Quando as tradições ancestrais se opõem aos direitos humanos
“Eu, Mariama Bâ, vítima da excisão...”
04.03.2008
Conheci Mariama Bâ em 1992, na sala de espera de um hospital de Bruxelas. Eu ia para uma simples consulta de rotina e Mariama para preparar a sua segunda intervenção cirúrgica ao coração. Quando entrei na sala, o meu olhar dirigiu-se directamente para ela. Era de facto a única paciente africana que lá se encontrava, mas não foi apenas a “solidariedade africana” que moveu a minha atenção em direcção a ela. O seu olhar profundo e triste espelhava no seu rosto o desamparo total que lhe ia na alma. Mas ao mesmo tempo senti algo de forte naquela mulher de aspecto tão frágil. Sentei-me ao seu lado sorrindo-lhe e ela respondeu-me com um franco sorriso deixando ver a alvura dos seus dentes perfeitamente alinhados. Timidamente, lançou-me um “Ça va?” (como está?) e instantaneamente tive a sensação de ter reencontrado uma amiga de longa data. Foi o início de uma grande amizade entre nós.
De família muçulmana, Mariama nasceu numa tabanca do Senegal. Ainda garotinha foi levada ao “fanado” tal como manda a tradição. Desse episódio da sua vida, Mariama guardou a recordação mais dolorosa da sua existência de criança e de mulher. Não se lembrando de como as coisas se passaram naquela manhã em plena mata, ficou apenas registado na sua memória o sofrimento que a assolou durante os dias que se seguiram e a cor vermelho escuro do sangue que perdia. “Quando parei de sangrar e as dores desapareceram, pensei que o meu calvário tivesse terminado e retomei a minha vida normalmente”, disse-me Mariama quando me contava a sua história e a razão pela qual se fazia operar ao coração pela segunda vez, para além das duas operações a que também já fora submetida aos ovários. Não foi realmente o fim do seu calvário mas sim o princípio de uma longa luta pela vida que Mariama iniciava.
“Por volta dos meus dez anos, adoeci”, contou-me Mariama. “As minhas pernas começaram a inchar, sobretudo na estação das chuvas. Inchavam tanto que nem podia andar e para me deslocar tinha que me arrastar pelo chão como um lagarto. Fizeram-me todos os tratamentos da terra. Vi todos os mouros da minha tabanca e arredores. Bebi todos os chás que me deram. E nada! As minhas pernas só desinchavam quando chegava o tempo seco, mais fresco. Assim vivi durante 3 anos, até que chegou à tabanca uma ONG que veio para a construção de um novo poço de água. Foi a minha salvação! Nesse grupo de gente havia uma mulher, Anne-Marie, que se impressionou muito com o meu estado e disse aos meus pais que eu deveria ser imediatamente tratada num hospital. O problema era que a minha família não podia pagar um tratamento num hospital de Dacar”. Foi então que Anne-Marie convenceu a família a deixá-la levar Mariama com ela para Bruxelas, para que lá fosse tratada. “Anne-Marie foi para mim uma verdadeira mãe. Graças a ela eu pude ser tratada e sobretudo estudar sociologia. O que hoje sou, a ela devo. Ser-lhe-ei eternamente grata”, disse-me Mariama, quando dois anos após o nosso primeiro encontro no hospital, me telefonou para anunciar o falecimento daquela que fora sua mãe adoptiva.
Mariama completava 14 anos na altura em que chegou à capital belga. O exame médico a que fora imediatamente submetida revelou uma insuficiência cardíaca resultante de uma infecção que tivera e que não fora tratada... “A Anne-Marie estava comigo e era ela que servia de tradutora entre o médico e eu. O médico perguntou-me se eu me lembrava de ter tido dores de garganta ou de ter estado doente alguma vez. Disse-lhe que para além do problema com as minhas pernas, a única vez em que estive doente foi quando me levaram ao fanado e tive muitas dores durante muitos dias com perdas de sangue”. Mariama disse-me que jamais poderia esquecer-se da cara do médico quando ouviu a sua explicação. “O teu problema vem daí. Tiveste uma grande infecção que não foi tratada e ela atacou o teu coração, disse-me o médico. Recordo-me de ele me ter falado em válvulas no meu coração. Confesso, que não sabendo o que eram válvulas, não entendia nada do que ele me dizia. A única coisa que retive foi que ele disse que se eu não tivesse um tratamento imediato, dificilmente viveria para além dos 15 anos, porque o meu coração não aguentaria. Mais tarde vim a compreender que sofria de um aperto mitral e que só uma intervenção cirúrgica, quando fosse adulta, poderia corrigir”.
Porém nem tudo tinha sido diagnosticado no organismo de Mariama, consequência da sua iniciação. Quando teve as suas primeiras regras, um novo espectro despontou. Com hemorragias que iam de um ciclo ao outro, novo tratamento lhe foi imposto. Ela corria o risco de ter graves consequências ao nível do aparelho reprodutor.
A primeira operação ao coração de Mariama foi feita dois dias depois dela ter completado 21 anos. Tudo correu bem e Mariama sentiu-se reviver. Um ano mais tarde, sofrendo de fortes “dores de barriga” foi-lhe diagnosticado um entupimento das trompas, também consequência de uma infecção não tratada. Duas intervenções cirúrgicas se seguiram no espaço de um ano para corrigir o problema. “Mas já era demasiado tarde”, disse-me Mariama, “estava definitivamente condenada a jamais poder ter um filho!”.
Inconformada com a sua sorte, Mariama começou por se revoltar contra a iniciação a que fora submetida quando criança. Quis compreender a razão dessa prática que na sua tabanca era justificada pelas disposições do Alcorão, respeitadas ao longo dos séculos por todas as gerações de mulheres. Soube da existência de uma associação contra as mutilações sexuais da mulher que desenvolvia todo um trabalho de sensibilização junto das comunidades africanas imigradas na Bélgica e a ela aderiu. “Vim a descobrir que afinal a obrigatoriedade da excisão não era uma imposição do Alcorão nem de nenhuma outra religião, mas uma prática bem anterior à religião islâmica. Há uma confusão muito grande entre religião e tradição e essa confusão vem da própria ignorância das populações. Fechadas no seu mundo tradicional, as pessoas desconhecem as consequências de certas tradições ancestrais e por isso continuam a dizer que devem praticá-las porque é assim que manda a tradição. Sempre foi assim, por que deveriam elas cessar a tradição? E as mortes ou os problemas de saúde que daí advêm, como aqueles que eu tive, a esterilidade das mulheres que são repudiadas pelos maridos por não poderem perpetuar a descendência são justificados pela “vontade divina”quando não são o “mau olhado da combossa invejosa”...” Este discurso, Mariama levou-o até à sua tabanca para convencer os seus a deixarem uma prática que nada tem de religioso e que apenas responde a uma tradição que os conhecimentos actuais de medicina condenam pelas gravíssimas consequências que tem para a saúde da mulher. Apoiada por uma ONG, ela conseguiu o seu intento. As duas mulheres da tabanca que se dedicavam à excisão foram “reconvertidas profissionalmente”, tendo cada uma recebido uma máquina de costura, tornando-se assim as costureiras locais.
A vida de Mariama foi marcada por dois casamentos e dois divórcios por causa da sua esterilidade e por longos e frequentes períodos no hospital para consultas, exames e hospitalizações para tratamentos e intervenções cirúrgicas. Não obstante, a sua saúde foi sempre frágil, mas o combate em que se empenhou foi a força que a animou nos momentos mais difíceis. Guardamos o contacto quando vim para a França. A última vez que falámos ao telefone foi há cerca de um mês atrás e Mariama disse-me que deveria ser novamente hospitalizada por causa do seu “coração que se tinha tornado caprichoso”. Disse-me isso entre duas gargalhadas.
Ontem à noite por volta da meia noite, o meu telefone tocou. Como de cada vez que o telefone toca a essa hora o meu coração sobressalta, o que é natural quando se vive longe da família. A essa hora nunca é uma boa notícia que se anuncia. Com um tremor nas pernas fui atender. Não era uma chamada da minha família, mas foi como se fosse. Uma amiga minha e de Mariama, em soluços, anunciou-me: “Mariama est décédée cette après-midi.” (Mariama faleceu esta tarde.)
***
O relato que aqui faço da vida desta minha amiga é uma homenagem que lhe dedico e através dela a todas as “Mariamas” por esse mundo fora “vítimas da excisão”, tal como ela se definia.
Neste momento, em que a Assembleia Nacional se prepara para legislar sobre a mutilação genital feminina, penso particularmente nas minhas compatriotas guineenses, confrontadas com esta prática e indefesas perante a força da tradição e a incompreensão das próprias comunidades. É um dever dos representantes da Nação dar-lhes a protecção de que necessitam, o único recurso com que de imediato possam contar, esperando que o progresso e a ciência venham a convencer a sociedade no seu conjunto da justeza da abolição de uma prática nefasta e contrária aos direitos humanos!
VAMOS CONTINUAR A TRABALHAR!
Projecto Guiné-Bissau: CONTRIBUTO