DOSSIER PÚBLICO.PT SOBRE A MUTILAÇÃO GENITAL FEMININA - SOFIA BRANCO

 

Mariama recorda excisão

Na primeira pessoa

 
Sofia Branco
01.08.2002
É com revolta que Mariama [nome pelo qual preferiu ser identificada] recua 41 anos na memória que tanto se esforça por apagar. Guineense, de etnia fula, muçulmana de educação, Mariama, que se opõe à mutilação genital feminina (MGF), é vista como uma "degenerada" pela família. Em conversa com o PUBLICO.PT, a guineense residente em Portugal aceitou contar como travou conhecimento com a MGF. Aos nove anos de idade, Mariama só pensava quando chegaria a vez do seu fanado. A espera devia-se ao medo? Pelo contrário. Mariama queria muito passar a mulherzinha. "Não me sentia feliz. Sentia-me impura. Todas as meninas se sentem assim e querem realizar a cerimónia", reconhece. Do ritual propriamente dito refere muito pouco, admitindo que se trata de "um segredo" e dizendo lembrar-se apenas de ter perdido "a noção do tempo". "Devo lá ter estado três semanas ou um mês". O fanado — tanto o masculino como o feminino — é uma cerimónia que pode durar, dependendo das tribos, semanas ou vários meses, e envolve a transmissão de uma série de conhecimentos dos mais velhos para os mais novos. O ritual termina com a realização da excisão feminina e da circuncisão masculina. Normalmente, o fanado decorre em período de férias escolares, entre Julho e Setembro.

Mariama foi levada pela mãe para casa de uma tia anciã para receber ensinamentos para a vida adulta. O seu fanado foi atípico, no sentido em que só o partilhou com três primas, quando a cerimónia costuma fazer-se com muito mais meninas. Como o seu pai era o "soba" [espécie de líder] da tribo fula na sua aldeia, teve direito a um "fanado de princesinha".

"Não sabia o que iam fazer-me, fui apanhada naquela situação, foi tudo muito rápido e depois encheram-me de prendas... Senti-me normal, igual às outras" mulheres, recorda. "Depois do fanado, já não podemos andar nuas — as crianças andam muito nuas em África — nem brincar com as pessoas que ainda não passaram pelo ritual. Aprendem-se canções, mas não as podemos cantar cá fora nem perto de meninas que ainda não fizeram a cerimónia", conta.

Mariama admite que não teria entrado em ruptura com a tradição se não tivesse estudado. "Como tinha boas notas e a minha mãe não tinha filhos rapazes, foram-me empurrando e fui para a capital para continuar a estudar". Em Bissau, era a única muçulmana a estudar na sua escola e começou a conviver com raparigas de etnias influenciadas pelas religiões católica e protestante, oriundas da capital, que depressa desvirtuaram o fanado. "Tu não vais sentir nada quando estiveres com um homem, porque isso que te fizeram tirou-te a sensibilidade e o prazer sexual, diziam-me". Inicialmente, Mariama recusou-se a acreditar. Mas, em troca de confidências, reparou que elas "tinham uma informação completamente diferente" da dela e que, ao contrário do que pensava, ela é que era "a anormal" afinal. "A coisa complicou-se ainda mais quando comecei a namorar. Quando tive relações sexuais fiquei traumatizada, porque não senti nada. Fechei-me em copas".

Apercebendo-se de que, provavelmente, só uma pessoa com a mesma educação e religião do que ela poderia compreendê-la, resolveu casar-se com um fula, com quem veio para Portugal estudar e trabalhar e de quem teve dois filhos.

"Acordei aos 33 anos de idade, comecei a ler e a informar-me [sobre a MGF], comecei a viver". Há doze anos em Portugal, sem nunca ter voltado à Guiné, Mariama divorciou-se, entrou em ruptura com a religião muçulmana e cortou o cordão umbilical com o país onde perdeu a sua feminilidade. Do ritual diz agora que é um acto "bárbaro" e "impensável" e a sua voz estremece ao recordar ter visto, quando estava em Bissau, mulheres adultas de outras etnias, algumas já com filhos, submeterem-se à excisão "só porque se queriam casar com muçulmanos".

Com uma filha de 24 anos, Mariama teve de inventar uma história para contar à mãe e à ex-sogra: "Disse-lhes que tinha sido excisada num hospital em Portugal".

 

O holocausto silencioso das mulheres a quem continuam a extrair o clítoris

 


Jean-Marc Boujou/AP (arquivo)


Sofia Branco  
in Público, Domingo, 4 de Agosto de 2002

Mesquita de Lisboa, duas da tarde de uma sexta-feira, dia sagrado para os muçulmanos. Envergando uma túnica larga em tons de amarelo e preto que deixa por vezes ver a nudez interior, a fanateca [nome guineense dado à mulher que pratica a excisão] diz de imediato que não está disposta a revelar nem denunciar o ritual feminino que implica o corte do clítoris. Fala da "vergonha" que seria um filho seu ver a prática exposta num jornal e, com isso, perder o carácter secreto que lhe está ligado.

Exprimindo-se em fula [dialecto da tribo com o mesmo nome, uma das etnias muçulmanas mais expressivas da Guiné] e fugindo ao olhar da jornalista, a septuagenária sem nome lá vai dizendo que "é uma coisa dolorosa" e que se pode "salvar ou morrer".

Zangada e desconfiada, faz questão de deixar bem claro que só está ali a conversar porque o líder da comunidade guineense muçulmana em Portugal, que fez as apresentações e teve de assegurar a tradução do diálogo, lhe tinha pedido.

Há 15 anos em Lisboa, a fanateca assume ter feito excisões na Guiné, mas garante que em Portugal "ainda" ninguém lhe pediu e recusa-se a "pôr o segredo das mulheres a nu".

A dada altura chora, porque já se está a "falar há tempo demais" sobre o assunto. No final da conversa é-lhe colocada uma hipótese que a faz mudar radicalmente de atitude. "Se eu me apaixonasse por um guineense muçulmano e ele quisesse casar comigo, pedindo-me para ser excisada, e eu aceitasse o pedido, poderia fazê-lo em Portugal?", questiona a jornalista. Brilho nos olhos e resposta afirmativa. Não faltaria quem fizesse. Segue-se a advertência de que a intervenção implica sofrimento, porque é feita "sem anestesia", e o conselho de se fazer acompanhar por quatro mulheres, "para a segurarem". Fora isso, era só o futuro marido "dar a ordem" e, obviamente, pagar o preço da excisadora.

A conversa termina já a mesquita se esvaziou de gente. O líder da comunidade muçulmana da Guiné, Manso Baldé, que antes tinha confirmado ao PÚBLICO.PT que a mutilação genital feminina (MGF) era praticada em Portugal e que apresentou a septuagenária como sendo uma fanateca, despede-se perguntando à jornalista se percebeu que a anciã "não quis contar" tudo o que sabia. Ainda há tempo para mais uma troca de palavras com a fanateca. Segura as mãos da jornalista e insiste: "Então, sempre quer fazer?".

Duas filhas morreram depois da excisão

Nova tentativa. Quinta do Mocho num dia de sol. Tchambu recebe o PUBLICO.PT em sua casa. Guineense, muçulmana e excisada, não tem dúvidas em dizer que a MGF "só prejudica a mulher". Originária da tribo biafada, Tchambu não conseguiu evitar que a filha mais velha também fosse excisada, por pressão da avó, mas impediu que a mais nova tivesse o mesmo destino.

Segundo Tchambu, enquanto nas outras tribos o fenómeno tende a desaparecer, no caso dos fulas - a etnia do seu companheiro actual - trata-se de um ritual "indispensável e obrigatório". "Eles fazem o que viram os antepassados fazer", afirma. Tchambu já teve discussões com o marido sobre a MGF. Apesar de duas das suas filhas terem morrido na sequência do fanado - nome do ritual guineense que marca a passagem da infância à idade adulta e que inclui a circuncisão, no caso dos rapazes, e a vulgarmente chamada excisão, no caso das raparigas -, o marido continua a dizer que o ritual "é um dever para um muçulmano" e considera que as filhas "morreram em combate".

Tchambu dispõe-se a ajudar o PUBLICO.PT a encontrar outra fanateca. Recorre à irmã, que é "muito religiosa". Bobadela, no mesmo dia de sol. A irmã, mais velha, diz, num português difícil de compreender, que conhece "senhoras que fazem" e que em Portugal "manga [muitas em crioulo] meninas" já foram excisadas. Com uma neta recém-nascida, ela própria admite que levará a criança para a Guiné "para fazer lá". Dois encontros marcados com a fanateca, dois encontros adiados. "A senhora manda dizer que se quiser fazer tudo bem, mas se for para denunciar não vai falar".

"As mulheres que não são excisadas não prestam"

Sendo que na Guiné o ritual se mantém, a questão da conservação da prática no seio da comunidade residente em Portugal, na sua grande maioria concentrada em Lisboa, é inevitável. O PUBLICO.PT conversou com vários guineenses, muçulmanos e não muçulmanos, e a resposta foi quase sempre afirmativa, incluindo invariavelmente o "já ouvi falar de casos".

Três líderes da comunidade muçulmana guineense em Portugal, dois fulas e um mandinga, não hesitaram em confirmar a manutenção da prática. Durante um encontro com o PUBLICO.PT, também na mesquita de Lisboa, os três membros da Associação de Muçulmanos Naturais da Guiné garantiram que a comunidade residente em Portugal "ainda faz o fanado", masculino e feminino. Com uma diferença: enquanto os rapazes são circuncidados nos hospitais, entre os nove e dez anos de idade, as meninas são excisadas em casa, recorrendo-se a uma anciã e normalmente ainda bebés, "com dois ou três anos, porque é mais fácil nessa altura".

Admitindo que a festa associada ao ritual vai-se perdendo e que a tradição está "actualmente reduzida à excisão", os três responsáveis falaram da excisão feminina com a naturalidade com que se fala de outra tradição qualquer, reconhecendo, no entanto, que se trata de "uma cerimónia muito delicada" e que pode, quando mal feita, conduzir à morte.

Muitas das vezes, quando algo corre mal no procedimento, costuma culpar-se a menina, porque já era impura, ou os pais da menina, porque não a educaram na pureza, ou atribui-se o fracasso a uma qualquer intervenção divina.

Admitindo o carácter "secreto" da prática, os líderes muçulmanos adiantaram desde logo que as excisadoras "têm medo de ser identificadas, agora que há muitas organizações por aí que combatem" a MGF.

"Os usos e costumes não devem ser abandonados. Há uma tendência [na Europa] para monopolizar a civilização e cultura dos outros. Não deviam pôr em causa [os nossos valores], nem dizer 'A nossa civilização é mais bonita do que a vossa'", criticou Aladje Mamadu Dumbiá, um dos membros da associação. "Não é crime, não pode ser crime, porque é a nossa tradição. É um símbolo da nossa identidade, uma forma de continuarmos a saber quem somos, fora do nosso país", defendeu.

"Para nós, as mulheres que não são excisadas não prestam", explicaram os responsáveis. Na Guiné, utilizam-se até duas denominações diferentes para os excisados e não excisados. Aos primeiros, chama-se "lambé", que quer dizer "a pessoa que já sabe", aos outros chama-se "blufo".

O argumento de Abraão

Os responsáveis lembraram ainda que "há uma história" por trás da MGF. Conta-se que Abraão (ou Ibrahim, em árabe) casou com a bela mas estéril Sara. Foi ela própria que lhe sugeriu que tomasse outra mulher, que lhe desse descendentes. Abraão escolheu Agar, a escrava egípcia, que engravidou. Existem várias versões do fim da história, mas a que interessa para o caso conta que Sara, apercebendo-se do interesse crescente de Abraão por Agar, virou a sua ira contra a escrava, mutilando o seu órgão sexual. A este episódio relacionado com o profeta e patriarca das três religiões monoteístas, as fontes acrescentaram ainda que, durante os períodos de guerra, quando os homens saíam para combater, "era preciso tornar as mulheres mais frias, para que não procurassem sexo o tempo todo".

Reconhecendo a eventualidade de graves consequências para a saúde das mulheres, a MGF é vista por estes três homens como algo que "não é mau em si" e que "até tem aspectos positivos", nomeadamente o de obrigar à fidelidade ao marido, "evitando doenças, porque as mulheres se contêm para ter relações sexuais" e tendem a "conservar-se". Apesar disso, a prática "torna a mulher sempre higiénica". No entanto, realçam, a excisão feminina "não é uma obrigação".

Também o presidente da Associação Guineense de Solidariedade Social, Fernando Ká, disse já ter ouvido falar de "casos" de MGF no seio da comunidade guineense muçulmana residente em Portugal, mas não dispor de detalhes. Achando "possível" que a excisão feminina seja praticada em Portugal, Fernando Ká sublinha que não o será "em grande escala", mas apenas "por um número pouco significativo de pessoas". No entanto, confirmou, alguns pais levam as filhas para a Guiné para serem excisadas.

Por seu lado, Manso Baldé, o presidente da Associação de Muçulmanos Naturais da Guiné, sublinhou que essa opção é "muito dispendiosa" e garantiu que "é mais frequente" fazer-se em Portugal. Virgínia, uma enfermeira que há muito combate a MGF na Guiné, mais conhecida como "tia Bitcho", adiantou ainda que os guineenses muçulmanos a residir em Portugal que tenham posses "mandam buscar" uma fanateca no país de origem, pagando-lhe as despesas para vir a Lisboa.

Confirmando que "as mulheres guineenses muçulmanas a viver em Portugal são todas excisadas", Fernando Ká afirmou acreditar que "a geração mais nova já não está tão susceptível à prática". Esta ideia foi também partilhada pelos membros da Associação de Muçulmanos Naturais da Guiné, que afirmam que o ritual "tem tendência para diminuir". No entanto, ninguém quer ser "o dessacralizador do sagrado", confessaram.

 

Apenas doze países africanos têm leis ou recomendações que proíbem a MGF

 

Onde acaba a tradição e começa a lei?

Sofia Branco
04.08.2002
Com a imigração, o fenómeno da mutilação genital feminina (MGF), que se produzia essencialmente no longínquo continente africano, começou a aparecer um pouco por todo o Ocidente.

Países como a Austrália, Noruega, Reino Unido, França, Suécia, EUA e Canadá, onde as comunidades imigrantes originárias de países onde a excisão feminina é praticada são bastante significativas, já adoptaram leis específicas contra a prática.

Em 1992, a jornalista Donu Kogbara não teve dificuldades em encontrar um médico em Londres que aceitasse remover-lhe o clítoris, embora a prática seja ilegal no Reino Unido desde a aprovação da Lei da Proibição da Circuncisão Feminina, em 1985. A repórter precisou apenas de dizer que o seu noivo muçulmano insistia que ela fosse excisada antes de se casarem.

Em França, pelo menos 19 pessoas já foram condenadas por terem praticado ou ajudado à prática da MGF.

Dos 28 países que mantêm o ritual em África, apenas doze têm leis ou recomendações que proíbem a prática, de acordo com dados do Fundo para a População das Nações Unidas (UNFPA).

O Sudão foi o primeiro Estado africano a interditar o ritual, em 1946, mas, na altura, a lei proibia a infibulação, a pior forma de MGF, mas permitia a suna, ou seja, o corte "simbólico" do clítoris. O novo Código Penal, datado de 1993, não faz qualquer referência à MGF, deixando por clarificar o seu estatuto.

Situação idêntica ocorre no Egipto, onde um decreto presidencial de 1958 proibiu a excisão. Em 1996, o Ministério da Saúde acabou com as licenças para os excisadores, interditando a actividade. Um ano depois, um tribunal revogou a decisão.

As leis do Gana, Guiné-Conacri, Burkina Faso, República Centro-Africana, Costa do Marfim, Djibuti, Senegal, Tanzânia e Togo também condenam a MGF, com penas desde os seis meses de reclusão à prisão perpétua. No Quénia, um decreto presidencial desaconselha a prática. Até Junho de 2000, apenas ocorreram detenções no Burkina Faso, Gana, Egipto e Senegal.

Na Guiné-Bissau, uma proposta de interdição da MGF apresentada em 1995 foi rejeitada. No entanto, o Parlamento aprovou a recomendação de julgar os responsáveis pela prática se esta resultasse na morte das excisadas. Uma nova lei está "em cima da mesa" no Parlamento. "Alguns políticos estão muito interessados em que ela seja aprovada urgentemente", adiantou Paula da Costa, que integra uma organização não governamental que combate o fenómeno na ex-colónia portuguesa.

Por mais importantes que sejam, na realidade estas leis não têm servido de muito, já que "entre a lei e a sua aplicação há um grande abismo em todos os países do mundo", realça Paula da Costa, alertando ainda que a iminência da lei na Guiné-Bissau tem tido "efeitos perversos". Muitos pais têm excisado as suas filhas apenas com dias ou meses, com medo que a lei seja aprovada.

Para Paula da Costa, as leis não terão qualquer efeito se não forem acompanhadas por campanhas educativas e sanitárias sobre os perigos e consequências da prática.

A Amnistia Internacional adverte que "a MGF é uma prática profundamente arreigada nas tradições de certo número de sociedades", defendendo, por isso, a adopção de "uma postura prudente e sensível, que a situe no contexto mais amplo da violência e da discriminação da mulher nas diversas culturas e que respeite a primazia do papel dos agentes de base na sua erradicação".

Num relatório sobre a MGF, a Organização Mundial de Saúde aconselha os "países onde a mutilação genital feminina não é uma prática tradicional" a estarem "alerta" face à possibilidade de o ritual "ser praticado por comunidades imigrantes".

 

Tradição não legitima acto

Excisão é crime em Portugal

 

Sofia Branco

04.08.2002
Perante a possibilidade de a MGF ser praticada em Portugal, Paula Ribeiro de Faria, professora de Direito Penal na Universidade Católica do Porto, não hesitou em declarar que a prática constitui uma ofensa à integridade física grave, punível com pena de dois a dez anos de prisão, não se podendo recorrer à justificação de que se trata de uma tradição.

Embora defenda que "um costume cultural ou religioso que passa pela prática de um crime" não pode "fazer recuar a ilicitude da conduta", a jurista admitiu, no entanto, que pode discutir-se "o peso desse costume à luz da ponderação de motivos e fins". Ou seja, Paula Ribeiro de Faria considera "ser possível a exclusão da culpa do agente se este não se encontrar consciente da ilicitude do facto e se essa falta de consciência não lhe for censurável". No entanto, no caso da comunidade guineense residente em Portugal "há algum tempo", é de afastar a possibilidade de determinados elementos dessa comunidade desconhecerem "o sentido da lei que vigora entre nós" e que proíbe expressamente "tais formas de conduta".

A jurista colocou ainda em questão a relevância de um eventual consentimento da mulher — nos casos de a excisada ter mais de 14 anos, idade mínima prevista no Código Penal português para o consentimento —, devido à "gravidade e irreversibilidade da ofensa em causa". Ao mesmo tempo, Paula Ribeiro de Faria disse duvidar da "liberdade de um consentimento prestado pela mulher para uma lesão desta natureza, tendo em conta a intensidade das pressões que se podem fazer sentir sobre ela para prestar esse consentimento".

A ser realizada, a prática abrange crianças, o que leva Paula Ribeiro de Faria a acrescentar que se deverá ter em conta a Lei nº 147/99, de 1 de Setembro, relativa à protecção das crianças e jovens em risco, e que legitima a intervenção do Estado sempre que exista o perigo de uma prática que ponha em causa a integridade física ou psíquica da criança.

 

 

Portugal nega asilo a queniana que fugiu à mutilação genital feminina

Pedido já foi rejeitado duas vezes

 

Sofia Branco
18.05.2003
Sem saber sequer onde ficava Portugal, cuja embaixada em Nairobi apenas foi a mais rápida em conceder-lhe o visto de turismo que pretendia, e sem falar uma palavra de português, Susan chegou ao Aeroporto da Portela na noite de 20 de Junho do ano passado, com 38 anos, 70 euros no bolso e ainda a pensar se teria tomado a decisão certa.

Para trás ficaram os pais e um filho menor. Mas, para Susan, a opção era ficar no Quénia e ser sujeita à MGF ou fugir do país de origem e manter intocados os seus órgãos genitais. Susan escolheu a fuga e não se arrepende, embora esteja agora carregada de desilusão face a uma Europa que ela "pensava que protegia os direitos humanos".

Susan aceitou contar ao PUBLICO.PT a sua história, embora tenha, para tal, escolhido um nome fictício.
Tudo começou com a morte do marido. Segundo uma tradição local ancestral — comum em algumas tribos africanas —, a viúva tem de casar um dos irmãos do falecido esposo. Ora, Susan não amava o cunhado e, mais importante do que isso, sabia que ele pertencia a uma seita fanática do Quénia chamada mungiki (ver caixa), que, entre outras perseguições às mulheres, defende a MGF — prática incluída nos rituais de iniciação à vida adulta de muitos países africanos, que, podendo assumir diversas formas, passa sempre por alguma forma de amputação dos genitais femininos.

A excisão é um "acto satânico"

Em conversa num café de Lisboa, Susan explicou, usando o inglês como língua franca (que fala, aliás, bastante bem), que essa tradição de casar com um cunhado é "muito antiga", mas não se coaduna com a educação que recebeu. "É suposto escolher-se com quem casar. Como se pode casar com alguém que não se ama?", questiona, sem esperar resposta. Disse ao cunhado que não queria desposá-lo, até porque ainda "estava de luto e deprimida" com a morte do marido. Algumas ameaças, insultos e ofensas corporais depois, uma amiga casada com um membro dos mungiki disse-lhe que o cunhado pretendia obrigá-la a casar-se com ele e, com a ajuda de um grupo de membros da seita, mutilá-la à força.

Susan já tinha lido sobre a actuação dos mungiki nos jornais nacionais e teve medo. "Não podia ser excisada, preciso do meu corpo, ele é a minha vida. Preferia morrer!". Susan conhecia mulheres excisadas que "aceitaram a mutilação por ser tradição, mas que lamentaram depois". Cristã evangelista, Susan não tem dúvidas: "É um acto satânico, que não vem na Bíblia, é uma doutrina inventada pelas pessoas". No entanto, reconhece, os kukuyu, a sua tribo, acreditam que a MGF faz com que as mulheres "percam o desejo sexual e permaneçam seguras". "Precisamos do clítoris, Deus colocou-o ali por alguma razão", contrapõe, convicta de que escapou por pouco à perda da sua feminilidade.
Além disso, Susan sabe que os instrumentos usados na prática não são esterilizados e tem medo da sida, num país onde a epidemia afecta 14 por cento da população.

A fuga como primeira viagem

Começou a pensar em fugir, "a reunir algumas coisas e documentos". Pára um momento. Suspira, trava uma lágrima e tenta recuperar o sorriso que traz normalmente na tez mulata. "Ainda está tudo muito fresco na minha memória...". O rosto entristece e contorce-se em esgares à medida que vai narrando a fuga. Optou por escapar de Kimunyu, onde vivia, durante a noite, para que ninguém desse conta. Pegou no filho e "no que podia", desceu e subiu montes, pernoitou na floresta escura, reatou caminho quando o sol despontou, desceu e subiu mais montes até chegar finalmente a Thakwa, aldeia onde vivem os seus pais. Na mente, a ideia fixa de recusar submeter-se à "humilhação" de ser mutilada.

Ficou algum tempo em casa dos pais, durante o qual planeou a fuga. A mãe aconselhou-a a aceitar casar-se com o cunhado, a esperar para ver o que ia acontecer. "Não podia esperar mais. Cheguei à conclusão de que era melhor perder tudo e começar do zero".

Susan preparava-se psicologicamente para estrear o seu passaporte e fazer a primeira viagem da sua vida. Contactou "um agente" e deu-lhe dinheiro (4000 shillings/49 euros) para obter um visto de turismo de três meses, que lhe permitiria entrar legalmente em Portugal. Conseguiu-o em Abril, mas não tinha ainda dinheiro para o voo, razão pela qual acabaria por sair do país apenas dois meses depois. "Fiquei desesperada, mas acabei por vender alguns dos meus bens e arranjar dinheiro".

A chegada à Europa das desilusões

Nairobi, Cairo, Lisboa. Susan deixou a África do seu coração e aterrou em Lisboa. Durante o voo conheceu um guineense, que acabaria por ajudá-la, dando-lhe guarida no apartamento que partilhava com outros dois homens. Susan passou um mês nessa casa, cozinhando e tratando da lida doméstica. Ao mesmo tempo, foi tentando aprender umas palavras de português. Hoje, frequenta as aulas gratuitas do Conselho Português para os Refugiados (CPR) e já consegue exprimir-se em situações básicas. "A língua abriu-me os olhos. Sem comunicação não há vida", diz.

Durante um dos seus passeios pela capital, Deus enviou-lhe "um sinal": uma missionária brasileira que lhe indicou a família de uma outra religiosa angolana, com quem poderia ir viver. É com essa família da Amadora que Susan vive actualmente. No entanto, embora consciente da sorte que teve desde que está em Portugal, Susan, agora com 39 anos, continua a estar dependente da ajuda dos outros e sente que perdeu a autonomia e a liberdade. "Não tenho dinheiro para comprar as coisas que quero. Preciso de comer, não durmo onde me apetece dormir, tomo banho quando há gás e quando não há não tomo, só posso sair de casa se tiver uma razão. Não sou livre de todo". É como se não existisse, sem trabalho, ilegal e sem saber o que esperar de uma justiça que tarda em anunciar o veredicto final.

E se a expulsarem? Abana a cabeça como que a afastar esse pensamento. Encolhe os ombros entre a opção de regressar, de ficar ilegal em Portugal ou de tentar obter asilo noutro país.
À excepção do CPR, das autoridades portuguesas, do namorado sul-africano que conheceu em Lisboa e, mais recentemente, do PUBLICO.PT, Susan não partilhou a sua história com ninguém, nem com as pessoas com quem vive.

Vários meses e duas recusas de asilo depois, Susan mantém a determinação e diz que não lamenta ter deixado o Quénia, porque conseguiu "o primeiro objectivo" que se propôs atingir: escapar à MGF. "Tenho esperança e fé em que vou conseguir o segundo: ficar em Portugal, em situação legal". Regressar? "Sou africana, gosto do meu país, a minha família está lá, a nossa casa é sempre a nossa casa, mas não posso voltar".

Ao mesmo tempo, é com mágoa e desilusão que fala das decisões negativas do SEF — onde foi "obrigada" a contar a sua história a um homem — e do CNR e não consegue entender como é que na Europa "onde se respeitam os direitos humanos" não acreditam no seu relato. Durante este tempo de espera tem procurado as razões. "Será porque a minha pele é negra? Não terei eu direito a conviver com gente branca? Será porque não falo português? Se fosse da Guiné-Bissau, [as autoridades] fariam um esforço maior para me compreender? Questiono-me, mas não tenho a resposta ainda".

De qualquer forma, os portugueses não sabem "o real significado da mutilação". "Se não se comer o gelado, não se pode saber se é bom. Eu já provei e digo que é bom. Quando conto a história da minha vida, sei do que estou a falar", compara. E resolveu contá-la, porque "a opinião pública pode mudar a lei, porque o povo é o Governo".

 

Projecto exclui excisão do ritual de iniciação feminina na Guiné-Bissau

 

Cortar a dor. Deixar as facas

 

Sofia Branco
16.11.2003
Em Bissaque, um dos muitos bairros de Bissau, o sol queima como só em África pode queimar. A humidade entranha-se no corpo e embacia os olhos. As gotas de suor brilham nos rostos das 215 fanadozinhos (nome dado às iniciadas) que saem da Baraca Malgóss (crioulo para barraca amarga, lugar sagrado interdito a pessoas alheias ao fanado, o ritual de iniciação).

Semelhante a muitas das habitações em redor, a Baraca Malgóss distingue-se apenas pelas esteiras colocadas em seu redor, com a altura média de uma pessoa, para impedir que olhares estranhos e impuros (leia-se não muçulmanos) contaminem as fanadozinhos que lá dentro aprendem lições para a vida adulta que agora iniciam. À saída das duas centenas de meninas, que ali passaram os dois últimos meses, um dos tocadores do djidiu (grupo de homens músicos que protege as fanadozinhos de “forças estranhas” e é a única presença masculina na barraca) queima as esteiras onde as meninas receberam as mais variadas lições, apagando vestígios de mais um fanado. O fogo remete a história para o fundo e inviolável baú dos segredos, cuidadosamente guardado pelos mais diversos e ameaçadores irãs, espíritos do animismo venerados pela generalidade das etnias guineenses, ainda que islamizadas ou cristianizadas.
Uns dias antes, sob o mesmo calor ardente, uma mancha colorida saía da Baraca Malgóss. À medida que se ia aproximando, era possível distinguir vários corpos. As “mulheres velhas”, fanatecas de profissão, que, desde tempos imemoriais, constroem as suas casas e criam os seus filhos com o dinheiro que recebem por eliminar o centro nevrálgico do prazer feminino, perscrutam o “branco”, visitante passageiro naquela terra e estrangeiro para sempre naquela cultura. Tentam ver-lhe a alma, se é que terá uma. De braços cruzados e postura desafiadora. Poucas usam as palavras. E, quando usam, não são seguramente portuguesas e nem sempre são crioulas. Após muita insistência, lá vão dizendo que conhecem pelo menos uma fanateca que costuma ir a Portugal excisar meninas. O nome é vago e o paradeiro repentinamente incerto.
Aderiram ao fanado alternativo — projecto criado há quatro anos pela Sinin Mira Nassiquê (SMN), que significa olhar o futuro, na língua étnica dos mandingas, grupo islamizado do país — e optaram por abdicar do corte (nome crioulo para a excisão) do qual as suas mães e avós fizeram profissão. “Disseram-nos que mutilar as meninas não era bom e decidimos entregar as facas”, simplifica Nima Corubum, uma das 22 fanatecas que, nos últimos dois meses, deu lições sobre a vida de adulto às meninas-crianças dos cinco aos 15 anos.
Este ano, a organização não governamental (ONG) guineense que combate a mutilação genital feminina (MGF) decidiu realizar o fanado alternativo num dos bairros periféricos de Bissau, onde, ao contrário do que se possa pensar, os modos de vida não diferem muito dos das tabancas do Interior, revelando que a urbanidade da capital guineense está circunscrita a poucas avenidas.
O fanado é um ritual de iniciação extremamente valorizado pelas comunidades guineenses islamizadas, tanto no caso dos rapazes como no caso das raparigas. Tendo como base a ideia de que "se não os podes vencer, junta-te a eles", o fanado alternativo (fanado ki kudjidu, em crioulo) pretende manter o que o rito tem de positivo, eliminando as práticas nefastas que lhe estão associadas. A excisão do clítoris é apenas a mais bárbara dessas "provas de força".


Imãs de Bissau defendem MGF


Aparte as inúmeras formas de violência exercidas sobre as crianças, na cerimónia tradicional, as fanadozinhos recebem uma educação informal, que passa por regras de comportamento, normas de respeito em relação aos mais velhos, conhecimentos do alfabeto e transmissão de segredos mágicos dos seus grupos étnicos. O projecto da SMN mantém tudo isto e introduz ainda algumas mais-valias, como os bordados e a renda, regras de higiene e cuidados básicos de saúde, nomeadamente sobre a sida e o paludismo, e formação sobre os direitos das crianças.
No entanto, não foi com agrado que a comunidade de Bissaque recebeu a notícia da realização do fanado alternativo no seu bairro. A apenas algumas centenas de metros da Baraca Malgóss erigida pela SMN foi erguida uma barraca do fanado tradicional — este ano com autorização oficial concedida ao mais alto nível, já que a curta distância das eleições legislativas, marcadas para 12 de Outubro antes do golpe de Estado militar de 14 de Setembro, aconselhava a corte do eleitorado islamizado.
Os populares queriam que a SMN saísse do bairro, acusando-a de tentar "acabar com o islão", e a polícia teve que repor a ordem. Ritual ancestral, a MGF não é defendida no Alcorão, tanto que os países árabes não a praticam. Não é isto, todavia, o que pensa a maioria dos imãs das imensas mesquitas de Bissau. É pelo menos essa a garantia dada por Saya Djaló, responsável pela mesquita de Pilom (a mais importante da capital guineense), que não hesita em dizer que "o corte vem no Alcorão" e finge não ouvir quando se lhe contrapõe que o xeque da mesquita de Lisboa afirma que não.
O "homem grande" também diz desconhecer que a excisão prejudica a saúde da mulher. É com naturalidade que apoia o corte, ao mesmo tempo que, paradoxalmente, defende que se acabe com a realização do ritual no mato, porque aí "bate-se nas meninas", e que aquele passe a ser feito em casa. O fanado alternativo da SMN, esse, não passa de "uma brincadeira", desvaloriza.
Os esforços da SMN no sentido de sensibilizar os líderes religiosos não parecem estar a dar grandes frutos. A uns passos da casa de Djaló, o imã da mesquita de Pefini, Malam Samaly, descansa numa cadeira, enquanto a sua mulher prepara o almoço. Reconhece que a excisão não é um fundamento islâmico, mas pertence à "cultura dos antepassados", que deve ser preservada. A esposa toma-lhe a palavra. "As mulheres [não excisadas] são promíscuas e histéricas", vocifera, olhando de canto a jornalista e criticando "os brancos" que "andam para aí a dizer que não se deve fazer". Aproveita para se queixar, com uma pontinha de desdém, que "os homens começam a preferir as mulheres não excisadas". Mas, ali, nos bairros de Pilom de Cima e de Pilom de Baixo, onde vivem maioritariamente mandingas e fulas (outra das etnias islamizadas), "todas as mulheres foram ao corte". E assim farão as suas filhas, garante Adja Indjai. Reconhecendo que, às vezes, "não há dinheiro para as cerimónias e faz-se só o corte", a mulher adianta que as meninas antes eram excisadas aos cinco, seis anos, mas que agora podem sê-lo quando ainda são bebés. E o que é mesmo que se passa dentro da barraca? "É segredo". Regressa o silêncio. Acaba a conversa.


Passar de menina a mulher


Saem da Baraca Malgóss de cabeça baixa e sem olharem para trás, pés descalços na terra vermelha. Lenços cobrem-lhes as cabeças e as caras, panos coloridos comprados pela família especialmente para a ocasião tapam-lhes os corpos, mais ou menos infantis. A cabeça toca as costas da menina que vai na frente, para tentar manter no trilho o comboio para a idade adulta. A máquina fotográfica dispara. Os olhos assustados, até aqui colados ao chão, espreitam timidamente por uma nesga do lenço. É medo o que trazem inscrito. Provavelmente medo de algo que não vai acontecer, mas que lhes disseram que doía muito. As mãos estancam à porta do ventre que não lhes vão roubar.
Os batuques do djidiu e uma multidão de outras pessoas acompanham os dois quilómetros de calvário das fanadozinhos, que caminham para a sua primeira aparição pública após dois meses de retiro. Já tomaram o banho purificador e comeram galinha pé dentro (recheada).
O caminho de terra não chega para todos os que seguem a romaria. Táxis e toca-toca (transportes colectivos) buzinam insistentemente, contribuindo para aumentar a confusão. Como se não bastasse, aparece o cancoran. Feiticeiro temido por todos, que parece retirado do fabuloso mundo das fábulas infantis. Coberto totalmente por um tecido vermelho-vivo e retalhado, que não deixa adivinhar quem encarna a figura mítica, ostenta dois machetes enferrujados, brandindo-os um no outro como quem ameaça dar-lhes uso (no fanado tradicional dá mesmo). As crianças elegem a fuga e parecem ratos a esgueirarem-se pelos poros de uma cultura incrivelmente mitológica. Dois mil metros de caos generalizado. As fanadozinhos permanecem alheadas de tudo o que se passa em seu redor, como se a festa não fosse sua. Os olhos mantêm-se toldados pelo medo.
Em fila, percorrem uma vereda minúscula e atulhada de lixo até desembocarem no amplo campo de futebol em terra batida da Escola Superior Tchico Té. Chegou a hora do Fidi Lifanti. Cuidadosamente alinhadas (fazendo lembrar as paradas militares), as meninas cumprimentam o público com uma dança de joelhos para a direita e para a esquerda, para cima e para baixo, sincronizadas pelo som seco dos batuques, e gritando "coisas secretas" que aprenderam na Baraca Malgóss. Os olhos continuam presos ao chão, onde deitam a cabeça terminada a saudação. O cancoran continua a manter a ordem, uivando como sirene de bombeiros, e a proteger as meninas da desorganização alheia.
Erguem-se de seguida e soa o tambor. Correm desvairadas pelo Campo da Granja. Muitas caem pelo caminho, sozinhas ou ajudadas por rasteiras das lambés (raparigas já iniciadas que acompanham as fanadozinhos e lhes ensinam danças e cantigas tradicionais) ou de familiares. Diz-se que quem vence a corrida tem morte certa no prazo de um ano, mas o fanado alternativo tem tentado contrariar esta ideia. Ainda assim, é de tristeza a expressão dos pais da menina que primeiro tocou no tambor colocado do outro lado do terreno e que agora surge aterrorizada sob a axila de Molo Seidi, a comprida chefe das fanatecas, que empunha o Irã da Baraca (um instrumento de madeira, tipo foice com sininhos, envolto num pano vermelho).
As mães são em maior número, mas os homens também lá estão. "Deus não pôs nada na mulher a mais, não nos devemos aventurar a tirar nada", sustenta António Iaia Seidi, pai de Sónia, fanadozinho de cinco anos de idade. Aissatu Banora, mãe de uma filha de dez anos, também prefere o fanado alternativo "porque não há faca e hoje fala-se muito da sida...".
Terminada a primeira cerimónia pública, as meninas são levadas — muitas às cavalitas ou ao colo, visivelmente exaustas — para a Baraca Doce, lugar aberto ao público, montado no Jardim Infantil Nelson Mandela, na Estrada de Bor. Todo o dia seguinte é dedicado a cuidar da aparência. Lambés e fanadozinhos espraiam-se por esteiras colocadas no chão, as primeiras de pernas abertas, as segundas com a cabeça para baixo, deitada no ventre das suas companheiras inseparáveis. São horas e horas de volta do Tissi Cabelo. Pentes enormes entrançam os novelos emaranhados que encimam as cabecinhas negras, adornadas com os mais variados talismãs e "mezinhos" para proteger dos maus espíritos. Algumas mulheres abanam o calor com panos. Os tocadores do djidiu escorrem música dos batuques em gotas de suor. As bundas das mulheres desafiam as leis do ritmo e estremecem o ar.
À porta da cozinha, faz-se o chabéu (fruto da palmeira, que é pilado até formar um suco vermelho-sangue) que alimentará todas as fanadozinhos e funcionários do fanado alternativo. Numa bacia descansam milhões de grãozinhos de um cuidadosamente limpo arroz, a base da alimentação guineense.


A dança da entrega das facas


E é chegado o grande dia: a festa de encerramento. Já primorosamente vestidas, as meninas apresentam-se à comunidade como as suas mais recentes adultas. O pescoço está pintado com pó de talco, sinal de purificação que manterão durante duas semanas, para se distinguirem das outras crianças e das outras mulheres. Fios de lã vermelha seguram o furo recente nas orelhas. Búzios e outros protectores enchem-lhes os corpos e um cordão colorido com sininhos pende-lhes das mãos. As tranças desenham o cabelo. Os olhos continuam sem sorrir. Uma menina desmaia, talvez do calor, mas a discussão gerada envolve diversos irãs. Uma mulher mais velha do que o tempo é acusada de bruxaria. Ri-se sem dentes do desvario das mulheres jovens que lhe apontam o dedo. A menina volta e a cerimónia continua.
Findas as apresentações, as fanadozinhos alinham-se nas esteiras, pernas estendidas para a frente, sandálias deixadas na terra. Khadija Aires dos Reis tem 14 anos e não é filha de pai muçulmano. Mas a mandinga avó materna quis levá-la este ano ao fanado tradicional e a mãe achou que a única maneira de o evitar era integrá-la no ritual alternativo. Acena que sim com a cabeça quando se lhe pergunta se é duro ficar dois meses na Baraca Malgóss. Quanto à troça alheia, afirma: "As outras meninas [que vão ao fanado tradicional] não podem gozar, porque tudo o que elas sabem, nós também sabemos". Tudo menos o que é ficar mutilada para toda a vida.
Surgem mais dois seres mágicos. As lónio, mulheres totalmente cobertas, dançam ao som dos tambores. São indispensáveis para validar o fanado. É agora tempo de discursos. "O fanado não é só o corte, aprendem-se muitas outras coisas", sublinha a presidente da SMN, Augusta Baldé. Os líderes religiosos estão ausentes.
O som dos tambores aumenta de volume. Os músculos dos homens do djidiu retesam-se a cada batucada e as veias parecem querer saltar-lhes dos braços. Nima Corubum é a primeira fanateca que entra na dança da entrega das facas. Os movimentos do corpo enganam os 70 e incertos anos que já leva de vida. É com emoção que entrega o objecto do qual sempre viveu, envolto num pano vermelho. Segue-se Molo Seidi, que, em nome de todas as fanatecas, diz que esperam agora uma alternativa, porque a faca sempre lhes deu tudo o que precisavam. "Algumas pessoas chamam-nos estúpidas e insultam-nos por entregarmos as facas", desabafa, como quem pede que lhe provem que tal não é verdade.
A entrega não é feita de ânimo leve. É como se um cirurgião entregasse o bisturi com o qual opera. As fanatecas exigem uma recompensa em troca da renúncia ao seu ganha-pão. Um pouco de dinheiro para montarem um pequeno comércio. Ou para comprarem alfaias agrícolas para trabalharem no campo ou máquinas de costura para fazerem roupas para venderem no mercado.
Ao entregarem as facas, herdadas das mães ou das avós, estão também a abdicar de uma actividade prestigiada socialmente.
As 36 fanatecas que, no ano passado e pela primeira vez na história do país, entregaram as suas facas ainda não receberam nenhum dos apoios prometidos. Receia-se que muitas já tenham voltado à sua antiga ocupação. Há, pelo menos, três confirmações.
A reconversão sócio-económica destas mulheres (que tem sido, sucessivamente, adiada) faz parte do projecto e é, simultaneamente, o "maior problema" que a SMN tem para resolver, reconhece Augusta Baldé, defendendo que é necessário criar uma cooperativa de fanatecas, atribuir-lhes microcréditos e dar-lhes formação alternativa. "A entrega das facas tem sido um processo lento, mas que implica um pedido urgente de reconversão sócio-económica. Este processo devia abranger o Governo e não estar completamente dependente de financiamentos externos, porque há muitas fanatecas com conhecimentos de saúde tradicional que podiam muito bem ser aproveitadas como agentes de saúde de base", acrescenta Paula da Costa, conselheira técnica do Projecto Direitos da Mulher, que, desde 2001, trabalha com a SMN no combate à MGF. No caso das mulheres "muito velhas", realça a cooperante portuguesa, a reconversão é difícil, devendo o Estado atribuir-lhes uma "pequena reforma". Se lhes derem uma alternativa, acredita, as fanatecas acabarão por ser multiplicadoras do projecto. "Cada fanateca ganha significa duas ou três ganhas no futuro".
As danças prosseguem — abençoadas por uma chuva de dinheiro proporcionada pelos espectadores e saudadas por esvoaçantes panos coloridos — e as facas sucedem-se. Caem na mesa em frente à presidente da SMN, que as vai registando num bloco. São mais de 40. O brilho-quase-por-estrear de algumas leva a desconfiar da sua autenticidade.
No futuro, a SMN pretende acompanhar a entrega das facas com um juramento com cola — produto mascado pelos guineenses para dar energia e usado para selar os mais variados compromissos e acordos. Porque palavras leva-os o vento, este juramento sagrado, a efectuar na mesquita, seria a única forma de garantir que as fanatecas não voltarão a fazer o corte.
A resistência à mudança é muita e todos os cuidados poucos. Nesse sentido, a SMN resolveu também seguir as fanadozinhos, que "necessitam de acompanhamento permanente da parte do projecto, de forma a não correrem o risco de serem excisadas mais tarde", sustenta Paula da Costa. Ciente de que se está a criar um "grupo de exclusão", já que "a menina muçulmana não excisada perde mais-valia social" e torna-se, portanto, permeável a pressões da comunidade, a conselheira técnica considera que incluir o grupo passa por acompanhá-lo.


Seguimento das fanadozinhos envolto em incertezas


No ano passado, fizeram-se três fanados alternativos: em Buba (Sul), Farim (Norte) e Gabú (Leste). A PÚBLICA foi ver como está a correr o seguimento das 180 meninas que neles participaram e, nas duas viagens (a terceira, a Buba, não se realizou devido à queda de uma ponte, na sequência de fortes chuvas), bateu com o nariz na porta. Os centros de acompanhamento de Farim e Gabú estavam fechados. Mas nem tudo se perdeu. Duas das 60 fanadozinhos que deviam estar a ser seguidas aceitaram contar, à sombra de uma árvore, como funcionam as coisas em Gabú. Disseram que as três animadoras faltam muito e que encontram frequentemente o centro fechado. Sem avisos prévios nem informações sobre o regresso à normalidade.
As actividades do centro passam, essencialmente, pela costura, renda e bordados. O grupo de teatro, apesar de já ter ensaiado quatro peças educativas sobre a MGF, ainda não mostrou em público o seu trabalho. Fanta preferia "aprender outras coisas", para um dia ser jornalista.
Já com 16 anos, Fanta participou no fanado alternativo no ano passado. Sendo mandinga, impõe-se perguntar se, com aquela idade, nunca tinha ido ao fanado tradicional. Desvia os olhos para o chão e abana timidamente a cabeça dizendo que não. Atrás, uma voz feminina sentada num muro reage. Fala mandinga. A menina agita-se. Não olha nos olhos porque sabe que mente. Mais tarde, feita a tradução, ficámos a saber que Fanta já era excisada quando foi ao fanado alternativo.
As razões para esta situação acontecer podem ser várias e justificam-se pela falta de controlo do projecto. Algumas meninas podem ter sido apenas submetidas ao corte, mas não terem tido dinheiro para cumprir toda a cerimónia e os pais vêem no fanado alternativo uma oportunidade para concluir o cerimonial. Por outro lado, durante os dois meses de retiro, as famílias não têm que gastar dinheiro com a alimentação das crianças, já que o projecto encarrega-se disso (através de apoios do Programa Alimentar Mundial). Este ano, 360 pessoas foram alimentadas diariamente pela organização.
Ussumane Baldé dá aulas de alfabetização de fula (língua étnica) no Gabú e chegou a colocar-se à disposição da SMN para, através das fanatecas que tem na família, fazer campanhas de sensibilização junto das "mulheres grandes". Não obteve resposta até hoje. Ao seu lado, Paula Djaló, dona de casa, acrescenta que o facto de as animadoras não serem da região não facilita a tarefa de convencer "pessoas que não conhecem" a deixarem de fazer algo que fazem há tanto tempo que a memória já não se lembra.
O cenário repete-se em Farim. Todas as animadoras estavam em Bissau. O grupo de teatro está parado. Mas as aulas de apoio, "sobretudo de matemática e português", estão a funcionar. Pelo menos assim disse um dos professores que trabalha com as poucas meninas que aparecem, usando um "pequeno quadro emprestado" para o qual já não tem giz. Cadernos e lápis ainda há, mas "não são suficientes". As crianças trazem as próprias cadeiras. Alfredo Júlio Pereira não recebe desde Agosto.
Estrada Farim-Bissau. No meio do mato, ergue-se o Centro de Djalicunda, financiado pela Swissaid, onde a rádio comunitária Kafo divulga programas educativos sobre práticas nefastas. "É preciso novas estratégias para convencer as pessoas", adianta Mamadu Silla, coordenador da emissora. Conta que transmitiram programas elaborados pela SMN mas, como nunca receberam dinheiro, deixaram de o fazer. Diz que "o fanado alternativo não é bem acolhido pela comunidade" da região de Farim, muito porque esta esperava que o projecto tivesse seguimento este ano.
Abdulai Jamanca, apresentador de programas em língua fula, tem uma filha e está preocupado com o seu futuro. Isto porque "as 'mulheres grandes' é que mandam" e podem excisar a menina sem que ele saiba. "Estou contra este sistema mas não tenho decisão na casa", lamenta. "O homem nunca sabe nada disso. Quando as mulheres decidirem acabar com isso, isso vai acabar", corrobora Mamadu, que ainda não tem com que se preocupar.


Governo guineense nunca apoiou projecto


Paula da Costa considera que o fanado alternativo é "uma boa estratégia de trabalho, mas deve ser apenas uma de muitas". "Falta melhorar as campanhas de sensibilização junto da população, que deve ser um trabalho continuado de 365 dias por ano".
"É também necessário que o fanado alternativo tenha cada vez mais a participação da comunidade para que, a médio e longo prazo, deixe de ser uma actividade de uma ONG para se transformar numa actividade da própria cultura", defende.
Apoiado financeiramente pela ONG alemã WFD e pela portuguesa Fundação Calouste Gulbenkian, entre outros subsídios esporádicos, o fanado alternativo — que custou, este ano, qualquer coisa como 20 mil euros — não é, nem nunca foi, patrocinado pelo Estado guineense. A presidente da SMN conta mesmo ter sido insultada por Kumba Ialá quando lhe foi pedir apoio. O ex-Presidente terá dito, simplesmente, que não se pode mudar a cultura.
"Podia haver um trabalho mais real e efectivo do Governo para apoiar o projecto", assevera Paula da Costa. Apesar do "apoio moral" dado pelos ministérios da Saúde e da Educação, sublinha, as autoridades podiam actuar mais no que diz respeito aos programas escolares e à formação dos quadros de saúde.
O financiamento do fanado alternativo termina em Dezembro e a promoção do projecto a nível da sub-região, ou mesmo do continente, continua por fazer.
A falta de cooperação entre as várias ONG que combatem as práticas nefastas é inacreditável num país com tão poucos recursos. "Cada um trabalha para o seu lado", reconhece Augusta Baldé. "Seria útil que as diferentes ONG tivessem um plano de trabalho conjunto, mas o processo de juntar as ONG numa luta comum é complicado em todos os países do mundo, não sendo também fácil na Guiné-Bissau", acrescenta Paula da Costa. Em Maio deste ano, um encontro nacional de ONG que combatem a MGF fixou a necessidade de coordenar esforços e apelou ao Governo para se associar à iniciativa. Passaram cinco meses e das palavras ainda não se passou aos actos. Entretanto, em vários cantos do imenso continente que é África, milhares de meninas continuam a ser mutiladas diariamente. Em nome da tradição.


Jovens contra as práticas nefastas


A cidade de Bafatá (Leste do país) é o quartel-general do combate contra as práticas nefastas levado a cabo pela Réné-Renté. É uma organização não governamental dirigida por jovens, mas sem exigências de idade no que toca a colaboradores no terreno. Cinco rapazes e doze raparigas fundaram a Réné-Renté há três anos para "sensibilizar a população rural no domínio da saúde". Hoje, conta com 85 membros e centraliza as suas forças na luta contra a MGF.
Um comité de vigilância — composto por chefes de família, líderes religiosos e tradicionais e fanatecas reconvertidas, todos eles elementos com grande poder no seio da comunidade — tem a função de explicar às famílias as causas da excisão e incentivá-las a acabar com a prática. A Réné-Renté gaba-se ainda de ter conseguido cativar o ferreiro, figura responsável por produzir e distribuir as facas usadas nos rituais de iniciação. "Ainda faz facas, mas já prometeu deixar de o fazer progressivamente", regozija-se Admaia Gavancho, coordenadora da Réné-Renté.
O diálogo com as excisadoras é uma vertente privilegiada de uma actuação que pretende mudar mentalidades e rejeita a ideia de oferecer dinheiro às fanatecas que entreguem as facas, como faz a Sinin Mira Nassiquê. "Não é a troco de dinheiro que as coisas vão mudar, mas a troco do sentido", considera Admaia.
Em conversas diárias com as fanatecas, os jovens anotaram as suas recomendações — que passam pela construção de centros de corte e costura, realização de campanhas de alfabetização e criação de contas-poupança — e vão pedir financiamento para o projecto de reconversão.
Bafatá é uma zona maioritariamente islamizada, com mandingas, fulas e saracolés, todos "muito ortodoxos", o que torna "difícil convencer", reconhece Admaia. Além disso, a taxa de analfabetização das mulheres é superior a 90 por cento. Mas, "pouco a pouco", acredita, a MGF "vai terminar".
O trabalho é quase todo voluntário e custeado por um sistema de quotas, já que a Réné-Renté conta apenas com o apoio da SNV, organização holandesa de desenvolvimento, na área da sensibilização.
A organização "precisa ainda de muita coisa", não dispondo de coisas tão básicas como computadores e gravadores para registar as conversas com as fanatecas. A sede onde trabalham — espaço cedido pelas autoridades locais — tem apenas "uma mesa e cadeiras".
Mais a leste, no Gabú, outra zona maioritariamente islamizada, os doze membros da Ajudade combatem a MGF fazendo sensibilização "porta a porta". Abdurrahman Djaló reconhece que "é mais fácil sensibilizar os mais novos" e não hesita em dizer que "as mulheres são mais difíceis" de convencer e que "resistem mais" às mudanças. A abordagem privilegia, uma vez mais, as consequências para a saúde, nomeadamente no que toca aos problemas no parto.


Mudar por dentro


Apesar de a MGF não ser recomendada pelo Alcorão, é nas tribos islamizadas que a prática mais está difundida. Além disso, os imãs de alguns países não têm pruridos em transformá-la em fundamento religioso.
A Al-Ansar é a mais antiga organização não governamental islâmica guineense e luta diariamente para convencer as pessoas de que a excisão feminina não é uma obrigação muçulmana, mas uma "prática contrária aos ensinamentos do profeta Maomé".
Ensa Djandi abre-nos a porta da organização que fundou em 1992 e à qual deu o nome árabe para "aqueles que ajudam". Há dez anos que a Al-Ansar luta contra a maré e arrisca-se a perder as forças. Isto porque pertence ao Conselho Nacional Islâmico (CNI), do qual fazem parte outras 20 ONG. Apenas duas delas apoiam o combate contra a mutilação.
Na década de 90, "quase 80 por cento" dos líderes islâmicos eram favoráveis à proibição da excisão. "Após os ataques do 11 de Setembro [de 2001], a tendência modificou-se radicalmente", explica Djandi. Há dois anos, o CNI apoiou o fanado tradicional e acusou a Al-Ansar de "estar a ser utilizada pelos 'brancos' para destruir o islão". "Estamos a ser atacados por todos os lados", diz Djandi, a passos de baixar os braços. Malam Turé, coordenador da Al-Ansar, que tem mais de cinco mil membros, acrescenta que a discussão sobre os contornos religiosos da MGF sempre foi complicada e nunca houve "consenso geral".
Experiente diplomata, Djandi diz que o problema da MGF passa pela inexistência de uma "lei específica". Há uns anos, um projecto chegou a entrar na Assembleia Nacional Popular, mas perdeu-se numa gaveta qualquer.
A abordagem da Liga das Mulheres Muçulmanas centra-se na educação, apoiando o ensino das crianças, principalmente nas zonas rurais. O combate não está ganho, mas Fátima Fati, presidente da Liga, fala em progressos e confia nas gerações futuras. "Dantes era difícil falar sobre isso, era tabu. Hoje estamos aqui, sentadas, a conversar".

 

Primeira conferência portuguesa sobre o tema realizou-se hoje

 

Estudo-piloto sobre excisão feminina revela desconhecimento médico

 

 

Sofia Branco
25.11.2003
O primeiro estudo realizado em Portugal sobre mutilação genital feminina (MGF), dirigido aos profissionais de saúde, revela um grande desconhecimento acerca desta prática, sendo bastante elevada a percentagem de inquiridos que não responde ou não tem opinião sobre variadas questões.

A pesquisa, realizada pela Associação para o Planeamento da Família e apresentada hoje durante o primeiro seminário português dedicado à MGF, indica também que, apesar da quase totalidade dos médicos e enfermeiros questionados terem ouvido falar da MGF, pouco mais de metade já discutiu o tema, quer com colegas, quer com familiares ou amigos.
Ao mesmo tempo, os inquiridos admitiram ter tomado conhecimento do fenómeno muito mais através da comunicação social do que em acções de formação específicas: apenas 16 indivíduos tiveram contacto com o tema desta última forma. Este facto pode ter influenciado o facto de 44 por cento terem admitido que apenas "talvez" reconhecessem uma MGF. A necessidade de formação dos profissionais de saúde é apoiada pela quase totalidade dos inquiridos, ideia reforçada nos vários "workshops" — sobre educação, comunicação, intervenção cívica e saúde — que ocuparam a tarde de ontem da conferência.
Sobre se esta prática é um problema na sociedade portuguesa, 31 por cento não concordam nem discordam, enquanto 39 por cento acham que não. Por outro lado, 17 por cento (mais enfermeiros do que médicos) tiveram contacto com mulheres excisadas em Portugal nos últimos cinco anos, mas apenas um por cento afirma ter recebido pedidos de realização da prática.
A resposta à possibilidade de assistir medicamente uma MGF é categórica: 92 por cento rejeitam tal hipótese. No entanto, esta questão está longe de ser consensual, havendo, por um lado, quem questione se não seria preferível evitar males piores, como a transmissão do HIV, fornecendo apoio médico à prática, e, por outro, quem considere fundamental evitar a medicalização da prática, o que lhe daria legitimidade.
Apesar de 97 por cento dos inquiridos não terem dúvidas em afirmar que a MGF não deve, em circunstância alguma, ser aceite, 39 por cento não sabe explicar porquê, não integrando a questão, por exemplo, nas violações dos direitos humanos. Simultaneamente, 98 por cento reconhecem não saber enquadrar legalmente a MGF: ou seja, desconhecem que a prática é, de acordo com o Código Penal português, uma ofensa contra a integridade física grave. Destes, 88 por cento defendem a criminalização autónoma da MGF, o que deverá acontecer no início do próximo ano, por proposta do CDS-PP.
O papel dos profissionais de saúde passa, segundo 53 por cento das opiniões, pela sensibilização e a maioria defende a adopção de um protocolo de actuação a ser aplicado perante eventuais casos de MGF. Ao mesmo tempo, 91 por cento concordam com a necessidade de sinalizar a prática junto das autoridades competentes.
O estudo embrionário constou de 25 questões de escolha múltipla, feitas a 151 médicos e enfermeiros de ambos os sexos (apesar de terem sido contactados 500), de cinco centros de saúde, um hospital e uma maternidade da Grande Lisboa.
A Comissão para a Igualdades e para os Direitos das Mulheres (CIDM) escolheu o Dia Internacional para a Eliminação da Violência contra as Mulheres para debater o tema da MGF, contando com um auditório reduzido e muito feminino. Os vários responsáveis governamentais cuja presença estava agendada não chegaram a aparecer, mas na plateia chegaram a estar deputadas de vários quadrantes políticos. Nas conclusões finais, a presidente da CIDM, Amélia Paiva, colocou a tónica na formação e sensibilização para um fenómeno que muitos ainda vêem como longínquo. Uma maior colaboração entre os vários poderes sociais e o reforço da cooperação portuguesa na promoção do combate à MGF foram outras das medidas propostas.

 

Mutilação Genital Feminina no Parlamento (Portugal)

 

E Agora?

 

 

Sofia Branco
06.03.2004

Que neste país as leis são muitas vezes vistas como soluções milagrosas, já se sabia. Mas este não é o caminho certo. Antes de legislar, é preciso perceber a dimensão do fenómeno em causa. E o Governo não fez nem mandou fazer, pelo menos que se saiba, nenhum estudo sobre a MGF, nomeadamente sobre a sua prática (ou não) em território nacional. Mesmo que o tivesse feito, impõe-se questionar a relevância e os efeitos da lei. O Código Penal não condena já este tipo de barbáries? A punição não hostilizará um grupo muito definido e restrito de pessoas? Uma lei deste género pode sempre ter efeitos perversos.

Legislar não significa dialogar. Muito menos é sinónimo de integrar - e, no caso da MGF, estes dois actos são cruciais para solucionar o problema. Ora, que se saiba também, as mulheres - e os homens, porque a MGF não é uma questão meramente feminina - guineenses ainda não foram ouvidas. O Governo não se deu ao trabalho de as abordar para tentar perceber a mentalidade e a cultura que estão por trás da MGF. Para se combater algo é preciso, antes de mais, ter a noção exacta do que se combate. O problema da MGF na Europa é, sobretudo, um problema de integração dos imigrantes - e isso o Estado ainda não viu, porque não quis ou porque não teve a coragem de abrir os olhos. Porque o diálogo e a integração exigem mais esforço do que fazer uma lei. O CDS/PP optou pela via mais fácil. O projecto de lei ficará pelo caminho, "queimando" uma hipótese de ouro para se fazer algo em relação à questão. E agora, senhores deputados?

Mais do que punir, trata-se de prevenir - que a MGF seja praticada em Portugal, mas também que as meninas guineenses que vivem ou nasceram no nosso país sejam levadas para a Guiné-Bissau nas férias e voltem mutiladas. Mais do que punir, é preciso formar e informar. Quem? Todos os portugueses, homens e mulheres, porque não lhes fará mal saberem o que continua a acontecer, em cada dia que passa, a seis mil meninas em vários países do mundo. Formar, em particular, os médicos e professores para esta questão. Sensibilizar os guineenses para os limites do multiculturalismo e da tolerância: que não são mais do que os limites decorrentes dos atentados contra os direitos humanos. Conversar com as crianças guineenses sobre os seus direitos. Nada disto está a ser feito e isto é o importante. Uma lei é meramente acessória. Nunca as mentalidades se mudaram por imposição legal.

NOTA: O deputado do CDS/PP Miguel Paiva considera que a importância do clítoris é "algo subjectiva" (ver PÚBLICO de ontem). Teria as mesmas dúvidas se a discussão fosse sobre a relevância do pénis? Não se sentiria o senhor deputado afectado nas suas "funções vitais" se a integridade desse seu órgão fosse atingida?

Acaso terá ideia do sofrimento de uma mulher mutilada quando urina ou está menstruada ou mesmo durante um parto, exercendo esse direito tão "vital" que é a procriação? É inconcebível que, nos dias de hoje e nas instituições eleitas por todos nós, ainda haja quem conceba a "função reprodutiva" isoladamente do prazer sexual - aliás, é exactamente esse raciocínio que está na base de práticas como a MGF. Afinal, as mulheres foram feitas para terem filhos e não podem, simplesmente, gostar de sexo... "Shame on you", senhor deputado!

 

A primeira tentativa de legislar sobre a mutilação genital feminina (MGF) fracassou antes mesmo da votação. Todos os partidos da oposição e o PSD manifestaram-se contra uma criminalização específica da prática, porque, entre outras razões, o Código Penal já a prevê e pune com prisão. Aprovada ou rejeitada, a pergunta que se impõe é: e agora?

 

SOFIA BRANCO - Jornalista do PUBLICO.PT distinguida com o prémio José Manuel Cabral

 

PUBLICO.PT

10.12.2003
A Comissão Nacional da Declaração Universal dos Direitos do Homem atribuiu hoje à jornalista do PUBLICO.PT Sofia Branco e a Sandra Claudino, da RDP África, o Prémio de Jornalismo 2003/Comandante José Manuel Cabral.

Sofia Branco foi premiada por um conjunto de três trabalhos publicados simultaneamente no PUBLICO.PT e no PÚBLICO intitulados "Parlamento Europeu une esforços para eliminar a mutilação genital feminina", "Portugal nega asilo a queniana que fugiu à mutilação genital feminina" e "Portugal 2002 - O holocausto silencioso das mulheres a quem continuam a extrair o clítoris". Sandra Claudino foi premiada pelo trabalho "À espera da liberdade", sobre as prisões de Caxias e Linhó, difundido na RDP África.

Destinado a assinalar o 55º aniversário da Declaração Universal dos Direitos do Homem, que se comemora hoje, o prémio tem o valor de 15 mil euros e será dividido pelas duas jornalistas.

A entrega dos prémios será feita pelo presidente da Comissão Nacional, Mário Soares, no dia 30 de Janeiro. O júri foi presidido pelo constitucionalista Vital Moreira e incluiu também os jornalistas Fernanda Mestrinho e Solano de Almeida.


Jornalista portuguesa lança «Cicatrizes de Mulher» em Bissau


Junho 2006


A jornalista portuguesa Sofia Branco lançou hoje em Bissau o livro "Cicatrizes de Mulher", que obteve um prémio internacional de Direitos Humanos com a narração de experiências sobre mutilação genital feminina de guineenses radicadas em Portugal.

A cerimónia decorreu no auditório do Centro Cultural Brasileiro, na presença dos presidentes das associações Islâmica de Desenvolvimento AID), Ença Jandi, e para a Cooperação entre os Povos (ACEP), Fátima Proença, e do secretário executivo da Plataforma de Concertação das ONG da Guiné-Bissau (PlaCon-GB), Jamel Handem.

Na apresentação da obra, a autora, jornalista do Público, sublinhou que o livro é apenas uma ajuda para uma maior reflexão sobre este assunto em África, em geral, e na Guiné-Bissau, em particular, frisando que nada tem contra a tradição em si.

"Tenho muito respeito pela tradição, mas o corte é desnecessário. Morrem mulheres por causa do parto que não se consegue concluir, morrem meninas com infecções. É necessária uma vasta campanha de sensibilização, a todos os níveis, para acabar com esta prática nefasta", explicou Sofia Branco.

A autora lembrou a "enorme" tarefa que se tem pela frente, uma vez que cerca de 30 dos 54 países africanos continuam a proceder à mutilação genital feminina, razão pela qual a campanha de sensibilização deve ser o mais abrangente possível, incluindo líderes religiosos, comunidade internacional, comunicação social e a população em geral.

Na Guiné-Bissau cerca de 50 por cento das mulheres são alvo da mutilação genital.

As sinergias entre as organizações da sociedade civil, nomeadamente as não governamentais, são, no entender de Sofia Branco, "fundamentais" para que a prática do fanado (mutilação) feminino seja, aos poucos, banido da sociedade guineense, em particular, e africana.

Nesse sentido, destacou os esforços da organização não governamental Sininmira, que está a realizar há cerca de dois anos um projecto de "Fanado Alternativo", que prevê o mesmo ritual, de passagem para a idade adulta, mas sem o respectivo corte.

Referiu também que há também mulheres que vivem desta profissão - as fanatecas -, situação que tem de se ter em conta, pois terão de existir programas que permitam reconvertê-las para outra profissão.

"Cicatrizes de Mulher" já foi lançado em Portugal tendo sido escrito com base em declarações e entrevistas feitas nos bairros portugueses onde predominam comunidades africanas, nomeadamente da Guiné-Bissau.

O livro de Sofia Branco foi lançado na sequência das I Jornadas de Formação e Debates das Organizações Não Governamentais da Guiné-Bissau, a decorrer durante esta semana em Bissau.

As Jornadas contaram também com a realização de conferências e debates sobre variados temas, destacando-se, entre outros, "Conflitos e Pós-Conflitos em África", numa alocução de David Gakunzi, do Centro Norte/Sul do Conselho da Europa, e "África - A Comunicação Social entre a Paz e o Conflito", pelo jornalista e escritor português Pedro Rosa Mendes.

Paralelamente, estão patentes exposições de fotografias, de produtos locais transformados e conservados e ainda de artesanato das diferentes ONG guineenses, decorrendo também um torneio de futebol de salão.

Todas estas actividades estão integradas num programa diversificado de cooperação que a PlaCon-GB tem desenvolvido com ONG e organismos internacionais, contando com o apoio do Instituto Português de Apoio ao Desenvolvimento (IPAD), entre outros.
 

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