Direito de asilo e mutilação genital feminina na União Europeia

 

Artigo de opinião de Emma Bonino, eurodeputada italiana
Emma Bonino
18.05.2003
O problema da prática da mutilação genital feminina (MGF) não está apenas confinado ao continente africano, mas faz já parte da realidade europeia, em consequência directa do fenómeno da imigração, que, no decurso dos anos, conheceu um progressivo aumento também nas áreas onde tal prática está radicada.

Este fenómeno deve induzir os países da União Europeia (UE) a tomarem plena consciência da natureza e dimensão do problema e a porem em prática as políticas necessárias para combater esta prática violenta e desumana, mas ainda muito enraizada em certas tradições.
A via repressiva, manifestada através da legislação específica, ainda que desejável, não é, todavia, suficiente. É preciso igualmente oferecer um apoio concreto, por um lado, às mulheres que são vítimas da mutilação dos seus órgãos genitais e, por outro, à luta das organizações que, em África, como na Europa, se batem pelo combate à ignorância e promovem e apoiam as mudanças culturais.
Uma das maneiras eficazes para oferecer apoio e protecção às possíveis vítimas da MGF é, seguramente, a concessão do direito de asilo. De resto, o próprio Parlamento Europeu — que adoptou, em finais de 2001, um projecto de resolução apresentado em 2000 pelos deputados do Partido Radical italiano e aprovado pela maioria absoluta dos eurodeputados — propôs considerar o risco de alguém poder ser vítima de tal prática como motivo suficiente para a concessão do direito de asilo por parte dos países da UE.
O problema é que actualmente não existe uma definição de "refugiado" a nível da UE, mesmo que o comissário António Vitorino [responsável pela Justiça e pelos Assuntos Internos], com a sua proposta de directiva, de Setembro de 2001, tente colmatar esta lacuna, como de resto requer o artigo 63º do Tratado CE, que prevê que até 2004 o Conselho adopte normas mínimas relativas à atribuição do estatuto de refugiado aos cidadãos de países terceiros.
Vale hoje o que estabeleceu a Convenção de Genebra de 1951 sobre os refugiados, na qual se apoia a UE, segundo a qual o asilo será concedido se existir o "receio fundado de perseguição por motivos atentatórios à raça, à religião, à nacionalidade, à opinião pública ou à pertença a um grupo social determinado".
Ora, não deixa de ser estranho que uma sistemática violação do direito à integridade física como a que deriva da MGF não possa ser qualificada como "perseguição" e que não se possam considerar as mulheres como um "grupo social" (como indicou também o Alto Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados, ACNUR). Sobre esta base existem já casos precedentes de concessão do direito de asilo em França e na Alemanha. Para evitar, porém, interpretações restritivas é necessário que a UE e os Estados-membros modifiquem, como for necessário, as próprias leis, para que se possa oferecer, sem ambiguidades, protecção a estas mulheres.
E eis aqui outra frente: a das campanhas para erradicar a MGF de algumas tradições. Numerosas organizações em África e na Europa estão empenhadas nesta difícil batalha. Com o apoio da Comissão, a No Peace Without Justice e a AIDOS promoveram o projecto STOP FGM (www.stopfgm.org), que tem como objectivo fornecer apoio — não apenas material mas também jurídico — às ONGs e aos Governos empenhados na luta contra a mutilação sexual. Entre os dias 21 e 23 de Junho vão reunir-se no Cairo — sob o patrocínio do National Council for Childhood and Motherhood e o apoio da Egyptian Society for the Prevention of Harmful Practices to Woman and Child — activistas e ministros dos países vizinhos a fim de identificarem as melhores políticas de combate à MGF.

Fonte: PÚBLICO.PT