposta por ultrapassarem completamente as minhas possibilidades”.

Mas como eu acho, contrariamente a alguns, que afirmam que “Guineenses oça morte ma é medi bardadi”, entendo que na verdade os “Guineenses oça bardadi nin ku pago i morte”, não vamos ser comodistas. Pois por sermos Guineenses, diferentemente daqueles estrangeiros que nos tentaram entender a luz dos seus “estrangeiros” conhecimentos, pertencemos a este nosso pequeno mundo e somos por ele formados; por isso “sabemos” algumas outras coisas; “sabemos” em que acreditar e como acreditar; e “sabemos” como duvidar e do que duvidar. Sabemos por conhecer a nossa idiossincrasia como pessoas e como povo.

 

IV

 

Sistematizando: de tantas verdades acabei encontrando seis verdades principais: a do António Spinola, a do Ahmed Sekou Touré, a dos traidores, a dos perpetradores do crime (sim, aqui as pessoas não coincidem obrigatoriamente) e dos que sem serem traidores nem assassinos, “permitiram a coisa” (usando aqui as características palavras da jornalista italiana, contemporânea dos acontecimentos, Vittoria de Lelio).

Depois houve a “verdade” dos sobreviventes. Nesta categoria englobo todos os outros que nada tendo a ver com o brutal acontecimento directa ou indirectamente, não deixaram de procurar a “verdade”: tanto os indefectíveis como os adversários.

Alguns ainda hoje a procuram, mesmo que seja apenas no seu sofrimento, nas suas recordações, dentro de si mesmos, pois é uma forma de entenderem, para além da verdade oficial, porque “foram” a Luta na verdade; porque que é que a Luta foi assim e não de outra forma; porquê tiveram este papel, e não outro, nela. Porque é que depois da Luta viveram desta ou doutra maneira. Ou porque que é que depois de tantos sacrifícios, tudo veio a acabar tão desastrosamente?

Entre tantas “verdades”, não será a minha que será a verdade verdadeira. Por isso como disse antes, eu não procuro a verdade, mas um mundo que não cansarei de procurar, mas que também sei, que só encontrarei, construindo-o de raiz. Uma nação em que o sonho de Martin L. king, de que falei no Quinto Instante, será a realidade:

 Uma nação onde os homens não serão julgadas pela cor da sua pele, pela sua pertença tribal, mas pelo conteúdo de seu carácter. E por aquilo de bem que fizerem ou não pelo seu povo…

Esse dia há-de chegar”, pois não “há mal que sempre dure e não há dor que não se cure”. E assim numa silenciosa esperança, feita de tanta desesperança, que como na matemática, onde menos e menos resulta no mais, a nossa desesperança somada a desesperança dos nossos pais, um dia resultarão em esperança dos nossos filhos por fim. Porque como o velho Paulo Nanque, i ca sabura ku teneno… um dia mundo tem ku sabi, pa no hodja nô terra de utro manera… mundo tem ki rábida, pa nô sedo alguim na nô rosson…

 

 

EPÍLOGO OU MARIANA SIMAS

 

 

Por agora sou como Sr. (Nhu) Bacar Demba, de Santa Luzia, que por ter participado nas guerras de pacificação do também tristemente celebre Governador Colonial Teixeira Pinto (que dizimou tantos guineenses), por gratidão e patriotismo, recebeu uma casa na rua principal. Casa bonita, varanda alta, apenas longe de mais, para seu gosto, da tabanca onde nasceu. Um homem na velhice, um Africano ainda mais, deve estar perto das primeiras coisas que os seus olhos contemplaram, ainda no regaço da mãe…

Na sala tem pendurado em lugar de destaque o seu chapéu branco de campanha ladeado pela espada de honra enfiada no coldre de pele trabalhada; do outro lado as fotografias desbotadas “preto e branco”, dele ao lado do Governador da província, e dele ao lado dos seus pares…

Na velhice honrosa, de quem acredita ter cumprido seu dever, senta-se na varanda a aquecer os velhos ossos e dignas cicatrizes, no sol quente de Julho. O barulho dos carros, que passam, velozes e sem nenhum respeito, sem saberem “quem é ele”, não o deixam dormitar. Esses jovens que sobem e descem, não sabem que o mundo não envelhece, apenas nós. E assim pensando, fecha os olhos, fugindo deste presente que não orgulha ninguém, refugia-se no passado e lembra do tempo em que comandando o seu batalhão, bastava tossir, para que os cavalos e homens estacassem no lugar. E quando, na sua tabanca natal, saia da sua morança, e cuspia o seu tabaco mascado com força, demonstrando irritação ou ma disposição, todos baixavam os olhos, o silêncio era total, os meninos paravam de brincar e mesmo as vacas paravam de mugir…

E assim lembrando o tempo do antigamente, desprezando o do presente, cospe com força tentando atingir a valeta, como se com esse gesto voltasse de novo a ser o forte, respeitado e impiedoso Cabo de Guerra; esperando que demonstrando assim a sua irritação, se fizesse silencio, uma vez que seja na vida, nessa poeirenta e barulhenta “Estrada de Santa Luzia”.

Mas a idade não perdoa, nem aos heróis, nem aos heróis enganados, e o cuspo lançado apenas com força mental, e sem a respectiva correspondência na força dos lábios flácidos de Nhu Demba, em vez de descrever um arco perfeito para aterrar na valeta, como no tempo da sua mocidade, sobe verticalmente, para voltar a cair, sem piedade, sem respeito, na sua enrugada face de noventa e tal anos; o som e o impacto, e a viscosidade do cuspo na cara, acordam-no de vez, e o arrastam de novo para este amaldiçoado e barulhento presente. Então envergonhado, saindo do seu torpor, feito de recordações de batalhas longínquas, abrindo por fim os seus velhos olhos, fita-nos, encostados ao último pilar da sua varanda, rindo com os nossos inocentes e tolos dentes de 13 anos, da sua desgraça, que habitualmente testemunhávamos mesmo sem querer; semicerrando os olhos para nos ver melhor, fita pensativamente, até nos reconhecer, vendo que éramos apenas inofensivos rapazinhos “da casa de Nha Bebê”, vagarosamente, com dignidade, limpa o cuspo com as costas da mão, com que depois tapa a boca, para não vermos o seu sorriso envergonhado. Acto seguinte, finge nos ameaçar com o punho fechado, fazendo um gesto de “panta menino”, como se fosse levantar para nos apanhar, mas como já não surte efeito, deixa-se cair de novo na sua cadeira de lona, rindo; rindo de si, de nós, da vida que passou num instante e nada deixou de palpável para as gerações vindouras. E fica observando-nos, com os seus míopes e vermelhos olhos, até desaparecermos na biblioteca do Centro Árabe Líbio

E assim também as nossas vidas passaram… com os nossos sucessivos governos cuspindo para cima, sem força real… sabíamos nós, aos treze anos - lendo livros de ciência e de história, com os nossos espíritos livres, aprendendo, questionando, descobrindo afinal que nem tudo que vem nos livros são verdades; querendo falar com o escritor e lhe explicar como ele esta errado; aprendendo, aprendendo, ao lado da casa desse venerável homem - o que o destino nos reservava?

Os erros, as aceitações tácitas de mentiras e deturpações da realidade, comendo “mango de terra” dizendo que era “de saralhon”; tentar transformar o mal em bem, e acreditar nisso; assistir a baptizados de bonecas - com música de verdade, em gira-discos de pilha, comendo doce de papaia sem açúcar, bolos “de água” em vez de “de leite” por falta de leite, sumos de CICER e larangina C, e cerveja pampa, quente, por falta de frigorífico, comendo ovos em pó, bebendo sopa em pó - como se fosse baptizado de criança viva, leva sempre a um único caminho, o caminho da perdição. Os erros foram de todos nós, crianças de cinco e de treze anos, do velho Demba de noventa e cinco; até de nha Sirá, pobre mulher, papel “djagassido cu balanata mané”, que apenas vendia mancara ilado e cunguto, no beco de meteorologia, onde passávamos, eu, meu irmão e meu pai, ao fim da tarde para ir a “casa de palha” (como dizia eu na minha inocência de cinco anos) onde vivia a sua mãe, atrás da hoje, Avenida do Brasil.

Dentro dessa palhota de dois quartos, eu ainda com leite nos lábios, debruçava na sua cama e olhava a cara tranquila de Nana, minha pobre avó e lhe perguntava perguntas sem resposta. Ela já doente e alquebrada pela rude vida que teve, na ponta (no Progresso) não podia se levantar, mas mesmo assim oferecia-me mangas e água fresca do puti vermelho acastanhado, que coberto com um prato de alumínio brilhante, ficava ao lado da sua cama.

Mariana Simas - de etnia papel, misturada com”guintes di tchom francês”, originária de Biombo, levada para os confins do Oio, para ser segunda mulher do meu avó paterno, para dali empurrada pela Luta Armada de Cabral, vir acabar neste sítio, neste bairro que lhe é tão estranho - como tantos e tantos guineenses viveu a sua vida, pobre e sofrida, sem assistir o dia da Independência. Mas pelo menos assim morreu sem culpa de nada…

O que é feito dessa palhota? O que é feito dessa criança que amava o mundo e os homens, mais do “que é dado amar”? “Mais do que é permitido” nas palavras de Nhu Dôco, pobre velho cabo-verdiano, destroço humano, pedaço solto de um mundo que desapareceu e o deixou desamparado e abandonado, sem família, sem ninguém neste mundo, que vivia numa barraca de papelão castanho, construído no quintal do meu avó, que maravilhou a minha infância com histórias de magia, de bruxedos, feiticeiros e feiticeiras; de cassiças “com os pés voltados para trás”, dançando no meio das pessoas, de fogareiros voadores, de fogos nos cruzamentos nas madrugadas quentes, de formosas meninas defuntas, pedindo boleia nos caminhos da cidade que dormia, que não me deixavam dormir a noite; com medo de me virem buscar depois de apagarem a luz e eu fechar os olhos…

Há três anos fui a Bissau, e com a minha velha mãe, fui ao nosso cemitério de Bissau, onde encontrei a capela totalmente em ruínas, sem telhado, com a chuva miúda caindo dentro dela, tirei fotos dela, pois foi chocante para mim que isso acontecesse, pois sendo um lugar sagrado onde foi rezada a missa do ultimo adeus a tanta gente nossa. E assim tirei fotos do túmulo da Nana, das minhas pequenas irmãs falecidas há muito, e de todos os meus avós, tios e tias (até daquela tia do meu pai que fugiu de Angola com trinta e tal anos, para não ser morta pelo marido ciumento e vir morrer tão cedo em Bissau). Tirava as fotos com medo de um dia chegar e a nada encontrar, como a capela destruída. Mas tiro das ruas, portos, casas, o mar, o horizonte, pessoas anónimas, para ter algo que seja perene, mesmo que apenas no papel, para que um dia a minha filha, que nunca conheceu meu pai nem meu país, saiba que nasci no sítio mais lindo do mundo, na terra mais maravilhosa que Deus fez, mas que como não valho nada, nada fiz por ela; pois como a pobre nha Sirá, também sou culpado; imensamente culpado; culpado até a eternidade. Pois como vós, nasci e fui criado para um dia fazer algo pela nossa terra, e não para estar aqui a escrever coisas que ninguém quer saber…

 

Fernando Teixeira Simas

 

 

SÉTIMO INSTANTE

…OS MITOS QUE NÃO DESTRUIREI

 

                                                                       “na cumsada nô odja bu curpo                                                                                              mati … ki kurpo ku bu n`terga pa                                                                                      nó pudi cabanta…na cansera ku bu                                                                                    mostra bu balur… na bardadi ku                                                                                   bu fidjus  kunsi dur

                                                                                                         

                                                                                                                      J. C. Schwarz

                                              

 

 * Licenciado em Arquitectura (Rússia 1991). Pós graduado em Urbanismo (ISCTE)

 

 

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