Espantar os fantasmas do colonialismo

 

 

 

 

Por: Samuel Reis*

samuel_henrik@hotmail.com

28.07.2008

Há pelo menos quatro formas de encarar o colonialismo e a escravatura, a atitude de desvalorização, outra a que eu chamo de “afro-pessimismo”, a que eu chamo de “pro-colonialismo” e, por último, o pragmatismo, a forma pragmática de encarar o passado. Começo por avisar muito sinceramente que cada vez menos me importa o que acham os europeus, os euro-americanos, ou quem quer que seja que não os africanos e afrodescendentes (por mais remota que seja a sua ligação com África).

Esses primeiros que referi, convencidos que os seus antepassados civilizaram África e as Américas, podem continuar alimentando a sua ignorância de estimação. São um problema secundário. Até porque os debates e discussões sobre estes temas tão “delicados” com os ditos cujos, até hoje, só criaram situações bicudas e humilhações pelas quais preferia nunca ter passado. Perdi a conta das vezes em que simples conversas acabaram com insultos e histerismo disparatado e, será escusado dizer, não levaram nenhum dos intervenientes a lado algum.

Nunca movi a consciência de alguém “branco” um milímetro que fosse para mais perto da realidade. Sei que existem “brancos” libertos do seu condicionamento, mas acho que não conheço nem um vivo, pelo menos que me lembre de momento, desculpem a minha honestidade. A sociedade treina-os para serem irracionais (vou explicar esta afirmação mais à frente, não quero ofender ninguém), por isso nem vale a pena avançar para temas mais exigentes com os indivíduos enquanto eles não compreenderem o peso do passado e o significado da expressão “memória colectiva” e ganharem consciência das feridas psicológicas que o colonialismo provocou e que ainda hoje estão por sarar.

 

 Esclarecido isto, compreendam porquê que este texto é especialmente para nós, os conhecidos no resto do mundo pelo nome carinhoso de “eles”.

É esta a minha filosofia: de nós para nós e por nós.

 

 Nós, que temos sangue africano nas veias, somos quem somos hoje por causa da nossa história. O colonialismo e a escravatura são importantes para compreender muito do que se passa enquanto escrevo este texto, nas nossas comunidades da diáspora e nos nossos países origem. Por isso fico triste ao ver que uma das atitudes mais comuns, entre africanos e não-africanos, é a primeira que enumerei acima, a desvalorização do passado. “Isso já foi há muito tempo, não interessa para nada! Temos que seguir enfrente sem olhar para trás”. Esta atitude é tristemente infantil, trata-se de história, é sempre importante pelas razões óbvias que já referi. E se realmente não é importante, então expliquem-me, se fazem favor, os adeptos desta postura, porquê que o continente africano está, em geral, num estado tão deplorável? Porque os solos são muito ricos e o Homem é ganancioso? Ou será o Homem Africano que é extra-ganancioso? Talvez seja do Sol que é muito forte em África e afecta os pensamentos dos governantes...? Quem sabe, pode ser que o Sr.

Al Gore desenvolva uma teoria para estes fenómenos a partir do aquecimento global! Não, já sei o que é… É a verdade inconveniente do passado! Sim, aquelas páginas dos manuais de história que são sempre corridas à pressa e resumidas nos programas escolares. As feridas da escravatura e os efeitos a longo prazo do colonialismo nos povos africanos. Só pode ser isso ou uma conveniente teoria algoriana.

 

 Então, porquê que isto está a ser ignorado e apagado aos poucos?

Precisamente porque é inconveniente... E é bastante conveniente, para os senhores do mundo, que nos esqueçamos de tudo. Portanto quem considere referências ao colonialismo impróprias e sinónimo de insensibilidade ou má educação, está directamente a colaborar com o famoso “sistema”, podem ter a certeza. Nada daria mais prazer ao opressor do que assistir ao completo esquecimento do colonialismo no espaço de umas poucas gerações de africanos, mas é precisamente isso que está a acontecer! Escondem a história, mas as consequências estão bem vivas, ainda não somos capazes de ver a nossa beleza e a beleza das culturas africanas.

 

 Se nos tirarem a história ficamos com uma visão muito diminuída dos acontecimentos, incapazes de compreender o que se passa à nossa volta e, obviamente, se ligarmos a televisão e nos mostrarem, de trinta em trinta segundos, trinta segundos de tiroteios com “minorias étnicas” num “bairro problemático” ou uma reportagem sobre uma das atrocidades cometidas em África, se não conhecermos um pouquinho de história que seja, vamos achar que os negros devem estar loucos, ou pior, devem ser loucos. Isto cria problemas de identidade gravíssimos. Os nossos jovens não sabem quem são (oiçam-me, porque sou jovem e sei como é), seguem o primeiro modelo de bandido que as grandes corporações brancas (editoras discográficas, estúdios de cinema, etc.) lhes puserem na televisão e no mp3, acreditando que isso é essa a identidade perdida. Reparem que onde quer que hajam comunidades africanas há violência, desordem, crime, droga, gravidez adolescente e todo o tipo de problemas sociais, isto não é por acaso, é diariamente sustentado por um programa escolar deficiente e montanhas de “entretenimento inofensivo” e deseducativo, ou acham que isto está no nosso sangue?

 

 Estamos a ser controlados e muitos de nós nem nos damos conta disso.

Depois, com tanta loucura das “minorias étnicas”, não admira que quem recusa o rótulo atribuído à sua “raça” e deseje ser livre se veja na verdade enjaulado na armadilha do ódio ao próprio povo. Fomos virados contra nós próprios (como exaustivamente refiro na maior parte dos textos). Uma vez uma amiga disse-me, deixando-me imensamente desapontado com a sua pessoa, “Com muitos pretos juntos nunca acontece nada bom”.

Infelizmente é uma conclusão “lógica” se estivermos devidamente condicionados e privados de acesso a factos históricos registados com o mínimo de imparcialidade. É tão lógico como os prisioneiros na alegoria da caverna julgarem as sombras na parede como sendo o mundo real. Como podiam eles saber que eram apenas sombras? Pois, é exactamente o que a maior parte de nós faz, vê as consequências (sombras) e pensa que está a ver as causas (os corpos, materiais opacos e com volume).

 

 Basicamente, esta primeira atitude de esquecer está, sem sombra de dúvida, errada, o que somos é resultado da nossa história, se a esquecermos somos manipuláveis e ficamos com um vazio interior que deveria ser ocupado por uma identidade bem definida, logo, esse vazio pode ser preenchido com o que for mais conveniente para os poderosos.

Esquecer o passado está fora de questão.

 

 Então, para pessoas mais despertas que dão o devido valor à sua história, surge a segunda atitude, também muito pouco saudável. Eu ouvi já faz algum tempo um pregador protestante, penso que originário do Malawi, falar de uma postura que baptizou de “afro-pessimismo”, adoptei prontamente a expressão, porque é realmente adequada. O afro-pessimismo é característico dos africanos. A coitadesa é exibida, resmungar pelo estado das coisas e pelo passado é típico de todos nós. Com certeza que o leitor conhece alguém que sofre de afro-pessimismo, todos nós conhecemos, eu até tenho membros da minha família infectados por isto.

 

 A dita filosofia (de vida) considera, entre outras coisas, que o negro é coitado por natureza, que se um negro é mal atendido numa loja isso é sempre uma manifestação de racismo, mesmo quando nada o indica e que África é irrecuperável sem a ajuda dos poucos brancos bons do mundo, nos quais tão piamente acreditámos ao longo da história. Este é o afro-pessimismo, um ciclo vicioso de lamentações, choros e retóricas completamente desprovidas de objectivo. Um afro-pessimista não tira conclusões nem age para resolver os problemas, simplesmente queixa-se da sua vida, da vida da família e dos africanos, de como o seu povo foi maltratado e é maltratado, ao mesmo tempo de como os negros são irresponsáveis e preguiçosos, e claro, culpa o mundo inteiro por tudo isto.  Normalmente também vem acompanhado de um certo desgosto por ser africano, aquela ideia de que a pele escura é feia, o cabelo crespo é uma maldição e um incómodo do qual os brancos foram privados, etc. É algo contraditória a atitude, mas é bastante popular, por razões directamente relacionadas com o colonialismo, como está claro. "E o resultado?”, perguntam vocês. Bem, o afro-pessimista torna-se uma companhia extremamente irritante, só. Porque a atitude que tem não contribui para mudar absolutamente nada, a não ser, é claro, moldar a mente dos mais jovens, convertendo-os em pequenos afro-pessimistas também.

 

 Passo agora à mais nociva e detestável de todas as atitudes (e a mais comum entre os irmãos “brancos”), o pro-colonialismo. Pro-colonialistas são aqueles que falam do colonialismo com sentimentos de nostalgia e inclusivamente glorificam os tempos da ocupação europeia. Tendem a detestar a independência dos países africanos, mas alguns são mais moderados. Para meu espanto isto é por vezes a maneira de pensar de alguns africanos e afrodescendentes...

 

 É inadmissível e uma tremenda falta de respeito fazer afirmações como “Se a Guiné-Bissau ainda fosse Portugal não havia nada disto [de problemas]”. Estes sujeitos publicitam assim imediatamente a sua ignorância em matéria de história (e, caso se vejam frente a frente com um destes, não tentem combater a sua arrogância, é inútil). Em primeiro lugar, as colónias eram isso mesmo, colónias! “Província ultramarina”

era hipocrisia política do Estado “Novo” (que era “Novo” mesmo com uma idade já bastante avançada), ou seja, a Guiné nunca foi Portugal, foi de Portugal e para Portugal, os interesses dos povos africanos estavam em segundo lugar, sempre.

 

 Em segundo lugar, como é que um povo tem o direito de impor a sua cultura a outro povo afirmando que esta é muito mais “desenvolvida” e “civilizada”?! É neste ponto que os pro-colonialistas, especialmente os “brancos”, são patéticos com os seus argumentos… Como disse acima, os “brancos” são treinados para não pensar quando debatem este assunto, agora passo a explicar tal como prometi. Reparem como quem se considera “branco” sublinha o desenvolvimento, os benefícios, o progresso que os povos europeus levaram para o “Novo Mundo”, reparem como repete o que os livros de “história” lhe ensinaram… “blablabla”! Mas se Portugal fosse colonizado então tínhamos um grande e escandaloso problema. Querem manter a cultura europeia, acho certo, então e os outros povos?! As pessoas que conhecemos como “brancos” esquecem-se de se colocar no lugar dos outros. Aliás, isso parece ser característica do ser humano, mas é incrível como estes “brancos” são educados para fazer carreira disso!

Experimentem pedir a um destes indivíduos que se ponha no lugar do “indígena”, do “selvagem”… O mais provável é receberem uma resposta defensiva de “nós erradicámos doenças e construímos infra-estruturas de grande qualidade”… Enfim, o tal “blablabla”.

 

 E por favor, poupem-me o trabalho de prolongar demasiado este já gigantesco texto. Isto é experiência própria, enumeras vezes me disseram “Ah, mas nem tudo era mau!”. Sim, era! Senão era, digam-me o que era melhor do que aquilo existente antes da presença dos europeus. Mas ponderem cuidadosamente as vossas palavras, porque o vosso “melhor” é claramente relativo e obedece a parâmetros criados pelos próprios povos europeus que sempre viveram sob a autoridade de líderes imperialistas, sedentos de poder e mortinhos para espalhar as suas influências ao resto da Terra, que, estupidamente, até acreditavam ser plana... A verdade é que a esmagadora maioria dos europeus é eurocêntrica, sem sequer saber o que essa palavra significa. Esta situação dá-se porque, como depois do extermínio que foi a Segunda Grande Guerra ficou feio dizer que os brancos eram física e intelectualmente superiores, só lhes resta portanto defender que a cultura europeia é superior, e assim o fazem.

Tal perspectiva é impingida a todos desde muito cedo, subtilmente pelos meios de comunicação social e muitas vezes descaradamente com os já acusados manuais de história que tratam África como um continente secundário, aliás, terciário (terceiro mundo, lembram-se?), o armazém de recursos do “democrático” e “civilizado” ocidente.

 

 Quero que compreendam, ver um pouco de bem que seja no colonialismo é uma afronta à liberdade dos povos e à beleza divina, atrevo-me a repetir, divina, da diversidade cultural. Divina porque Deus criou todos os povos. Se o colonialismo foi legítimo então será legitimo sermos todos colonizados pelas superpotências da nossa era. (Parece-me até que os Estados Unidos pensam efectivamente assim, e vejam só os resultados no Iraque.)

 

  Chegámos à conclusão de que as três formas de ver o colonialismo até aqui analisadas estão pura e simplesmente erradas. Agora, meus irmãos, proponho-vos uma alternativa (que a maior parte dos participantes deste site já segue). Chamo-a pragmatismo, porque preserva a verdade sem perder ou esquecer a sua utilidade e a necessidade de mudança. O pragmatismo não inclui renegar o passado ou temer referências ao mesmo, desperdiçar energia a lamentá-lo por um tempo indefinido ou qualquer tipo de amor totalmente cego pelos factos claramente vergonhosos da história.

 

 Eu encaro o colonialismo como parte da minha história, porque sou humano. Nem sequer é uma “coisa de preto” ou de mestiço. E os países mais poderosos hoje em dia foram construídos sobre ideologias racistas, esclavagistas e colonialistas, tudo ao mesmo tempo, uma vez que uma coisa suporta a seguinte. Os Estados Unidos da América e a Europa devem a sua força à mão-de-obra escrava (actividade ainda vigente,

encobertamente) e África deve a sua miséria à tirania desses traficantes e escravizadores de homens sem escrúpulos. Tudo o que existe hoje seria diferente caso a escravatura e a mutilação de África não tivessem ocorrido. Não vou encher o texto com alusões ao passado, mas são factos, vamos enfrentá-los sem tabus.

 

 Reconhecido isto, sejamos práticos (pragmáticos). A ignorância é perigosa, saber quem somos é bom. Estudemos então a nossa história! As feridas ainda hoje estão abertas e não cicatrizarão em pouco tempo, porque os massacres em África não pararam desde que o continente foi “descoberto” e isso continua a ferir-nos. É difícil ter orgulho no sangue africano, mas vamos tê-lo, porque é esse o caminho para sarar os nossos povos. Com uma atitude pragmática, vamos reconhecer a utilidade, por exemplo, da língua portuguesa, que une todos os PALOP’s, e servir-nos do seu potencial para nosso benefício. Com uma atitude pragmática, vamos reconhecer que há feridas e que a cura para elas reside no restauro do nosso amor-próprio, no conhecimento de nós mesmos, na recuperação da nossa identidade perdida e substituída pela cultura sintética que impingem às nossas sementes. Com uma atitude pragmática, vamos exorcizar os fantasmas do colonialismo, abandonar todos os preconceitos e olhar para África e para a sua história com novos olhos, sem traumas. E então, sem vergonha, digamos que somos africanos e temos muito orgulho nisso.

 

* 16 anos de idade, estudante na área de Línguas e Humanidades do 10º ano com aspiração de vir a ser jornalista


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