Carnaval Guineense ou Alienação Cultural? (Ponto de Vista)
Rui Jorge da Conceição Gomes Semedo 02.03.2012 Se hoje orgulha-nos recordar a célebre declaração político-filosófica de Amílcar Cabral – “nossa luta é um ato de cultura”, – não é menos importante nesta mesma linha reconhecer que preservar a nossa identidade cultural é um ato de soberania e de cidadania.A Guiné-Bissau é conhecida e reconhecida além fronteiras como um mosaico cultural caracterizado, sobretudo, pela expressividade étnica e saberes seculares associados, que orientam práticas peculiares de cada grupo, mas que se convergem numa única imagem identitária nacional. E é exatamente, a meu ver, a partir de duas grandes manifestações culturais homogéneas, que se aglutina o carácter heterogéneo da sociedade guineense – o crioulo e o carnaval. Mas nesta reflexão, reservo-me à oportunidade de apenas falar sobre o carnaval. Esta manifestação representa, nos tempos que já lá vão, um excepcional momento de partilha e de diálogo inter e intracultural de convívio da bela cultura guineense. Uma festa de multidão folclórica e do povo que abraça e enche as ruas das nossas cidades com vestimentas tradicionais, cantigas e danças sob o ritmo de sikó, tambor, bombolom, balafon, corá, nhanheru, tina e rapicar de palmas que parece uma autêntica exaltação do hino da cultura nacional. Digo simplesmente, um momento único do hastear da bandeira identitária da guinendadi, que procura expor aquilo que representa o património da alma guineense – nossa forma e modo coletivo de ser e de estar. Mal ou bem iniciava o ano, despontava natural e paulatinamente o ambiente carnavalesco. Os jovens freneticamente se movimentavam em direção às obras de construção civil à procura de embalagens de saco de cimento e, à beira-mar, à procura de lama, usada nas criatividades artísticas de confeção de n`turudu, vulgarmente conhecidos por máscara. Enquanto os homens se dedicavam à confeção de n`turudu, as mulheres concentravam-se na produção de artigos de decoração corporal como manpororo, conta (missangas), lenços, panos, bandas, pote, sindjadura, acata, saia bijagó, cascabelo, etc. E isso proporcionava uma saudável e apaixonante vida cultural onde participavam pessoas de todas as faixas etárias, de prentchentchés, adolescentes, jovens, mulheres, homens até às velhas e velhos e, obviamente, cada um com a missão e responsabilidade cultural de dar a sua contribuição e conhecimento na organização e dinamização da atividade. Se nos tempos recuados o carnaval tinha todo esse brilho, hoje a sua manifestação causa nostalgia a muitos guineenses que tiveram a honra de viver momentos de glória de um dos maiores eventos culturais do país. É verdade que a sociedade não é estática e está sujeita a alterações estruturais e, por conseguinte, as mudanças, desde que não sejam agressivas ao tecido social, devem ser aceites e entendidas como um processo normal. Mas isso, não é o caso do carnaval guineense, por isso, as observações que iremos fazer não visam refutar a peculiaridade social da mudança, mas tão somente, abordar ações que põem em risco uma progressão positiva de valores que nos são comuns. As duas últimas décadas registaram um período de descaracterização e perda de identidade do carnaval guineense. Mas é sobretudo, a partir de forma distorcida de mercantilizar o carnaval, no fogo cruzado do marketing empresarial, principalmente, de redes móveis de telefones e de produtos chineses que esta nobre manifestação do povo quedou-se no desalento da desgraça cultural. Aliás, uma autêntica “orangecização” e “chinecização” do carnaval. Artigos importados industrializados substituíram de forma violenta as tradicionais vestimentas e mascaras manufaturadas, portadoras de uma identidade, simbologia e beleza genuinamente guineense. Vale dizer que fui provocado por alguém que ama perdidamente esta Terra e que concebe a cultura, a biodiversidade e a cidadania como sua maior riqueza, a passear e refletir sobre a perda do legado identitário do carnaval que herdamos dos nossos avós, pais e tios. Durante a minha caminhada pela Avenida Combatentes de Liberdade da Pátria e algumas artérias da cidade de Bissau, tal como a pessoa que me incitou a refletir a situação, fiquei profundamente consternado pelo horror que a força da alienação do capital está causar no que temos de mais precioso – que é a nossa identidade cultural. Só quem estava a participar no desfile é que trajava, mais ou menos a rigor, o resto era uma descaracterização total sem gosto nem magia. A avenida parecia uma autêntica passarela de moda que me fazia pensar que era o momento “Bissau Fashion Week”. Contava-se pelos dedos pessoas que levaram pelas avenidas trajes e manifestações dignos do evento que era festejado. Aliás, quando vi uma senhora da terceira idade trajada de “Ropon e pano preto tindjidu” me emocionei, e disse para mim mesmo – “ainda há sobreviventes no meio de cadáveres culturais”. Nem de perto nem de longe podia-se ver um n`turudu “boca di baca” ou um “n`tchó-lóló medi iagu” que são peças clássicas do nosso carnaval a desfilarem. Tudo parecia estranho e sem atrativo a quem vem conhecer a festa da identidade nacional guineense. É verdade que não é de hoje que se iniciou a decadência do carnaval guineense, o fenómeno das barracas surgido nos primórdios da década de 90 pode ser visto como ponto de partida e, posteriormente, a roupagem alegórica de Orange e de produtos chineses reforçaram a descaraterização e o sentido da festa ficou mais banalizado. Os valores simbólicos das nossas manifestações culturais, entre os quais, os do carnaval, devem ser vistos e concebidos com orgulho e patriotismo. Pois, é a partir deles que somos vistos e a nossa existência reconhecida pelo outro como diferente. Nossas manifestações culturais são parte constituinte de cada um de nós e de todos, porém não podemos deixá-las desaparecer. Nesse sentido, apelo um envolvimento responsável dos homens da cultura, dos cidadãos e de parceiros culturais na preservação e valorização do nosso património.
VAMOS CONTINUAR A TRABALHAR!
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