VIIREFLEXÕES DE UM NACIONALISTA
HELDER MAGNO PROENÇA OU OS CAVALOS TAMBEM SE ABATEM
INTRODUÇÃO OU PORQUÊ ESCREVER? ESCREVER PARA QUE?
Toda dor pode ser suportada se sobre ela puder ser contada uma história”
HANNAH ARENDT
Fernando Jorge Pereira Teixeira * Hoje, por obra de um feliz acaso, encontrei estas palavras da politóloga Hanna Arendt que são as que mais se aproximam do meu pensamento e tese sobre a obrigatoriedade moral de escrevermos sobre nós (como povo, nação ou indivíduos) e o nosso processo histórico. E quando digo escrever, falo em filmar, teatralizar ou musicar. Usando todos os géneros de arte que o ser humano dispõe.
Encontro centrado nelas a síntese que há muito procurava para a cabal clarificação do meu pensamento sobre o que tenho querido expressar quando vos falo sobre a necessidade de escrevermos as “histórias das nossas vidas”. Leio e releio esta frase simples e bela, maravilhado com a capacidade da autora em sintetizar em tão poucos vocábulos uma tamanha verdade. Uma verdade que também é nossa, dos nossos compatriotas e que quero contar em nome dos que não o podem fazer. Porque morreram ou foram destruídos como seres humanos.
Pois cada um de nós, morto ou vivo é uma folha na árvore da Nação e cada um deve ter a importância devida e certa. E como as folhas secas que adubam o chão para fortalecer a raiz da árvore mãe, os nossos mortos adubam a raiz da Árvore-Nação e não devemos subestimar a sua importância na criação do nosso imaginário colectivo. Pois povos que não têm memória não sobrevivem a períodos desastrosos.
Se Hanna Arendt escreveu estas palavras pensando porventura nos milhões de Judeus que foram exterminados nas câmaras de da morte dos Nazis, eu s leio pensando nos nossos mortos que tanta falta fazem hoje na construção social, cultural e económica desta nossa pobre Pátria.
Porque a nossa Pátria não são apenas as terras, as florestas, as bolanhas, os rios e o nosso maravilhoso mar, a Pátria somos nós, os homens, as mulheres e crianças, todos filhos desta terra e filhos dos seus filhos nascidos ou não neste triângulo. E não só, pois o Estado-Nação é feito também dos nossos sonhos, das nossas realizações, do nosso passado e presente, dos nossos mortos, das nossas vidas individuais, do nosso amor ao nosso berço. Por isso devemos escrever como forma de mantermos viva a esperança num País melhor que todos almejamos e através dessa esperança manter viva o espírito da Nação.
Pois embora um povo possa não ter Pátria, ou uma Pátria como merece e devia ter, quando ela é uma nação de facto, formada por seres humanos claramente pertencentes não apenas a um território, mas com uma mesma visão do mundo, pode sobreviver.
É neste pressuposto sagrado que se encontra o cerne do meu entendimento sobre o escrever sobre “as nossas vidas”. Falar de nós, das nossas vitórias e das nossas derrotas como povo - e como indivíduos isolados - mas no contexto abrangente da Nação, com o viver (e morrer) do nosso Povo como pano de fundo, não é “conta(r) passsada(s)”; Não é um exercício fútil de auto-glorificação, mas uma forma de resistência aos males que nos assolam. Por isso, escrevendo, contando o que aconteceu - e contando o que não aconteceu, mas que devia ter acontecido - pensando e analisando o resultado obtido, redimiremos a nós mesmos das nossas amaras, anímicas e reais. Pois as ideias nascem da nossa cabeça mas - igual a um filho que abandona a barriga materna - para poderem existir, não podem viver ali permanentemente; têm que viver a sua vida independentemente de quem as gerou e só podem viver no papel ou através da escrita.
Alem de que tudo isto nos remete para um outro nível moral, porventura mais elevado. Só temos uma dicotomia: o silêncio ou a escrita. O silêncio é criminoso e atentatório a dignidade e aos direitos do povo. Sei que há os que preferem que não se escreva, que não se diga nada, que quanto pior, melhor. Pois eles vivem do pior e sabem que no melhor não sobreviverão. Aqueles para quem a Nação é apenas um lugar-comum, sem nenhum interesse ou significado profundo. São aqueles que nem se apercebem (como muitos antes deles) que a hora de todos pagarem chegará tarde ou cedo. E o facto de viverem bem a custa da desorganização os fará (um dia) morrerem mal a custa dessa mesma desorganização.
Isto para repetir o que já foi dito aqui, pois nunca é demais repetir que se é verdade que “os homens escrevem a sua própria história… mas…sob determinadas condições que lhe são impostas” como disse o incontornável Karl Marx - então nós Guineenses escreveremos também a nossa História mesmo sob as adversas e criminosas condições que nos foram impostas.
Urge apenas saber “que condições nos foram impostas” que levaram ao nosso falhanço comum como Povo e como Nação. E como “essas condições” nos levaram ao que chamei de total “Descalabro Nacional”. E isso, ninguém nos dirá, nem Deus Todo-Poderoso, só saberemos através do que escrevemos, contando as nossas estórias que são parte da história maior do nosso povo e no fim teremos as respostas todas, mas o mais importante, teremos os instrumentos para a reversão deste vergonhoso estado de coisas.
Sei que será difícil encontrar o trilho no labirinto dos eventos criminosos, incompreensíveis, extremamente nefastos que nos levaram a este momento histórico, mas acredito que o meu primeiro dever como cidadão íntegro e amante do meu País é emprestar as minhas capacidades, o meu pensar, as minhas recordações e por fim a minha caneta ao meu povo, para me redimir perante ele e através desse acto ser o mais humilde dos seus filhos. Só assim posso me por no lugar do último dos Guineenses e sentir a sua profunda dor. E através do seu imitigável sofrimento, conhecer a profundidade do sofrimento da Nação e lutar pela sua redenção.
. PRIMEIRA PARTE SILENCIO DOS VIVOS
I FALAR VERDADE OU O DEVER DA MEMÓRIA
Quando
te propus
no extenso breu de canto e morte
H. M. Proença, In “Quando te propus”
Hoje, depois de mais de um ano já ter passado sobre o dia da morte do Hélder Proença - e rios de tinta terem corrido sobre as circunstâncias e porquês -, penso que chegou a hora de dizer algumas palavras sobre ele. Obedeci a tradição de que devemos “guardar o luto” respeitando a memória do defunto num silêncio solene e prenhe de significados, como ele diria “se soubesse que morreu”. Independentemente de o silêncio ser as vezes mais ensurdecedor do que gritos de dor que escutei nesse já distante dia da infâmia, no nosso cemitério de Bissau.
Durante estes primeiros doze meses, seguindo o preceito, não escrito, de que “dos mortos não se fala ou só se fala para dizer bem” - o silêncio era de ouro -, por isso calei-me curvando-me respeitosamente perante o luto e a memória.
Para quebrar este meu silêncio resolvi, escrever sobre ele, escrever parte da história das nossas vidas. E falar também desse dia triste do teu funeral, em que não visitei a campa dos meus avós, embora estivessem ali ao lado, pois a dor era outra, nova e desconhecida; e a premência dos passos, da decisão - dentro do meu espírito - tinha mudado de cadência.
Mas este escrever é “pensado” pois só vale se não magoar, só vale se servir um propósito, o propósito de nos fazer reflectir sobre a nossa Pátria serenamente, numa procura permanente de soluções para problemas que parecem insolúveis. Este “escrever para pensar” quando o objecto do pensamento é político - não no sentido estrito de procura do poder, mas na política no verdadeiro sentido nas suas diversas manifestações; no sentido da política que actua na História, mudando o seu curso e sentido, - deve ter a sua realização final num “agir consequente” e não ser apenas palavras. Por isso considero “escrever por escrever” mais nefasto que o “não escrever”.
Por isso, mais do que um “dever da memória”, quando falamos de Hélder Proença, neste especifico contexto político, não estaríamos a falar de um familiar, um amigo, correligionário, inimigo político ou alguém pertencente a uma outra categoria qualquer. Estaríamos a falar de algo que já pertence a Nação (a sua História no geral ou a história da Luta Politica Nacional nestes “tempos primeiros da construção”) e sendo propriedade da Nação esta acima de todas as questiúnculas passadas. Pois mesmo que ele tivesse cometido erros, não governando como devia, praticado crimes (o que é sustentado por alguns), devemos aproveitar o seu trágico desaparecimento para – lembrando as amargas palavras ditas no seu panegírico fúnebre, pelos familiares e amigos - criar um mundo melhor. Pois um mundo novo só pode ser construído sobre alicerces feitos de cadáveres dos que morreram durante e por esse porvir.
Há homens, que por motivos que nunca podem ser totalmente explicados, encarnam neles todos os anseios, esperanças, desilusões e frustrações de uma época e quiçá de um povo. Todas as glórias e desaires políticos nacionais, todos os bons momentos, todos os maus momentos de uma Nação, de uma forma ou outra estão associados a eles. Geralmente quase sempre são no mesmo indivíduo, a “bondade intrínseca” e a “maldade pura”. Casam na mesma pessoa a “esperança infinda” e o “desespero total”. Serão o germinar dos sonhos e as cinzas da desilusão de toda uma geração. Na vida colectiva estão sempre presentes, nas boas e más horas, em todas as horas. No momento de aniquilar e no instante de salvar. E as vezes sem ter a noção profunda do que representam ou poderiam representar. Na nossa jovem Nação, se há alguém que entendo pertencer a esta categoria de homens - que não tendo participado na Luta de Libertação (e consequentemente não tendo a legitimidade histórica dos que participaram na epopeia de Cabral), veio a incarnar toda essa imutável e gloriosa herança, para o bem e para o mal - esse sem dúvida foi Hélder Magno Proença Mendes Tavares de seu nome.
Mas para mim pessoalmente existe outra dimensão humana dada pelo facto de Hélder Proença ter sido o meu professor liceal num tempo em que o ofício de ser professor era algo valioso aos olhos dos educandos e respeitado pela sociedade em geral, lhe deu uma outra dimensão no meu espírito, num tempo da minha vida que hoje considero os meus anos de formação mais importantes. Por isso querendo ou não, ele fez parte do meu mundo, do meu imaginário e do meu existir. E por força de acasos e reconhecimento mútuo de valores, cheguei a conhecê-lo bem e a privar com ele; de admirar o seu saber e o seu profundo acreditar; de sentar ao seu lado num banco de jardim do Liceu para descontraidamente rirmos de acontecimentos engraçados e ficar silenciosos face a coisas graves que se sucediam a nossa volta nessa altura, há quase trinta anos.
Mas, ainda mais importante que o facto de ter sido meu professor e de certa forma meu mentor, naquela fase de transição entre a adolescência e a vida adulta, em que as impressões são mais fortes e o carácter toma o seu talhe definitivo. E nessa fase da vida, em que a vida é plena de descobertas e em que cada dia é um sonho que só o sono da noite interrompe. Eu que li o “Manifesto” pela sua mão e aprendi para sempre que “não basta compreender o mundo, mas o que importa é transforma-lo”.
Então como posso abordar com imparcialidade a vida (e morte) deste homem? A esta pergunta, que antecipo, por saber que ela se porá fatalmente, respondo da seguinte maneira: Se falar do Hélder Proença, quando vivo, já era um exercício complicado - tanto pelo carácter e crenças da pessoa, como pelo percurso de vida -, depois de morto a dificuldade é ainda maior. E para dificultar tudo o mais, tendo sido morto - e da maneira como foi - toda a percepção e análises podem ficar inquinadas apriori; pois haverá sempre quem queira ver nele um mártir da causa do povo, quem veja nele um homem justo e lutador pelos seus ideais até ao fim; mas da mesma maneira, haverá quem veja nele um traidor a Pátria, um simples oportunista politico, um individuo inescrupuloso, etc., ; e infelizmente cada um desses olhares (dependendo do observador e do ângulo de visão) seria justo; Pois de certa maneira, cada uma dessas apreciações conterá um pouco de justiça dos homens (pois a de Deus nunca saberemos). Mas a verdade – a verdade verdadeira - essa categoria pertence a outra dimensão. E a sua transcendentalidade me impede de a abordar; Por isso mesmo, aqui não posso falar da verdade, pois acerca de homens como Hélder Proença, que nunca foi uma pessoa consensual, a verdade nunca é ou será só uma; Cada um terá a sua: A que mais lhe agradar e a mais próxima dos seus interesses imediatos ou não, independentemente da justeza ou não de outras. Mas mesmo isso é melhor, pois a “meia verdade” é pior que uma “mentira inteira”.
Mas mesmo correndo o risco da “minha verdade” não ser a “verdadeira” obedecendo o chamamento do dever, deste “dever da memória” a que não posso furtar-me, devo escrever sobre ele. Alem de que entendo, que o meu dever de cidadão comprometido com o meu país, a minha obrigação de simples ser humano, a isso me obriga. Aqui, mais uma vez, não é uma questão de querer ou não, é uma questão de ser digno ou indigno, de ser um bandalho apenas, como tantos outros, ou ter um pouco de dignidade e dizer o que deve ser dito.
Pois “a felicidade não é o fim do nosso ser, mas a dignidade de ser feliz”, se vivermos segundo este preceito, a nostalgia não será por quem perdemos ou por aquilo que perdemos, mas por aquilo que foi mal feito, por aquilo que poderíamos fazer e não fizemos, por aquilo que podemos salvar ainda para melhorar a vida do homem nesta martirizada nação.
II
A RESPONSABILIDADE DE QUEM ESCREVE OU AS VÁRIAS INCARNAÇÕES DE HELDER PROENÇA
vi a virtude dos homens sem amanhã...
H. M. Proença, In ”Nas noites de N`djimpol”
Alguém disse que quando Amílcar Cabral tinha um problema complicado para resolver, escrevia longamente sobre ele “como se o simples facto de escrever sobre isso resolve-se por si só o problema”. Creio que os motivos do Amílcar, nesse particular, eram outros, pois esse homem de quem o próprio Ernesto (Che) Guevara disse que era: “… o dirigente africano de maior talento e o que mais o tinha impressionado”, não podia “escrever por escrever”.
Acho, modestamente, que os motivos do Homem, quando escrevia, eram mais parecidos com os meus no entendimento que só escrevendo sobre as coisas, conseguimos discernir - o principal do acessório, o conteúdo da forma e muitas vezes o certo do errado – e penetrar na essência das coisas do que simplesmente pensando sobre elas, mesmo que atenta e profundamente.
Creio que quando Cabral sintetizou parte da sua filosofia em “pensar para melhor agir e agir para melhor pensar” podia ter partido de uma outra intuição que eu verbalizaria por “escrever para melhor pensar e pensar para melhor escrever”. E jogando com palavras, colocando-a antes e depois da famosa asserção, numa certa lógica forçada de continuação, obteria: escrever para melhor pensar, pensar para melhor agir, agir para melhor pensar, pensar para melhor escrever com isto querendo dizer que in fact não há outra maneira de “pensar”. Pensar sem escrever é não pensar.
Mas como escrever não é o mesmo que copiar, o escrever significa: pensar (analiticamente) e sistematizar - passando da ideia inicial a sua antítese, que depois determinaria a sua síntese e por fim a tese final, como todos sabemos. O “acto de escrever” é para mim, na verdade, o momento que o nosso ser se divide em dois e discute consigo próprio, sobre a verdade das coisas e depois, não menos importante, sobre a forma como a verdade deve ser contada.
Quando se escreve algo sobre um célebre vulto da nossa intelectualidade - num País paupérrimo quanto a essa classe de pessoas como o nosso – já desaparecido, e que ao mesmo tempo era um político com relevância durante mais de trinta anos, aguerrido, orador brilhante, ensaísta capaz e poeta consagrado, a nossa responsabilidade pessoal é enorme. Pois independentemente de sermos seu amigo ou inimigo, admirador ou adversário, a escrita tem que ter qualidade para não dizer que temos que ter algum talento. Por isso o texto tem que sublimar a prosa e enaltecer a poesia; tem que conter escrita de bom gosto, tanto em ideias e alegorias, como na gramática (sem cair no gramaticalismo é claro); tem que ter rima e ser de alguma forma rítmico (pois na rítmica infelizmente não somos versados) como uma canção no estilo n`gumbe. Em suma, as palavras terão que ter o dom de encantar e não só de fazer pensar. E nossa gente precisa tanto de ser encantada neste seu amargo dia a dia.
E nesta empresa de falar com responsabilidades, isenção e encantamento de alguém (de quem fui amigo genuíno) – que nunca será consensual, - não sou a escolha ideal, o escriba mais indicado; nem no que se refere apenas a “honestidade das palavras”; porque quanto a forma e ao estilo, a escrita cuidada e de “bom gosto”, de que falava antes, também não sou o melhor: eu que dou primazia as ideias em detrimento do texto - eu que amo as frases e não as palavras – eu que odeio os pontos (sejam exclamativos, interrogativos ou finais), as virgulas e os traços – por mais belas e fortes que sejam. Eu a quem dizem que escrevo textos longos de mais para o Guineense pois este não gosta de ler; a quem alertam que os Guineenses não tem hábito de leitura e só lêem quando obrigados; a quem aconselham a escrever apenas uma página de 25 linhas de cada vez, pois os meus compatriotas não têm paciência para ler mais que isso de cada vez. Eu que ouvindo esses conselhos respondo que sou Guineense e leio mil e quinhentas páginas em menos de quinze dias; eu que respondo que só por isso o argumento é falso; eu que respondo que não posso escrever pouco ou muito porque isso não depende da minha vontade; Pois eu “não escrevo por escrever”, cada texto que escrevo é algo que sai do fundo meu ser, como expiação por nada ter podido fazer para não chegarmos ao que chegamos. Mas agora tenho que continuar:
Há homens, que pela sua dimensão - para compreende-los, temos que separa-los em partes distintas e assim permanecerem no nosso entendimento. E nunca casar essas partes de novo, se não todo o edifício ruirá como um castelo de cartas.
O patriota, o político, o correligionário, o poeta, o pai, o irmão, o marido, o amante, o amigo, o inimigo, cada faceta de um grande homem (existe a grandeza negativa), quando separados dão uma ideia parcial do todo, mas quando unidos, em vez de aprimorar a visão, dão contrariamente uma ideia caótica do “todo”. Porque embora o todo é feito de partes, no ser humano quando olhamos para o todo só conseguimos ver partes. Por isso nunca tentem juntar essas partes distintas - na vossa mente elas devem ser sempre distintas -, pois o resultado nunca dá a verdadeira dimensão e nem nos apresenta a “verdade verdadeira” sobre essa pessoa. Os filhos devem olhar para o pai e ver apenas um pai, a mulher apenas para o marido. Os amigos não devem querer saber da parte política, os militantes do seu Partido não devem analisar a vida social ou privada. O que é do foro privado deve permanecer privado.
Mas a parte política principalmente deve ser aclarada antes da nossa morte, senão ficara sempre dentro do domínio da incompreensão e da especulação. Pois diferentemente da nossa vida privada, a política é essencialmente pública. E no nosso caso ser um Político deve abarcar uma responsabilidade que ultrapassa o simples “servir”, mas sem nunca tornar-se no “servir-se”. Servir a Pátria pressupões sacrificar-se, mas inerente ao sacrifício deve haver recompensa. Mas só num País organizado este direito é observado.
A vida de Hélder Proença se confunde com a história recente desta Nação, desde o dia da Independência até aos dias de hoje. Desde a sua fuga para “o mato” nos anos setenta, nos finais da Luta de Libertação Nacional, até o dia da sua morte, ele foi a encarnação viva da esperança dos jovens num jovem País promissor e com um futuro auspicioso. Deu tudo que um ser humano poderia dar ao projecto do PAIGC: deu a vontade, o saber, o dom, o acreditar profundo e por fim a própria alma, incarnando nele - mais que ninguém da sua geração - o regime, com todos os seus defeitos e fracassos. Aceitando o bom e o mau estoicamente da mesma maneira, como aceitamos os familiares que temos, sejam eles bons ou maus. Faço antologia com familiares, porque o PAIGC de certa forma, num certo tempo, era a família de Hélder Proença.
Hélder Proença - como o jovem tenente Raul de que já falei - acreditava profundamente no Partido; respirava o Partido por todos os poros; tinha o Partido imbuído no seu ser. Se havia pessoas que pela sua dedicação e entrega a causa, personificavam o Partido, Hélder Proença era uma dessas pessoas. Identificar-se com o Partido na altura, para quem como ele, ainda era um jovenzito, não era coisa de se fazer de ânimo leve. Nessa altura o Partido não era uma abstracção ideológica, um clube de bons amigos, como agora são os Partidos Guineenses. Era uma máquina poderosíssima - servido por um exército fanático e um sistema policial desumano - imbuído de um sentimento de inefabilidade desastroso, alicerçado numa ideologia cruel e uma pratica sanguinária. O PAIGC era em suma um aparelho repressivo extremo, capaz de destruir uma vida humana de um momento para o outro sem nenhum remorso ou consequências de maior.
E assumir e realizar as prorrogativas do Partido e Estado sem traçar uma linha divisória clara entre a nossa consciência e a “consciência do Partido”, entre a nossa moral e valores em oposição a moral e valores de um Estado ditatorial para quem a vida humana não tinha sacralidade dada por Deus era algo cada vez mais difícil. Tinha que se escolher o Partido como ele era na realidade ou romper definitivamente com ele. Por isso depois de passado o período da inocência, e sentir na pele “bardadi di partido”, este jovem viria a ser um dos rostos da desilusão (juntamente com ele dezenas e dezenas de outros, verdade seja dita), uma desilusão inconsequente que não os permitia romper com a matriz, nem cortar o fio umbilical que os unia ao seu travestido Partido de Cabral.
O apoio de jovens ao Movimento Reajustador (que não reajustou nada e nem movimentou coisa alguma) veio a ser incarnada por ele, vendo nesse acontecimento a mudança decisiva que levaria o País para um novo patamar de desenvolvimento. Foi portanto de novo a incarnação da mudança esperada (e não almejada) que 14 de Novembro prometia ao nosso Povo.
Com o mudar dos tempos, com o advento da “Democracia obrigatória”, de novo nas trincheiras da luta teórica Incarnou o multipartidarismo como nenhum outro Guineense do seu tempo - maleando-o, moldando-o e escolhendo instintivamente quase até o método de contagem de votos (Hondt) que mais se adequava e favorecia o seu Partido - entendendo instantaneamente os tempos que se avizinhavam, preparou-se para perpetuar o regime (bom ou mau) que ele corporificava. E foi de uma utilidade única para o P.A.I.G.C. nesse momento decisivo. Pois a velha guarda do Partido não entendia (e nem queria entender) este novo mundo. Preferiam, simplesmente, continuar a mandar mesmo que a força, mesmo que a custa de novas matanças… Mas ele, que era da geração dos dirigentes dos novos Partidos de Oposição, conseguiu delinear uma estratégia, que os ultrapassava em todos os azimutes. Pois usando a teoria de Cabral (fazendo de Cabral propriedade privada do P.A.I.G.C.) tinha mais argumentos do que qualquer oposição (que nunca soube usar a teoria de Cabral para combater o P.A.I.G.C.), pois a teoria de Cabral é extremamente forte e valiosa em qualquer luta política, seja na Guiné ou em qualquer outro país. Pois sendo verdades evidentes por si mesmas, as ideias de Cabral são quase impossíveis de atacar ou de por em causa. Alem de que sendo pragmático (quando queria) maquiavélico a vez ultrapassava todos os obstáculos postos a frente do seu Partido. Assim Incarnou a primeira vitória eleitoral do P.A.I.G.C. que (salvaguardando as devidas proporções) quase foi sua vitória pessoal. Foi um dos estrategas mais importantes dessa esmagadora vitória que surpreendeu a opinião pública e a Oposição (e da qual nunca mais se recuperaram na verdade). Posso dizer que foi o destruidor-mor da Oposição.
Na sequência desta vitória veio a Incarnar o primeiro Governo saído do multipartidarismo, liderando e organizando a tomada do poder contra o próprio Presidente do Partido, na altura, o todo-poderoso Nino Vieira. No fundo, Incarnou a primeira oposição de facto a Nino Vieira, tendo a ousadia de o defrontar cara a cara. Ninguém antes teve essa coragem e este facto veio a ter repercussões até na futura ousadia de Ansumane Mané de defrontar o Nino Vieira. Pois ele demonstrou que isso era possível e continuar vivo para contar. Portanto depois de ganhar as eleições, travou uma guerra surda com o Nino Vieira, numa cruzada pessoal, ao ponto de obrigar este a nomear Manuel Saturnino da Costa Primeiro Ministro contra à sua vontade expressa. E nisso de novo incarnou as aspirações de centenas de militantes, que estavam contra o Presidente Vieira, mas não tinham nem capacidades nem a coragem dele para o enfrentar. Na verdade Hélder Proença serviu muita gente sem mesmo “se dar conta”. Pois as suas lutas, mesmo quando pessoais, eram sempre lutas de “muita gente”, covardes de mais para dar a cara ou apenas incapazes de lutar.
Mas este primeiro round ganho, seguiu-se ao revanche consubstanciado no derrube estrepitoso do Governo de Manuel Saturnino da Costa (leia-se do Hélder Proença) pelo Presidente Nino, numa ainda luta surda sem fim pelo poder, entre ele e o Hélder Proença.
Mas todo este processo, mal conduzido, antidemocrático, anti-Partidário e até de certa forma anticonstitucional -instigado por gente que nunca viu o Manuel Saturnino e o Hélder Proença com bons olhos - veio a desembocar infelizmente no Levante militar de Junho de 98, de que todos seriamos poupados, não fosse esse crasso erro de derrubar o seu “próprio governo” pelo presidente do Partido que venceu as eleições. Independentemente da incompetência crassa em algumas áreas e dos desmandos do Governo derrubado (que não eram poucos) e a deriva final provocado também por militantes do seu próprio Partido, este Governo era o primeiro de facto legitimo que o País conheceu desde a Independência. E é daqui que sai o fio condutor que leva a destruição do Estado e a alienação da Nação (e a sua transformação no tal “país de narcotraficantes” e por fim aos sangrentos acontecimentos actuais, para não falar do sanguinolento assassinato do próprio João Bernardo Vieira e de Batista Tagme Na Waie onze anos depois.
Mas voltando no tempo - derrubado o governo de que ele era líder na prática e teoricamente Vice-primeiro-ministro - Hélder Proença vai Incarnar de novo, de certa maneira, dentro das estruturas do PAIGC, “um certo sentir” subjacente a um descontentamento que já grassava entre os militantes (principalmente entre os antigos combatentes) que com os saldos cumulativos e militantes ressabiados, desembocaria na revolta de Ansumane Mané e seus companheiros e a subsequente expulsão do Nino Vieira do País. Sempre que as tempestades se abateram sobre o Partido, incarnou as divisões no seu seio como nenhum outro, liderando, clarificando e condicionando “as alas” e sentimentos com uma força interior raramente perceptível.
Não sei se ponderou, não sei se hesitou, não sei se o “cordão umbilical” ao PAIGC/ala política - O PAIGC sempre teve um problema nunca resolvido entre a sua ala política e militar - falou mais alto, mas entendo que se Hélder Proença se tivesse unido aos revoltosos de Junho de 98, como muitos outros políticos, teria dado o peso político e orientação ideológica clara que faltou ao Levante. E as coisas não teriam tido o resultado que viemos a assistir hoje com este descalabro nunca visto em todas as estruturas do país. Pois quero acreditar que os contestatários deixariam de ser simples revoltosos para serem o inicio de uma verdadeira revolução e o nosso exército no fim deixaria de ser esta soldadesca política para se tornarem no autêntico exército republicano porque tanto anseio. Digo isto como pura hipótese teórica, mas plausível, pois era o oposicionista mais notório ao Presidente, tinha coragem e algumas ideias. Tinha desfiado Nino e sobrevivido (estava ainda vivo, na altura do Levante de 1998, para provar isso mesmo), portanto tinha algumas cartas para dar. Mas a sua formação partidária e a “lealdade” que o unia a uma “certa ideia” nostálgica do Partido - que ele incarnou como ninguém muito jovem - não o permitiu ser opositor ao seu “próprio” Partido; pois, no início do levantamento, na hora de perigo, feita as contas, os militantes pensaram que tinham mais a perder com o Ansumane Mané do que com o Nino Vieira e o PAIGC em peso resolveu unir-se a volta do seu Presidente, num estranho exercício de lealdade de última hora. Não deu em nada como se sabe e algum tempo depois eram outra vez todos contra o Nino na sua maioria. E Nino Vieira tinha noção destas “lealdades” transitórias, por isso falava de um “País de traições”.
Depois da Guerra, o Hélder Proença, veio pela primeira vez incarnar a humilhante derrota do PAIGC e a sua ida para a Oposição pela primeira vez na nossa história, no que também foi quase uma derrota pessoal para ele. O tempo da travessia do deserto foi longo, mas de novo, qual a Fénix renascendo das cinzas, incarnou novamente o regresso desse Partido ao Poder. Mas um poder que já não era dele. Um poder que não era poder. Pelo menos na maneira como ele entendia a capacidade de utilizar o poder. E numa situação limite, numa decisão limite, Incarnou por fim o regresso do NinoVieira ao Poder mais uma vez - numa mistura de valores, cálculos, medos e resignação, que lhe viriam a ser fatais - já pela sua mão e de Tagme Na Waie. A consequência desta volta acerbou profundamente os velhos ódios e inimizades no seio do PAIGC. Discute-se muito a ligação possível ou não entre a morte de João Bernardo Vieira e Batista Tagme Na Waie mas esse fio condutor desemboca de certa maneira também na morte de Hélder Proença, que foi superior hierárquico deste último, quando foi Ministro de Defesa.
E por fim a sua última incarnação concentrou nele toda a discórdia interna no PAIGC, toda a luta pelo Poder nos bastidores, e por fim ele esteve no fulcro da “fase final” da guerra das “alas” dentro do PAIGC, tentando ou não tomar o Poder, no que veio a tombar. Esta guerra pelo poder, que não foi despoletada pela da morte de Nino Vieira, pois já existia, foi potenciada ao extremo por este acontecimento. E essa luta pelo poder, envolvendo todo o PAIGC nas suas diferentes alas, os militares nas suas diferentes sensibilidades e lealdades, o poder político em geral e quiçá vários sectores de partidos da Oposição, teve como desfecho a sua morte porque no fundo no momento da sua morte ele incarnava (querendo ou não) de novo várias sensibilidades, alas, sectores e lealdades. Posso afirmar que a sua morte, independentemente de factores objectivos - como os mandantes e executores – e subjectivos - como quem beneficiaria ou quem no fundo veio a beneficiar, foi o resultado desta sua derradeira incarnação.
Era um homem com rara coragem goste-se ou não dele, temos que reconhecer isso. Pois um homem que na política procurava consensos, mas quando o não conseguia, não hesitava em ficar isolado contra a maioria, independentemente de estar certo ou errado, tinha coragem política e - mais importante - coragem pessoal. Pois esse ficar isolado no nosso sistema político, poderia acarretar não apenas o segregação e falta de meios para sobreviver, como podia no limite acarretar a própria morte. E isso, ele compreendia muito bem. Por isso esta é uma questão que nunca será pacífica, mas quem viveu neste mundo até os trinta anos e não tem inimigos, não viveu, apenas vegetou. Quem tem um espírito indomável sempre tem muitos inimigos; e raramente dos inimigos podemos fazer amigos depois de fazermos as pazes. Dos inimigos podemos fazer amigos só quando a inimizade era por uma questão de princípios. Quando é por inveja e pequenez de carácter, esta tudo perdido; não há nada a fazer, pois esses, quando passam para o nosso lado e fingem amizade, são-no apenas por interesse. Mas o mais importante, é que todas as incarnações do Hélder Proença tiveram profundas consequências no devir e terão ainda porventura, no porvir do nosso povo.
O Hélder Proença merece ser lembrado, como um dos primeiros Guineenses que pode ser apelidado com toda a justeza de “um Politico Professional”. Foi de facto um Politico toda a vida, desde que percebeu que como politico podia influenciar mais o destino do seu País do que sendo um engenheiro ou um advogado, por mais competente que fosse. Apenas um Politico e nada mais. O poeta era político, o pensador era político. Mesmo que for apenas por todo este tortuoso percurso político, independentemente da justeza ou não das suas acções ele merece ser evocado sempre que se fale da nossa recente história politica. E isso não deixa de ser importante e justo, independentemente da opinião que este escriba possa ter das suas actuações
III
OS DIAS DA RÁDIO OU A SEGURANÇA É O INIMIGO
Este silêncio eterno Esta música permanente Este retrato multifacético do luar e da agonia Digo-te Não posso adiar a palavra, Sundiata (…) Esta é a noite do perfume
H. M. Proença, no “Canto a Sundiata”
Na noite em que Hélder Proença morreu - ou devo dizer “na noite em que foi executado? Há quem defenda que ao falar de alguém que foi assassinado, não temos o direito de referindo-se a ele, dizer apenas que morreu, pois seria uma tremenda falta de respeito para com o finado”, - fui acordado de rompante na madrugada quente, por uma voz agitada - mas sem emoção, como se o que me transmitia fosse algo anormal, mas ao mesmo tempo, de uma fatalidade anunciada, inexorável e inevitável - que em tom de aviso e novidade, a vez, sem transitoriedade no timbre, me disse: - Não saias de casa hoje! Não vás correr hoje! Acabaram de abater Baciro Dabô na sua casa e possivelmente abateram também o teu amigo… e nunca se sabe o que pode acontecer hoje… - Que amigo? - Hélder Proença!
Estas duas palavras ficaram a ecoar no silêncio pesado que deu lugar a nossa conversa. Não ouvi mais nada do que me disse, até que apercebi-me do ruído intermitente do telefone desligado. As palavras ecoavam na noite, na minha cabeça numa estranha desordem axiomática que exigia uma ordenação rápida. Os nomes, os apelidos, o acto em si, os sacrificados, os executores, o móbil, mandantes (se os houvera), a pertinência de matar e não prender, o momento político que se vivia, tudo precisava ser analisado e ordenado numa velocidade de cruzeiro para que a meu cérebro voltasse a normalidade. Pousei cuidadosamente o aparelho, como se tivesse medo de estragar esse objecto que de repente tornou-se importante, por ter sido o veículo de transmissão da inacreditável notícia que acabara de escutar.
Na verdade não sei se o mensageiro disse possivelmente ou provavelmente pois estou a traduzir do crioulo - que não tem a diferenciação lexicográfica destas palavras - tentando lembrar cada pequeno detalhe, mais de um ano depois, longe do sítio dos acontecimentos, aqui em Portugal, hoje 25 de Julho de 2010.
Mas a palavra que me impressionou profundamente foi Abater. Abater significa de facto matar, mas também significa cortar ou derrubar quando se trata de árvores. Também pode significar humilhar ou prostrar quando se trata de homens. A palavra abater também significa derrubar, humilhar, prostrar e matar, entre outras designações.
Levantei-me de imediato e tacteei no escuro da casa sem luz, procurando um coto de vela que acendi. O quarto estava quente como sempre, abri a única janela, respirei profundamente o ar húmido, tentando irrigar de oxigénio o meu cérebro. Foi só um minuto para voltar a pegar no telemóvel e ligar ao A. (Este A. de quem gosto mais que um irmão, que um dia, lamentando os meus lamentos e sofrendo o meu sofrimento, me disse, inocentemente, que o meu “problema” era gostar de mais a Guiné. Cada problema que arranjamos para as nossas vida, não é?) que já estava acordado e me confirmou ter também essas mesmas informações. Então não havia dúvidas nenhumas; já era notícia que se propagava como fogo na lala através de sms que cada um mandava para cada qual…
Abri a janela de novo e assomei o rosto de novo na escuridão de breu da noite de Bissau, precisava de respirar o ar puro longamente para interiorizar até as entranhas. A noite estava a despedir-se e no lusco-fusco da aurora que se aproximava timidamente… uma suave aragem me fez estremecer; a lua deixava um lastro de prata por entre as folhas da nossa amendoeira: um cão ladrou lá para os lados de Gã Fernandes, para logo se calar; um cheiro adocicado invadiu as minhas narinas despertando todos os meus sentidos. Senti medo, senti de novo um calafrio e lembrei-me do teu “Canto a Sundiata” e só então percebi que essa noite dentro da qual me encontrava - que teimava em não partir – era a “noite do perfume” que há muitos e muitos anos antes anunciastes. E então senti mais do que soube que nesse preciso momento, também os teus “olhos de ver morrem na doçura prateada do horizonte”, fazendo com que os meus olhos avistassem a madrugada ainda vestida de cacimbo, esperando pacientemente a sua hora num lugar qualquer da nossa terra, onde o teu maltratado corpo jaz… já esperando, ainda coberto de sangue, a hora da Ressurreição.
Por fim, esquecido de que os homens ainda são bestas ferozes - contra o conselho dado no telefonema amigo - fechei a janela, vesti o meu fato de treino e sai para a rua. Resolvi dirigi-me para o Estádio Lino Correia, como habitualmente fazia todas as manhã, durante as minhas férias. O meu cérebro latejava mas sei que nos momentos de dor e frustração, a melhor solução é refugiar na rotina. O estádio estava silencioso e vazio nesse triste amanhecer. Andei lentamente até ao “portão de Benfica”, para depois fazer o caminho inverso, descendo para o “portão de Sporting”. Lembro-me que chuviscava levemente, assim sentindo o respingar da chuva, meditando, fui andando de novo até ao “portão de Solteiro”. Nessa quietude conseguia sentir o ruído estranho e ríspido da área a ser calcada pelos meus pés fazendo as minhas obrigatórias voltas. Não tinha a concentração necessária, mas como também não podia ficar fechado em casa, depois de uma notícia dessas, tinha que ir ao menos caminhar um pouco… Afinal não é todos os dias que ficamos a saber que o nosso País, independentemente de todos os males que já lhe mortificava, tinha-se transformado de noite para o dia num sítio em que já se abatem pessoas nas ruas e em casas, como cães raivosos…
Mas não queria pensar, nem sentir, queria incubar a dor no meu ser e deixa-lo fluir no limbo da minha existência, até parir o ódio silencioso, aquele ódio que não tilinta, que não diz “estou aqui”; aquele ódio que é apenas pressentido e nem no olhar transparece; aquele que é o pior dos ódios, aquele que de tanto estar presente dorme connosco e acorda connosco, até fazer parte intrínseca do nosso ser e confundindo-se com ele; até o nosso ser tornar-se apenas ódio; ódio que respira, ódio que caminha… É isso eu não lhes perdoo, pois não é uma questão de quem foi morto, mas uma questão terem transformado o nosso país nesta vergonhosa e abominável pocilga, onde tudo é permitido.
Foi nesse dia, andando no Estádio Lino correia que decidi começar a escrever procurando um “ponto de restauro” para o meu país. Na informática, quando o computador que começa a dar problemas, mas ainda contem coisas valiosas que não queremos perder, procuramos um “ponto de restauro” (o ponto partir da qual a maquina ainda pode funcionar). Se tiver que resumir numa frase tudo o que escrevo, devo dizer que a minha escrita é a “a procura de um ponto de restauro” para o meu País.
Tinha chegado a Bissau no mês de Abril vindo de Lisboa, uns dias depois do meu aniversário e umas semanas depois do assassinato do Presidente João B. Vieira. E do C.E.M.G.F.A., quando ainda toda a cidade só falava dos acontecimentos. Tentei conhecer o porquê das coisas para entender o futuro previsível; embora não houvesse certeza nenhuma sobre os responsáveis. Tentei saber de Hélder Proença, para trocar impressões com ele, pois sempre tive confiança no seu discernimento e capacidade de análise. Infelizmente não consegui encontra-lo, pois parece que ele estava ausente do País por força desses mesmos acontecimentos. Em 2008 no mês e meio que fiz em Bissau consegui falar com ele mais ou menos uma hora sobre as questões políticas e governativas onde lhe falei das minhas ideias sobre o futuro desenvolvimento do País e da capacidade anímica que achava que ele tinha para influenciar (para o bem e para o mal) o curso dos acontecimentos políticos e através destas, o mais importante, a própria Economia. Mas ele achou que na minha análise atribui-lhe poderosas influências que verdadeiramente não tinha. Mas isso é outro assunto, pois penetrar na essência do seu pensamento, desde os tempos da juventude, era coisa complicada.
Mas foi nesta minha última viagem de Abril de 2010 que uns dias antes do seu trágico desaparecimento, numa das inúmeras discussões e controvérsias sobre os assassinatos do Presidente e CEMGFA ainda recentes, em resposta a minha tentativa de defende-lo a todo o custo - em nome dos “velhos tempos”, tempos de sonhos - num assunto delicado e sobre os últimos desenvolvimentos políticos, alguém que eu respeito me disse basicamente que “este não é o teu You” – não é “aquele de quem falas com tanto ardor e amizade” - este You (diminuitivo de Hélder Proença) actual “é outro e este decepcionou muita gente” …
Nesse dia, encostado ao murro do estádio, abrigando-me da chuva, lembrei-me dessas amargas palavras proferidas por alguém que também como eu gostou de Hélder Proença. Ali especado com pingos de chuva a caírem no meu rosto, não queria pensar, queria que o meu espírito fizesse -se uma pausa em que pela primeira vez não pensa-se, não acha-se, não indaga-se. Apenas fica-se em silêncio, numa interna homenagem espiritual a um antigo mestre que tinha de alguma maneira tocado esse mesmo espírito. Mas o espírito não recebe ordens do espírito - acha uma redundância - por isso livremente foi abrindo o caminho pela minha inteira existência, parando de vez em quando para inspirar o ar húmido das poças de água que se formavam aqui e acolá, mas esse era o meu corpo, que caminhava usando o livre arbítrio que lhe davam os músculos, sem obedecer ao espírito que distraído na sua dor continuava pelo seu lado, o seu caminhar solitário - esquecido do corpo que o abriga -, pela minha existência e daí passando pela dos outros que existiram comigo, conjuntamente, numa existência comum…
Andando de um lado para o outro fui lembrando que logo que terminei o último ano do Liceu, por volta de 1982 candidatei-me para dar aulas a fim de ganhar algum dinheiro com que pudesse ajudar os meus pais e para que no futuro, depois de dois anos dessa contribuição cívica, beneficiar de uma bolsa de estudos para poder continuar minha formação no exterior (tal era a condição exigida aos filhos de gente simples, pois muitos outros beneficiavam de bolsas de estudos logo depois de terminarem o Liceu ou depois de só contribuírem um ano. E havia aqueles filhos de dirigentes ou de amigos que nunca contribuíram com nada e ainda tinham que ir para determinados países mais apetecíveis, digamos assim).
Antes do fim do ano lectivo em curso, Hélder Proença mandou-me chamar e informou-me que a Coordenação da Disciplina de Formação Militante me tinha proposto para dar essa disciplina no Curso Complementar do Liceu (isso veio a dar-me muitos dissabores, pois tive que dar aulas a colegas meus e a alunos mais velhos que não aceitaram isso muito bem. Tentei recusar essa “honra” mas ele me fez ver que não era uma questão de estar de acordo ou não, era o meu dever formar os que vinham a seguir. Aceitei com, certa alegria, por fim. Eu, B. B. Banjai, Rui Jandi e Nital Pires é que tivemos no início essa “subida” honra. Depois mais alguns colegas nossos vieram a se juntar a Coordenação da Disciplina.
No meio desse ano sendo eu já professor, sem avisar, ele foi assistir uma aula minha, que muito me alegrou, mas que estranhei também, pois raramente fazia isso; apareceu simplesmente, pediu licença, entrou e sentou-se na última fila. Como ele já era na altura muito conhecido, a aula foi uma desgraça, pois todos os alunos viravam a cabeça para olhar para trás, especialmente as meninas; tinha razão em estranhar a sua presença, pois no fim levou-me para a sala do Conselho Directivo e me disse que pretendia entregar-me a coordenação da Rádio Juvenil que até esse instante estava sobre a sua inteira responsabilidade como o Responsável da Informação e Propaganda da J.A.A.C. (Juventude Africana Amílcar Cabral). Fiquei estupefacto: A Rádio Juvenil era o órgão de informação mais importante da J.A.A.C. e eu nem era militante dessa Organização, já para não dizer, de ser membro do Comité Central ou de qualquer outro órgão da estrutura da J.A.A.C. (Por momentos ainda pensei que tinha entendido mal ou que ele tinha se expressado pouco claramente e queria me propor ser apenas locutor do programa; pensei que assistindo a minha aula gostou da minha maneira de expressar ou o timbre de voz, sei lá…). Mas não tinha percebido mal: A proposta era ser o responsável de facto e total da Rádio, com a incumbência de fazer e ler editoriais, preparar e dar notícias, fazer entrevistas e trabalha-las, escolher músicas, spots, etc., etc., Uma loucura para mim naquela jovem idade e já com outras responsabilidades.
Ainda protestei que não seria capaz, que não tinha bagagem e traquejo político suficiente, que no Comité Central da J.A.A.C. devia haver gente mais capaz, que já tinha muito trabalho com as aulas (nessa altura como disse já era Coordenador de Disciplina) e diversas funções em outras organizações (por ex: tínhamos fundado a A.M.I.C.- Associação dos Amigos das Crianças com Anita Djaló (era o Responsável das Finanças da mesma). Nada disso o demoveu (ele sempre foi de ideias fixas e depois de tomar uma decisão raramente voltava atrás). Disse que tinha plena confiança em mim e sabia que eu era capaz, senão nem estaria nesse momento a falar comigo.
Era uma sexta-feira e disse que me preparasse, pois tinha que fazer o próximo programa que sairia logo a segunda-feira. Percebi então que ele não estava a pedir. Apenas me estava a dar conhecimento de que tinha sido nomeado. Um facto consumado portanto; deu-me uns textos de actualidade Partidária, nacional e internacional e parte de um editorial apenas esboçado por ele e disse que trabalhasse neles e encontrasse com ele, impreterivelmente, segunda-feira as sete da manhã a porta da Rádio Nacional (que na altura era no edifício dos C.T.T., a frente da Sé Catedral). Nesse dia, na hora marcada estava lá, cheio de sono por ter trabalhado até as três da manhã na preparação do programa que seria o meu primeiro e o último dele. Levou-me rapidamente para o estúdio, apresentou-me aos técnicos e lhes disse que doravante era eu que passaria a fazer o programa radiofónico. Por fim entramos na cabine propriamente dita para fazer o programa. Abrimos com uma “saudação musical” e Hélder leu o editorial e eu as notícias e no fim deu uma sucinta explicação das mudanças que iam ocorrer. A nossa performance foi boa. Mas o que nunca percebi foi o facto de ele saber exactamente que eu não ia falhar. Era um conhecedor de homens. Tinha um poder de avaliação para além do normal, no fundo conhecia a natureza humana como poucos. Quando saímos, andamos a pé até a Praça dos Heróis Nacionais, perguntou-me se tinha sido difícil e pelo caminho deu-me algumas noções básicas de propaganda.
Essa foi toda a minha aprendizagem como jornalista, chefe de redacção, locutor e redactor de rádio (nunca esqueci essa meia hora, pois dez anos depois como o primeiro Director de Serviços de Ambiente da Guiné, de novo fui o coordenador e locutor da rádio do Ministério do Ambiente). Ele quase nunca mais pôs os pés ali. Estava entregue a mim mesmo. Depois de meses fazendo o programa vim a conseguir a “não objecção” dele para que arranjasse colaboradores voluntários como eu (sem custos portanto, pois não havia orçamente e não ganhava nem um tostão a fazer esse trabalho. Eu tinha que trabalhar de graça, utilizando ainda por cima os meus parcos meios pessoais. Se necessitava apanhar um táxi para ir cobrir um acontecimento para a Rádio tinha que pagar do meu bolso - uma vez por exemplo tive que ir a Quinhamel (também fui a Bafata e Mansoa) cobrir um evento que ele achava importante para rádio e tive que pagar a candonga para lá ir e voltar e comprar o meu almoço -. Era tudo baseado na “vontade politica” e na “força de vontade” e no “amor a Pátria” que desde aquela altura eu já entendia que estava acima de tudo, até da própria existência. E ele conhecia essa minha faceta, mais que ninguém (talvez seja por isso que me escolheu). Mas era um trabalho muito delicado – atendendo a época da ditadura - e estafante e para mim, que alem de professor, sobrecarregado com doze turmas, era o jornalista de rua, da redacção, locutor, editorialista, arranjador de som, tudo sozinho.
As vezes para conseguir uma entrevista de algum visitante ou dirigente tinha ficar na rua até mais tarde num hotel ou num a recepção (uma vez fiquei com o Vice Presidente do Conselho de Revolução Vasco Cabral até as quatro da manhã para conseguir uma entrevista dele que viajava outro dia as sete com o Ministro Paulo Correia) para depois as oito da manhã já estar no Liceu para dar as aulas. Uma vez lhe pedi, com muita vergonha minha, que me fornecesse pelo menos um rádio gravador para o trabalho, pois o meu (do meu pai que eu utilizava), já tinha se estragado com o uso intensivo. Por fim condesceu e arranjou-me um para as entrevistas e preparação de noticias. As vezes precisava urgente e desesperadamente de uma explicação ou de uma orientação politica antes de um programa especialmente importante (naquela altura, “por da cá aquela palha”, as pessoas iam parar a prisão e as vezes eram fuziladas. E eu no fundo era ainda um miúdo), mas era difícil ele arranjar tempo para isso e sempre me dizia que as coisas estavam indo bem, pois ele ouvia todos os programas religiosamente as oito da manhã. E sempre fazia questão de me transmitir a sua aprovação sempre que podia. As vezes no jardim do Liceu.
Só uma vez não gostou do modo que a poesia era lida no programa (ele amava a poesia e gostava que ela fosse declamada com a emoção e o compasso necessários) e apareceu na Rádio, inopinadamente, no dia da gravação do programa seguinte.
Foi a ali nesse dia com uns poemas e para conhecer as colaboradoras que tinha arranjado. Eram alunas minhas que pedi que me dessem um apoio C. E. e Milu Aquino. Entendo que ele, pragmático como era, queria uma Rádio Juvenil que conquistasse a Juventude não politizada, que fosse menos dogmático e ideológico, que fosse alegre e leve por isso me foi buscar, pois entendia que se pusesse lá alguém da estrutura da J.A.A.C., doutrinado e dogmático, os ouvintes, que já rareavam, seriam cada vez menos. Comigo a rádio tornou-se menos partidária, menos politicamente correcto, menos catequista e mais independente. Acho que no fundo era isso que ele queria - embora não o admitisse -, pois inteligente como era percebia que a Rádio Juvenil tinha que mudar e acompanhar o sentir novo de uma certa juventude urbana que tinha outros interesses que não apenas a politica.
Fiz o Programa “Rádio Juvenil” até a minha partida para a Rússia (na altura União Soviética) sem muitos sobressaltos. Só uma vez fui incomodado (e até detido um par de horas para interrogatório) ainda dentro dos estúdios da Rádio Nacional pela Segurança do Estado. Levaram-me para a Segunda Esquadra onde fui ouvido e liberto logo depois. Já tinha mais de vinte anos e já tinha sido preso durante a minha vida - como de resto colegas meus - algumas vezes sem nenhumas consequências de maior. Mas dessa vez é que comecei verdadeiramente a compreender e a penetrar na imensidão dos crimes do Partido e a perceber em que tipo de sociedade vivia. Esse acontecimento e a maneira como Hélder Proença o analisou e tratou, me marcaram profundamente.
Quando consegui contactar o Hélder Proença, (só alguns dias depois dos acontecimentos já narrados) e indignado, lhe contei pormenorizadamente o que me aconteceu, ele calmo como sempre, ouviu-me com muita atenção e me disse mais ou menos o seguinte (se é que me lembro de cada palavra cabalmente): “no nosso Estado Revolucionário a Segurança não era o inimigo, estavam apenas a fazer o seu trabalho” e “o centralismo democrático, a verdadeira democracia revolucionaria” tinha muitos inimigos e era necessário proteger as conquistas do povo por isso a Policia tinha que estar vigilante e me pedia para “não desistir, por causa desse simples percalço, pois estava a fazer um bom trabalho e por isso a atrair muitas atenções”, mas ele me prometia sob palavra de honra, que ninguém mais (nunca mais) iria me incomodar. Acreditei nele, e assim foi efectivamente até a minha ida para a Rússia. Depois vim a saber que eram promessas vãs, pois nunca ninguém (nem ele próprio) estava a salvo num estado como era esse nosso. Ninguém é suficientemente importante para ser intocável. O próprio vice-presidente do Estado, Primeiro-ministro e vários Ministros, Procurador-geral e outros menos importantes vieram a sentir isso na carne. E perceberam que na verdade ninguém é intangível por essa máquina de matar que as vezes pareciam ter vida própria.
A minha alma cindiu-se em duas partes nesse dia. Eu tinha uma confiança total no Hélder Proença e acreditava piamente que desse homem, mal nunca poderia vir e que se preciso for me protegeria contra tudo e todos; mas essa confiança não vinha apenas de simpatia pessoal que nutria por ele; vinha de eu acreditar também no que ele acreditava profundamente. De acreditar que estávamos no “caminho certo” e que cada um de nós era chamado a fazer a sua parte para construir a “Pátria e o Progresso do nosso povo”. E quem furtasse a essa responsabilidade não merecia ser chamado Guineense e nem tinha dignidade de viver. Mas também percebi nesse dia que não basta acreditar, não baste pensar que tudo esta bem. Não basta pensar que os que foram reprimidos eram traidores e ficar tranquilo. A máquina da repressão estava bem oleada, com indivíduos sem moral alguma no volante era feita para todos e belo dia, sem esperarmos, chegaria também a nossa hora.
A bem pouco tempo, soube por amigos de José Carlos Schwarz, que havia planos para prender este grande artista do nosso Povo - que para mim é o inicio de todos os inícios da música moderna Guineense - e que possivelmente, só a sua morte prematura o livrou dessas maquinações. Contaram-me que o que lhe valeu na altura foi a recusa peremptória do então Presidente Luís Cabral de dar o seu aval a sua prisão; daí a sua ida para Cuba, a fim de atenuar certas contradições. E que mal ele fez? Bem não era preciso fazer nenhum mal para ser preso. Na verdade “não fazer nada de mal” era um dos critérios para ser preso. E depois foi dado a J.C. Schwarz um enterro de herói nacional. Era assim que funcionava a máquina. Agora imaginem: Se o próprio J.C. Schwarz não estava a salvo, quem estava? Os pobres desamparados? O povo
Depois desse acontecimento pensei que tornei-me inimputável de certa maneira, mas a lição serviu-me para o futuro. Passei a por mais músicas do J. C. Schwarz, do que de Zé Manel, afinal “bardadi di partidu ka ta pirdi… si ka na boca di mal tomado”. Mas dessa vez é que comecei verdadeiramente a compreender e a penetrar na imensidão dos crimes do Partido e a perceber em que tipo de sociedade vivia. Comecei a perceber que criminosos e assassinos caminhavam entre nós impunemente. Riam connosco, bebiam e comiam connosco. Ou poetizando, beijavam as crianças e cheiravam as flores e depois iam torturar seres humanos, Guineenses como eles; e quando ficavam cansados de tanto bater e torturar, acendiam um cigarro e saiam par o jardim e respiravam o ar puro da noite e sorriam para as estrelas e sentiam-se bem consigo próprios e porventura com a confiança que os chefes depositavam neles
… E como o espírito não obedece ao espírito, a palavra repetia-se silenciosamente na minha cabeça: Abater… onde tinha ouvido isso antes? Abater; A palavra abater serve também para seres humanos? Ou é próprio de animais criados para abate? É próprio utiliza-lo assim? Não será apoucar o ser humano mesmo depois de morto qualificando assim a maneira como ocorreu a sua morte? Mas podem nos matar sem nós derrubar? Podemos preferir morrer a ser humilhados? Podemos mesmo mortos recusar a prostrar-se? Podemos, depende apenas da têmpera do homem… Mas se de facto fomos abatidos? Como animais? Resta então acrescentar algo a palavra; algo que o dignifique… uma explicação que disfarce a sua brutalidade. Abater soa a depreciação. Abater Hélder Proença ainda mais … De repente, do nada, veio-me a recordação um livro do escritor Horace McCoy, há muito esquecido nas empoeiradas prateleiras da minha memória, que li ainda na minha primeira juventude, intitulado estranhamente de “Os cavalos também se abatem”.
Esse livro que ainda recordo ter-me sido emprestado por Rui, um colega hoje Engenheiro Agrónomo, foi uma decepção para mim de tão intragável que me pareceu na altura. Mas fiz um esforço enorme para o terminar assim mesmo e até hoje não sabia porque. Lembro-me de o ter lido em três dias e o acabei sentado no muro a frente a Escola dos Padres de Bissau, ao lado da casa “Aliu Suleimane”, pois tinha que o devolver nesse dia impreterivelmente. Era um livro deveras estranho, se bem me lembro o enredo, que era sobre uma maratona de dança, a primeira vista parecia não ter nada a ver com o nome da obra; fiquei com impressão que no momento da estampagem inadvertidamente, tinham trocado o título do livro. E prometi a mim mesmo que quando “fosse grande e escritor famoso”, escreveria um livro adequado a esse título - que achei poderoso e chamativo - e o tiraria desse e o passaria para o meu. Infelizmente, dos meus propósitos juvenis, só consegui realizar um: ser grande. Mas hoje consegui por fim restabelecer a normalidade dos factos e usar o título de Horace McCoy neste triste texto que qual panegírico tardio, me permite por fim escrever sobre alguém, por quem durante longos anos nutri sincera admiração e esperei grandes realizações.
É menos que propunha na minha juventude, mas já é alguma coisa, pois servirá para falar de pessoas e coisas que me tocaram profundamente; servirá sobretudo para falar de alguém que foi abatido na calada da noite como só se abatem animais. Servirá para dizer que a vida é feita erros e omissões; servirá para dizer que a morte não nos faz anjos de dia para a noite; servirá para falar de alguém que da mesma maneira que admirei profundamente igualmente também me decepcionou profundamente. Mas servira acima de tudo para perdoar e perguntar o que são decepções humanas diante da eternidade da morte? Da infinita certeza do “nunca mais”? Da perenidade da extinção?
Como da larva surge a cintilante borboleta, se a sua morte servir para reflectirmos sobre a nossa vida comum e aonde nos encontramos como País e como povo, a sua vida não terá sido vivida em vão. Peço a Deus que não tenha sido. Pois é de acontecimentos incompreensíveis como a tua morte, que são feitos as decisões que pouco a pouco despoletaram em mim o “dever da memória”, o dever perante os mortos, que por estarem mortos necessitam que num acto de coragem transcendental os emprestemos a nossa voz. Para que a tal Redenção de que vos falo chegue por fim.
IV
PRENDER POR PRENDER/MATAR POR MATAR OU BU SIBI AMI I KIM?
Lá onde a agonia ferve
H. M. Proença, In “mãe”
Nessa altura os constantes abusos das autoridades - o saber que se tinha mortos dezenas de compatriotas nossos (ainda por cima enterrados em valas comuns) - me revoltava de sobremaneira com o Partido.
Nunca podia aceitar que esse crime pudesse ser imputado apenas a alguns elementos do Partido. Isso era um crime que o Partido devia assumir como culpa colectiva e pedir desculpas ao nosso Povo. O meu libelo acusatório vai para toda a Organização do Partido pois nenhum crime dessa magnitude sai da cabeça de alguém, da decisão de algum indivíduo isolado. É resultado de toda uma prática de impunidade, de doutrinas que transformam ideias em actos; e tudo acaba se encadeando numa dinâmica que acaba por adquirir vida própria. E ali, nunca há um responsável, a culpa torna-se comum. Todas as organizações do Partido têm a sua parte da culpa. A UDEMU, a JAAC e UNTG são culpadas por difundirem ideias e princípios que prepararam a opinião pública para aceitação dos crimes que vieram a suceder. Fomentaram o caldo de cultura onde fermentou a impunidade. Podem não ser condenados pela sua ideologia, mas pelos seus actos criminosos deve haver uma condenação clara. Mesmo que ela for apenas moral.
Uma condenação mais vigorosa deve ser dirigida ao Bureau Politico e ao Comité Central (de então) e a elementos desses órgãos, pois deviam perceber que ser membros desses órgãos não subentendia só direitos e mordomias, mas pressupunha acima de tudo deveres para com o nosso povo, para com filhos deste povo. Ninguém podia dizer que não sabia. Pois se não souberam deviam ter sabido. Pois não eram dirigentes do povo apenas para ter vantagens sociais e económicas, eram acima de tudo para proteger o povo. Ninguém podia dizer que sabia mas não podia fazer nada, porque devia imediatamente pedir a demissão se tivesse um pouco de dignidade e vergonha. Mas nunca houve da parte do PAIGC a aceitação clara destes crimes do regime. E um regime que negligencia factos tão terríveis nunca poderia ter moral suficiente para mudar para melhor seja o que for.
Foi esse entendimento das coisas que me fez resistir a todos os apelos dos meus amigos e colegas da J.A.A.C. para ser militante ou para me inscrever no Partido. Tinha uma aversão (embora oculta) que não me permitia violentar o meu ser e entrar numa organização que já sabia - embora de modo difuso - que era criminosa. E nunca aceitei ser militante seja da J.A.A.C. ou do P.A.I.G.C., embora verdade seja dita, todos os militantes da Juventude do Partido com quem estudava ou trabalhava, respeitaram a minha decisão e sempre me trataram como igual, confiando em mim como noutro militante qualquer e talvez por isso mesmo participei em inúmeras iniciativas da Juventude do Partido que achei que servia o interesse do meu País.
Naqueles anos, vendo bem as coisas, prendia-se muito. Era-se preso por tudo e por nada: Por namorar na rua, por não se por em sentido ao içar da bandeira, por “desonrar” ou engravidar uma menina, por vender certos produtos ou por comprar certos produtos, por criticar dirigentes do Partido, por falar mal do Partido, por ter saia curta, por fazer barulho a noite, por ter rabo grande (meninas) metidos num calção pequeno, por desfrisar o cabelo, por usar boca-de-sino, por ter decote excessivo, por sofrer acidente de viação com caro de Estado, por dar bofetada a alguém ou por não aceitar de braços cruzados a bofetada de outrem, por brigar com um militante ou dirigente do Partido, por sair ou entrar em Bissau sem Guia, por atravessar “campo de Rado” a noite, por vender mancara ilado (produto de exportação) ou doce de coco, por tirar mangas atrás do quintal do palácio, por nadar em Quinhamel sem saber nadar, por comer cajus que caíram no chão (sem autorização do Comité de Estado da Região), por discutir com Cooperantes, por gritar com os Cubanos, por passear depois de o “recolher obrigatório” (quando havia), por namorar na rua, por relações sexuais na via pública, por passar de carro na rotunda da Praça dos Heróis Nacionais a noite e por certas ruas, por andar em determinados passeios onde ficava a casa de um alto dignitário, por urinar na rua, por recusar namorar com um dirigente, por não permitir que a própria mulher torna-se amante de um responsável (nunca esta palavra foi usada tão fora do contexto como na Guiné) do Partido, por ao dançar a frente do Presidente deixar ver as cuecas (meninas), por namorar com a amante de um dirigente do Partido (dizia-se a boca pequena que o Partido pode permitir tudo, desvios de dinheiro, abusos de poder etc., só não permitia uma coisa: envolver-se com as amantes dos dirigentes); era-se detido por usar camisa legos com cara de Cabral ou Domingos Ramos de “cabeça para baixo”, , prendia-se porque na cubata de alguém foi encontrado uma cama de ferro pertencente ao Projecto de Spínola “Por uma Guiné Melhor” ou porque tinha fogareiro, ou porque tinha a casa zincada do tempo de “Guiné melhor”, etc. Era de doidos, prendia-se e libertava-se por tudo e por nada, “por dá cá aquela palha”, numa idiotice e palhaçada nacional sem paralelo nem precedente na nossa história… e quiçá na história da humanidade.
Havia episódios tão caricatos que se não fosse pelo sofrimento das pessoas envolvidas eram apenas risíveis. O anedotário era extenso. Havia cenas de ciúmes nas detenções. Teoricamente os próprios dirigentes podiam prender dirigentes (embora isso fosse muitíssimo raro. Pois como sabíamos no Chão de Papel “lubu ka ta kume lubo”). Contaram-me, que uma vez, num baile na UDIB os sobrinhos de Manuel Saturnino (que era alto dirigente do Partido) e os sobrinhos de Luís Cabral (na altura Presidente da Republica) entraram em rota de colisão e Manuel Saturnino da Costa disse aos sobrinhos do Luís Cabral que se não portassem bem lhes mandava prender e se preciso for prendia o próprio Luís Cabral… Independentemente disto ser pura bazofia, significava alguma coisa, tanto para quem o dizia como para os que escutavam.
O cidadão as vezes nunca sabia - quando saia de casa para ir trabalhar ou estudar - se não seria preso por qualquer mentecapto do Partido, por qualquer acto inocente (que ele apriori não sabia que levava a prisão). O “acto de prender” para uma certa classe de pessoas que tinha vindo da Luta (ou não) era uma coisa maravilhosa, pois dava-lhes poder, notoriedade e respeito.
É dessa altura o famoso “bu sibi ami e quim?” a frase mais deturpada da língua crioula. Deturparam esta frase de tal forma que passou a ter vários significados, cada um mais medonho que outro. Pois os criadores da nossa língua crioula só a usavam para servir de uma primeira interrogação que depois dava lugar a uma agradável surpresa. Do tipo: “sabes quem sou?” “sou teu tio”, ou “sou teu irmão”, teu pai, etc., e a ninguém passava pela cabeça perguntar a alguém “sabes quem sou?” e responder a seguir “sou o polícia que te vem prender”, “sou o sacana que te vai enjaular” ou “sou o carrasco que te vai matar”. Mas nesse tempo era exactamente assim, embora por outras palavras. Quando se era confrontado com este “bu sibi ami e quim?” sabia-se logo que dali boa coisa não viria. Seguir-se-iam no mínimo insultos, bofetadas ou muito pior ainda. Um dos significados que esta frase passou a ter era a da ameaça subjacente e sublimar que se podia traduzir na “faculdade de prender” que a pessoa que a proferia tinha - ou pior ainda (para quem escuta essa frase) - de “mandar prender”. Que na pratica eram duas coisas bem distintas; pois quem prende tem responsabilidades em relação ao preso: o tempo de prisão, que esquadra e que castigos a aplicar durante a detenção, etc. Mas quem manda prender já não tem responsabilidades nenhuns. Pois ali entram terceiros que cumprem a ordem de mandar prender e são livres de decidirem o que vai futuramente acontecer com o detido. Portanto o vosso futuro já era de responsabilidade de alguém que teoricamente não tinha nada a ver com o caso; mas isso só raramente melhorava a situação do detido; geralmente era muito pior. Pois já não havia responsabilidades nenhumas e na prisão podia-se fazer a um cidadão inocente coisas inimagináveis. E raramente um dirigente pedia satisfações a outro sobre casos que envolviam simples cidadãos que não eram do Partido.
Mas havia as prisões definitivas, ordenadas do mais alto decisor ou decisores. Dessas prisões saia-se geralmente para uma cova rasa, vala comum ou inutilizados pela vida inteira (se morte de Partido panhau, nim bu rais ca ta fika...).
Ser preso já era grave, mas como já vamos ver, ser libertado também era um problema. Na verdade havia presos que tinham medo de ser libertados. Disseram-me que uma vez Francisco Mendes (na altura Primeiro Ministro) certa vez visitou uma prisão em Bafata, onde constatou que havia pessoas presas por nada - quer dizer, apenas pela vileza de algum dirigente local - tendo ficado revoltado com esse procedimento indigno, andou libertar uns tantos logo ali, na hora. Depois de algum tempo voltou para Bissau. Parece que o dirigente em questão ficou chateado e magoado por terem-no desrespeitado; E consta que no dia seguinte mandou prender essas pessoas de novo e sem mais nem menos mandou-os fuzilar a todos (assim não seriam libertados outra vez). Quem dá a autoridade moral a um homem para decidir sobre a vida e morte de outros seres vivos iguais a ele? Que poder é este? Tão abrangente e tão omnipotente? O que nos faz sentir no nosso íntimo que estamos investidos de um poder tão grande como o do próprio Deus-Todo-Poderoso? De que impunidade beneficiamos, para poder fazer isso impunemente? Onde estava aquele que devia proteger o povo de facínoras? Ou qual é o primeiro dever do Primeiro magistrado seja quem ele for em que tempo for, se não o dever de proteger o povo? Se não o dever de amar o seu povo acima de tudo? Di misquinha bu pubes, di tiral na cansera?
Por isso quando me foram buscar a Rádio Nacional, nesse dia que contei, sabia que as coisas dessa vez seriam sérias. Não seriam iguais a ser preso por namorar no jardim que já tinha sofrido várias vezes durante o meu crescimento. O caso processou-se da seguinte maneira: Estava a terminar mais um programa em directo de segunda-feira de manhã quando entrou para a cabine de gravação (que era a prova de som) o técnico para me alertar sobre o que me esperava lá fora, dizendo-me baixinho: Fernando prepara-te, a Policia esta a tua espera lá fora. Policia? Que policia? Segurança do Estado. Só essas palavras bastaram para me gelar o coração. Era a pior de todas. Os fuziladores mores como se pensava. Demorei o tempo que pude, fingindo arrumar papéis, ordenando ideias tentando saber o porquê da presença deles atrás de mim: quem me teria denunciado, etc. Quando por fim sai do estúdio de gravação, educadamente um “camarada” da Segurança me mostrou o distintivo e pediu com bons modos que os acompanhasse. Eles nunca levavam ninguém à força, não era preciso. Pediam e o cidadão obediente lá ia como um carneiro ao matadouro. Para que ter medo? Não se esqueçam que eles não eram o inimigo; só estavam a fazer o seu trabalho como qualquer um de nós. Quis arrumar e levar as minhas coisas (o gravador, a pasta, cassetes), mas foi-me dito que não era preciso. Se eles diziam… eles sabiam… Meteram-me num velho geep e lá fomos para a Segunda Esquadra - Era a terceira vez que já era preso e levado para essas instalações. - Uma vez eu, o Dêdè P. e vários estudantes do Liceu tínhamos lá sido detidos quase um dia inteiro. Doutra vez de madrugada fui lá levado por ter discutido com os polícias que faziam operação de controlo de documentos e quiseram prender uma prima minha por ser de Ziguinchor e não ter B.I. da Guiné.
Uma vez -a quarta - fui levado para àquela outra esquadra, a da Mãe de Agua, mas antes de entrar Armando N`Djol pediu para nos libertarem (acho que a menina que estava comigo era sobrinha dele) embora ele fosse apenas um músico de N`Kassa Cobra. Uma vez fui detido e levado para a Esquadra de Bissau Velho onde anos depois, já licenciado, vim a trabalhar como Director dos Serviços do Ambiente). O meu gabinete de Director veio a ser o mesmo onde fui ouvido dantes como preso, mas isso são contas de outro rosário. - Continuando, do edifício da Rádio até a Esquadra a conversa foi cordial; chagados lá uns Inspector mandou-me sentar e perguntou-me basicamente porque é que quase sempre no fim do programa eu punha a musica do Zé Manel Fortes “N`disdja Bai Tabanca?”. De facto era apaixonado por essa música (estou a ouvi-la neste momento a recordar), pois melodia era linda e tinha o condão de acalmar o meu irrequieto espírito; as letras por outro lado diziam exactamente o que eu sentia nessa última fase da minha vida antes de partir para o estrangeiro prosseguir os meus estudos.
Acho que o sentir desse jovem músico que tão magistralmente transferiu para essa canção era o sentir comum de muitos jovens de então. As músicas e letras desse álbum, cada uma das faixas eram um misto de revolta e do acreditar, eram como que uma unidade de contrários que encontravam um eco profundo na minha alma. As estrofes como “boca iam; só sin sinhor” eram de revolta e “vida de sossego” era uma crítica social mordaz aos desmandos de uma certa classe que vindos da Luta, não a enobreciam, pelo contrário. E ao mesmo tempo as frases como “as besses também nó partido e de povo” ou “Chefe cai, palavras firma” davam esperança que um dia as coisas melhorariam; a esperança necessária para poder “sacrifica sin pagu” para podermos avançar “somba-sombadu” no desenvolvimento da nossa cultura e Nação no seu todo. E terminava o álbum numa apoteose Patriótica como que dizendo que no fundo o que interessa é a Guiné, essa Guiné que “é rasson de nha vida”, essa Guiné que é a base de tudo e todos os nossos pensamentos que só pode ser possível quando compreendermos que “anos e di um Cassa”.
Esse músico tinha tocado na corda mais sensível da minha jovem alma. E na minha incessante procura do bem-estar do meu povo, já sabendo que tantos tinham morrido em vão, esse era o meu bálsamo e cada dia o punha no programa tentando através dessa melodia transmitir a nossa gente o meu pensar e a minha profunda dor.
Independentemente da parte pessoal esse disco era em si um canto a modernidade, o disco mais moderno da nossa então recente história musical. Foi uma revelação para mim, pois era como uma pedra no charco da imobilidade e estagnação que a nossa música estava a transformar-se (depois da morte de J.C.S. e a desaparição dos grandes conjuntos musicais por falta de meios), servindo só servia para enaltecer os feitos do Partido, numa espécie de “djidiundade de bari padja”. As justas críticas desse artista não tinham caído bem a nomenclatura do Partido (como anos antes as do J.C.S.) e parece que foi feita uma tentativa de proibir o álbum. Eu fazia questão de por sempre por faixas desse disco a tocar em todos os meus programas. Parecia um desafio as autoridades (havia uma faixa em que sublimemente ele fazia alusão aos assassinatos que eram cometidos “sin bin disparsi” embora ele já vivesse na América. Isso podia ser entendido como a “voz” dos que desapareceram e que continuavam a desaparecer todos os dias, para sempre) e ainda por cima num Programa de Rádio da Juventude do Partido.
Mas não era isso, era apenas aquele “fazer a minha parte” consciencializando jovens e adultos a “pensar” o País. No fundo o que agora tento fazer, embora hoje não tenha ao meu dispor esse poderoso meio que é a rádio. Mas a segurança do estado estava vigilante, ouviam os programas e tomavam notas. O meu interrogatório não durou mais do que duas horas. O interrogador deve ter achado uma certa “inocência nas minhas palavras”, pois eu com o calor habitual das minhas intervenções lhe fez ver a minha “boa fé”. Sabiam que eu era professor de Formação Militante e sendo o responsável da Rádio da J.A.A.C. ele deve ter achado que de mim perigo eminente não vinha. Falamos das minhas crenças e outros assuntos. Ficou admirado por eu não ser militante nem da J.A.A.C. e nem do Partido. Perguntou-me, nesse caso, como me tornei redactor da Rádio Juvenil, inocentemente lhe respondi, o que Hélder Proença me tinha dito (e feito acreditar) que não havia ninguém melhor que eu no País inteiro para esse trabalho…
Posto isso mandou-me embora. Sai aliviado mas um pouco revoltado. Depois de pensar duas vezes, fui ter com o motorista do carro que me tinha transportado até ali (que sentado no murro da esquadra ouvia um pequenino rádio de pilhas) e pedi-lhe que me leva-se de novo a Rádio Nacional (onde tinha deixado o meu material de trabalho); ele riu e perguntou se o Chefe é que tinha dito isso; respondi que não, mas que era justo, pois se me trouxeram até ali, deviam me devolver a procedência. Ele achou muito estranho a minha pretensão, mas talvez por isso mesmo, aconselhou-me ir falar com o “responsável”. Pensei duas vezes de novo; não; vendo bem as coisas, pensei três vezes. Mas a pouca idade, a inexperiência e a falta de saber em que País vivia me fizeram empurrar de novo a porta do gabinete do tal “Inspector” e pedir que me devolvessem a procedência. O meu pedido pareceu-lhe uma exigência, pois depois de ouvir-me atenciosamente, olhou-me com uns olhos incrédulos e perguntou: - Queres que a gente te leve a Rádio? - Sim. Deixei lá o material de trabalho! - A é? E porquê? - O agente que me trouxe disse para eu deixar tudo lá… - Então porque não vais lá busca-lo sozinho? - Como foram vocês que me trouxeram… Até hoje me pergunto o que queria provar. A tentar valer os meus direitos. Que direitos? Numa sociedade como aquela. Que direitos de cidadão que eu inocentemente reivindicava para mim, quando - eu já sabia - que outros igual a mim foram e ainda eram mortas sem quaisquer escrúpulos por bandidos a solta? Os mesmos direitos que até hoje ainda não tenho? - Dá-te por feliz por poderes ir buscar os teus pertences. E fecha a porta ao sair. Percebi pelo tom da voz que devia parar por ali. E sai. Mas não fechei a porta. - Ami i ka fichadur di porta. Dali fui a pé até ao edifício da Rádio onde, revoltado, juntei o meu material e fui para casa. A minha raiva era imensa e queria encontrar o Hélder Proença urgentemente.
O Partido, a máquina administrativa (e repressiva), continuava a decepcionar-me profundamente. Mas o Partido para mim ainda era uma “uma coisa” e o Hélder Proença “era outra” coisa. A minha lealdade era pessoal e era para com Hélder Proença e não com o Partido e os disparates deles. Queria acreditar que o sistema ainda se podia reformar, mudar por dentro e não abandonando tudo. Estava redondamente enganado. O sistema já estava podre. Era corrupto e criminoso e nada nem ninguém neste mundo o podia regenerar.
SEGUNDA PARTE SILENCIO DOS MORTOS
I
A DIGNIDADE DOS ASSASSINADOS OU A HONRA DOS ASSASSINOS
lá onde a minha pátria chora
H. M. Proença, In “Meu poema...”
Durante quase sete anos de ausência, pouco ou nada soube do percurso político de Hélder Proença. Rússia era muito longe e lá nunca se falava da Guiné nos noticiários. O interesse para com os acontecimentos da Guiné só uma vez foi inabitual, mas mesmo assim, através de outros canais alternativos, foi a quando da “questão balanta” que veio a desembocar no fuzilamento de Paulo Correia e Viriato Pam entre outros. Lembro aqui propositadamente deste acontecimento singular que viria a ter fortes repercussões na nossa vida colectiva como Nação e ainda hoje as suas sequelas continuam a assombrar o normal desenvolvimento do País.
Perguntem-me como se podia viver num país assim naquele tempo. E eu pergunto como se pode viver agora. Mas como isto não é um jogo de advinhas digo-vos que eu fiz a mim mesmo esta pergunta durante anos e hoje encontro a explicação na Hanna Arendt. Ela nos decifrou o porque do acriticismo face aos desmandos e abusos do poder em sociedades totalitárias ou pôs totalitárias como era o nosso num tempo. Mas se nas sociedades normais onde os homens tinham alguns mecanismos para se defenderem de um estado policial, como uma sociedade civil organizada com igrejas fortes, imprensa livre, com tradições enraizadas e partidos políticos livres e até centenários as vezes, e mesmo assim foram varridos pelo advento do totalitarismo, nós como sociedade, País ou povo ainda não tínhamos nenhum desses mecanismos consolidados, por isso não ouve o “decreto para a protecção do povo”, por isso não passamos primeiro por uma “banalização” filosófica, jurídica e moral do mal para chegar a “banalização” da morte. Porque Infelizmente, o Estado baixou artificialmente o valor da vida humana na Guiné e nem foi para impor a ordem ou servir um propósito definido, seja ela qual for…
Pelo terror banalizamos o assassínio puro e duro, em nome de uma pretensa legitimidade dada pelo povo para a sua própria protecção. E chagamos por tortuosos caminho a conclusão que é necessário matar parte do povo para proteger a outra parte. E quem iria fazer parte desta ou daquela parte era de certa forma indiferente. Pois através desse “acto de defesa”, como amiúde os do PAIGC explicam os acontecimentos de então, nos instituímos o terror. Acto de Defesa; um Partido que precisa se defender do próprio povo, devia pedir demissão. Cabral não disse que não podemos fazer a felicidade de um Povo contra a vontade desse Povo?
Portanto, não foi preciso acontecer rigorosamente nada de especial para ser instalado um regime sanguinário neste pequeno País. Foi apenas preciso tomara a Independência e logo logo instituímos o terror. Por isso convivemos com a brutalidade e o terror há muito tempo; habituamo-nos a viver com ele durante nossa inteira existência, ao ponto de não o apercebermos no nosso dia-a-dia, embora ele sempre fez parte dela.
Pois no momento em que a vida humana deixou de ser sagrada para o nosso Estado, por força de “algum obscuro motivo” ou “mecanismo”, estava aberta a via para todos os crimes possíveis e imaginários contra o nosso povo. E a via continua aberta…
Pois neste momento estamos no Rubicão da nossa existência, pois passamos do entendimento deturpado do nosso direito de tirar a vida ao nosso semelhante para necessidade de o realizar no assassínio puro e duro dos “inimigos” políticos e do nosso povo em geral. E foi aqui que ultrapassamos a ténue linha divisória entre a humanidade e a animalidade. E quem não respeita o primeiro mandamento de Deus - Não mataras! – Respeitará o que? Velhos sem pão? Crianças sem escola? Doentes sem medicamentos? Claro que não. Só terá como única preocupação o seu bem-estar e dos seus. E povo será apenas um empecilho no seu caminho.
É minha profunda convicção que se tivermos de pela força tirar a vida de um Guineense, esse acto deve revestir-se de dignidade. Digno para quem morre e honroso para quem mata. Pois a dignidade de um é inseparável da honra do outro. Só açougueiros ou carniceiros é que abatem… animais ou homens. As pessoas devem ser honradas na hora da morte. E a morte de cada cidadão, quando não puder ser evitada, deve servir um propósito claro e conciso. Mas uma coisa é ser julgado, condenado a morte por um tribunal (seja ela qual for) e ser executado, por fuzilamento, forca ou guilhotina, pois a morte matada não é de uma só maneira. Morrer de morte morrida - diferente de morrer de morte matada - geralmente não tem heroicidade deste último. Concedo; mas uma coisa é morrer na guerra ou na defesa da honra, seja pessoal ou Nacional. Outra é ser abatido. O poeta dizia com razão que “quilis ku ka ta muri e quilis ku muri dja” mas apenas aqueles que morreram com honra. Defendendo um ideal, defendendo o porvir da pátria e do povo.
É deste povo que vos quero falar; deste que disse um dia que vale realmente todo o sangue derramado, desde os primórdios. Mas somente e só aquele sangue que não foi desperdiçado. Aquele sangue que não foi derramado em vão. Aquele que serviu um propósito. Aquele que servirá um propósito…
Porque não tenham dúvidas, ainda vai correr sangue.
Mas eu que só sei pensar escrevendo e só escrevo para chorar as nossas desgraças, não sou também a melhor escolha. Pois eu não escrevo, eu não sei escrever, na verdade só escrevo para poder suportar a dor da terrível que aflige o meu peito. Mas mesmo assim não consigo suportar a criminosa e gratuita perda de centenas e centenas de vidas já sacrificadas neste pedaço de chão. Na verdade não escrevo, apenas realizo uma catarse libertando a minha alma e meu ser de anos e anos de um sofrimento silencioso. Mas como só sei chorar escrevendo - escreverei -, apenas peço que perdoem as minhas imperfeições e deixem que as minhas lágrimas se juntem as lágrimas já choradas e que serão choradas ainda. Pois sinto que só necessito dizer o que sinto, e que esse sentimento é comum, é também de alguém, igual a você, que apenas o não escreve, mas o sente tão profundamente como eu o sinto. E sinto que você esta comigo escrevendo estas paginas. Me ajudando, perdoando os erros, escrevendo quando escrevo, esperando por mim quando paro, lembrando-me quando esqueço. E comigo caminhas, juntos para neste tormentoso labirinto, não me deixando ficar sozinho, não deixando que me perca. E na solidão da noite sentirei que sinto e sei que você entende-me e, que juntos suportaremos a nossa dor comum.
E assim o meu espírito que continua a caminhar e vai para o meio de 1984, o ano em que pela primeira vez afastei-me longamente do meu rincão natal, partindo por fim para a Rússia. Parti com o coração pesado e a alma amargurada pois já sabia com a certeza total que o País que deixava para trás estava totalmente a deriva e o seu futuro era em tudo menos promissor. Infelizmente não me enganei apenas o encontrei na volta muitíssimo pior. Já nesse momento não havia vislumbre de um desenvolvimento qualquer, mesmo o mais básico, como o funcionamento dos transportes públicos. Fornecimento regular de água e luz. Lembro-me que na minha “inocência” juvenil, envolvido por algum idealismo - pois tinha necessidade de acreditar que o meu País tinha que ter uma saída qualquer que seja ela - admirava-me, de como é que os dirigentes de um tal País não tinham vergonha de sair a rua a luz do dia.
A miséria e a incompetência eram tão gritantes que me pareciam que se eu fosse um governante só sairia na rua depois do por de sol. Mas estes indiferentes a tudo, sem compreender nada, ainda por cima iam para o estrangeiro e voltavam - depois de verem o que se fazia nos outros países - e no deles não faziam absolutamente nada de bom. E nem queriam fazer. A sua falta de patriotismo e amor a ao seu povo era gritante. E a sua ignorância em tudo que tinha que ver com a organização de uma sociedade e desenvolvimento económico era tremenda para não dizer vergonhoso. Pois qualquer jovem adolescente que saísse do seu País e fosse somente até ao Senegal ficava envergonhado pelo seu País. Mas eles não tinham vergonha nenhuma. E continuavam a destruir tudo. Por exemplo, distribuíam passaportes diplomáticos a torto e direito, denegrindo a imagem do País em todo o mundo, compravam carros de luxo, malbaratavam a economia, baixaram a esperança de vida, aumentaram a mortalidade infantil, etc., etc. … Aquilo era de uma boçalidade e incompetência que raiava o absurdo. Mas quando voltei terminado a licenciatura, as coisas tinham piorado bastante.
Agora voltei de novo para esse estádio que leva o nome do imortal Lino correia onde encontrei o meu corpo na mesma bancada onde o tinha deixado enquanto os meus espíritos divagava. Peguei nele e sem saber o que fazer com ele - este impotente corpo que carrega um espírito rebelde - e resolvi leva-lo para a cidade fora. Pelo caminho vi que nos olhos desse corpo havia algo parecido com lágrimas, mas que também podiam ser pingos de chuva, afinal, os homens não choram… assim mergulhado nos meus pensamentos, sai deste presente vergonhoso - um presente que nunca poderia imaginar um dia sequer, nem nos mais tristes presságios, que um dia viveria para testemunhar – para me refugiar de novo num passado do qual não havia também quase nada para orgulhar. Não devia haver só presente e passado, pois quando os dois não valem nada, devia haver um terceiro sitio onde se refugiar. Mas que não seja o futuro pois antes de ir para o futuro é necessário construi-lo primeiro.
Assim fomos deambulando por esta minha cidade, eu, o meu espírito e o meu corpo cansado. Esse corpo que indiferente as subtilezas da alma e as dores do coração, sentou-se na pequena bancada do “campo de ténis” a nossa espera, enquanto eu e o espírito, de novo caminhando passamos o Benfica, atravessamos o jardim do Liceu, para entrarmos na grande porta de três batente para subirmos a escadaria. Nesse instante o tio Armando nos acenou e ao retribuirmos, demos um passo atrás, para espreitar pelo postigo da secretaria a tempo de ver Dona Mima, rija ainda, na casa dos quarenta, falando alto com aquela menina linda, aquela que era negra mas de olhos verdes, aquela L. que fazia retinir os nossos jovens corações… mas já estávamos atrasados, o tio Armando já tinha dado o segundo toque, subimos os degraus dois a dois, para assistir 25 anos antes a aula principal desse dia, o dia que conhecemos o Hélder ou o You como lhe chamavam os próximos. Nessa manhã que surgiu, vindo do nada, para entrar nas nossas jovens vidas para sempre, eu não devia ter mais de 16 anos. Ele era magro e alto, demasiado sério para a idade, imbuído de uma inabalável convicção que ultrapassava o seu humilde mister de professor liceal. Ainda estudante do Liceu como nós, já fazia parte daquela estirpe de autodidactas que acreditam mais nas suas próprias capacidades intrínsecas do que em alguma Faculdade de Ciências.
Como já tínhamos ido até ao Liceu, convenci o meu espírito relutante, a assistirmos de uma assentada todas as aulas que me deu durante todo um ano. Mas nos sucessivos intervalos das aulas, no repicar estridente do sino de entrada, fui saltitando da sala de aulas para a rua, assistindo assim, as outras “aulas” que tive com ele fora das paredes do Liceu. Dava aulas de uma maneira calma e concisa, com a confiança de saber do exactamente do que estava a falar. Mesmo as minhas perguntas mais difíceis, ele respondia de forma clara e sem nenhumas dúvidas. Raramente se emocionava (ou se acontecia não o demonstrava) ou ria livremente. Parecia que por algum motivo, que eu não lograva entender, queria associar à sua pessoa uma aura de gravidade artificial que não coaduna com a sua juventude. Acho que a sua passagem de jovem para adulto nunca aconteceu, pois embora um jovem, já tinha um espírito adulto. Nesse aspecto era diferente de outros jovens promissores professores nacionais que também tivemos (naquela altura os professores do Liceu eram quase todos estrangeiros, só os de Formação Militante eram Nacionais). Comparativamente a H.P, o Isaac Monteiro era vibrante, livre, emotivo e caloroso, podia levar uma turma inteira ao arrebatamento extático. A sua característica mais marcante (a palavra que o podia definir) era optimismo. Irradiava convicção e optimismo. Eu tinha a percepção de que ele acreditava na causa mas tinha sérias dúvidas quanto ao modo da sua implementação, ou das reais capacidades dos que nos guiavam. Noutro diapasão João José Monteiro (Huco), menos expansivo, mais cerebral, mais contido e didacticamente muito conciso; atencioso e caloroso connosco, as suas aulas continuavam no jardim do Liceu (tirando dúvidas, como se dizia então), mas talvez dos três, era talvez, o único que já nessa altura tinha dúvidas existenciais sobre a bondade da política do Partido.
Hélder diferente dos dois era um vulcão por dentro, mas frio por fora, grave e fleumático compreendia melhor que todos eles o espírito da época, o tempo que se vivia. Acreditava na causa, sem ser dogmático (fugindo obstinadamente do dogmatismo) e sentia que devia ser parte da causa (e não tinha dúvidas sobre a bondade dos objectivos perseguidos) e estava disposto a concordar com eles mesmo que isso acarretasse sofrimentos. Afinal “os fins justificam os meios” se os fins são nobres. E acreditava que - diferentemente do postulado de Cabral – se para “fazer a felicidade de um povo, era preciso ir contra a vontade desse povo”, então que seja. Pois as vezes o povo não conhece o “caminho para a felicidade” e precisa de guias para o levar até lá.
Era um criador nato, de ideias, projectos, poemas e de seres humanos. Inquieto e avassalador, era nessa época o mais promissor das jovens esperanças do Partido e por inerência, atendendo o espírito do tempo, do próprio País.
II
ODE QUE NÃO É ODE OU A NOITE DO PERFUME
Quando te propus
H. M. Proença, “Quando te propus”
Para me entenderem cabalmente, pois ainda falta por dizer, vamos voltar a essa fatídica noite, a “noite do perfume”, que neste momento já deu lugar a madrugada, que agora também estava a despedir-se, expulsa por uns raios luminosos que anunciavam a chegada lesta de um amanhecer diferente, cheia de um Sol esperançoso que já se tinha levantado no Futa Djalon, mas não tinha ainda chegado ao Geba.
Daqui para frente gostaria de escrever como um poeta, como um bardo dos tempos antigos, pois como disse “o texto tem que sublimar a prosa e enaltecer a poesia”, mas não devia ter dito, pois esqueci não sou um vate como tu - embora disseste-me que “poetas somos todos nós…” e eu direi, para completar essa frase de trinta anos atrás, “… cada um a sua maneira e cada um a seu tempo” - para nesta hora de pranto e dor, fazer um poema como aqueles que escreveste de rara beleza. Aqueles “em que a escrita era de bom gosto”. Mas não vou desistir de tentar pois nesse dia da tua morte, nesse dia do “Perfume” soube que a existência dos outros homens é leve, é querida, é suave e subtil; é algo que sem querer se confunde com a nossa existência e forma uma só difusa existência, mas inseparável da nossa; só somos, quando os outros são.
Por não ser poeta, por não ter o dom das palavras como tu, este não é um Ode a ti, Prof., como aquela que fizeste à Abomey, quando vias “órfãos e viúvas eternas no horoscópio da história”. Isto é apenas Pranto; pranto apenas; pranto por me fizeres também ver órfãos e viúvas eternas não apenas nos teus poemas - mas pela força da tua morte -, nesta vida real, nesse dia que fui a casa dos teus pais prestar o meu preito. Nesse dia, como não podia deixar de ser, também vi “a eternidade voraz das suas (nossas) dores”.
Esses órfãos e viúvas eternas, também eram as mulheres que sufocaram o choro magoado para não perturbarem o poeta que declamava para o teu caixão horas atrás; procurando adequar a entoação da voz a solenidade do acto, indo buscar forças das profundezas da alma, saberia ele que um dia me disseste que a “poesia não é para se ler mas para declamar?”. Será que, para ti, ele declamou bem? Vi o teu espírito presente, quando ele se calou; vi aquele teu ar paciente, que sempre tens, mesmo no meio das maiores tormentas… e por um momento, me pareceu que ias dizer qualquer coisa, mas te vi pensativo, com aquela atitude que tens quando deixas os outros falarem primeiro, para falares depois… mas sabias que não era próprio alguém falar no seu próprio funeral… E tu nestas coisas, tens as tuas convicções… e nada disseste, mas teria sido bom te ouvir... mesmo que pela última vez…
Mas esse poeta não nos decepcionou. I ca cura nô dur ma i firianta ke ku na kemanu. A tua mana não nos decepcionou. O seu sentir foi o nosso sentir, a sua indignação foi a nossa indignação. Se estivesses lá nessa tarde, como tantas vezes antes, haverias de gostar. Mudarias algumas coisas, farias uns acertos, mas no cômputo geral, atendendo as circunstâncias, acho que pouco mudarias. Sabes: houve dignidade, emoção e respeito. Profundo respeito. Mais não se podia…
Corrige com sapiência Prof., mas também com benevolência, pois isto não é um Cântico, é apenas pranto, pranto que não pranteei ao ver o teu esquife, de flores coberto, na sala do Comité Central que nunca vi tão cheia, desde a minha meninice no dia do enterro de José Carlos Schwarz (lembras-te?)
Este é o choro não chorado, Prof., mas escutado no choro estrangulado que teimava em sair pelas janelas. Um choro afogado, como só as nossas mulheres choram, antes do grito pungente as libertar.
Não corrijas com muita severidade, estas minhas “mal traçadas linhas”, Prof., pois eu que sempre tive o “orgulho de ser o melhor aluno”, não queria agora na nossa última prova, ser mandado a “extraordinária” por não me ter preparado para a dor da tua morte. Pois a dor e o pranto não se estudam, não se preparam no dia anterior, como a matemática e a física. Pranto é sempre consequência, fruto da dor; e a dor, como sabes, é sempre cega e não pode ser analisada, apenas doe e doe. Doe no fundo da alma lembrando-nos da insignificância das nossas vidas que tanto valor damos…
Prof., este é o carpir que não carpi, nessa hora, em que o poeta lá dentro, lia os teus versos com a sua inconfundível voz e eu na varanda apenas ouvia sem o ver, olhando para a tristeza velada no balançar compassado de cabeças, nas lágrimas que teimavam em sair nos olhos de homens que sabem que homem que é homem, não chora…
E ali nessa varanda, no meio desse mar de gente que se acotovela, abafado por essa gente que verdadeiramente não te conhecia - mas que mesmo assim te foi prestar a homenagem -, estava sozinho, vazio por dentro, como a piscina vazia e abandonada lá em baixo, que os meus olhos teimavam em fixar sem ver. Ouvindo, através da janela aberta, os teus poemas a serem lidos ao longe, no meio dos meus silenciosos lamentos, lembrei-me outra vez dessa noite, da noite da tua ida, a verdadeira “noite do perfume” que já parecia distante… E através dessa janela vi o teu espírito inquieto deambulando pela sala, no meio de tantos que conhecias e de outros tantos que não; o rosto daquela te pareceu familiar… mas agora hesitante, não sabes se foi em Bafata ou em Gabu, se durante a campanha eleitoral ou um dia no caminho da tua ponta… Na verdade a vida é efémera e merece ser vivida com alguma dignidade.
Perante os factos consumados, perante as despedidas inexoráveis que ia escutando, entendi - para além de toda a dúvida razoável - finalmente o que significava a “noite do perfume” dentro deste universo paralelo em que vivemos; neste universo em que o significado confunde-se com o significante, porque o que significou não é mais o que significa; soube, porque sei, que não podias partir numa das “noites de N’djimpol”, pois nessas noites vistes “a virtude dos homens sem amanhã”… num desejo de refazer o mundo; e na noite da tua morte - como também no teu poema – vistes de novo homens sem amanhã… mas infelizmente, diferentes daqueles (das “noites de N`Djimpol”), estes não tinham nenhuma virtude… e não desejavam nenhum amanhã… nem para ti, nem para eles.
E como aqueles que os inspiraram, só desejam este presente abominável, pois para desejar um futuro melhor é preciso ter a capacidade de sonhar. E estar disposto a morrer pelos nossos sonhos. Estes homens que não te deixaram ter um “amanhã diferente”, estes, eram iguais aos outros do tempo em que “a terra ainda fervia em lavas” e como aqueles, ainda continuam sendo “bestas ferozes”…
Mas esses teus carrascos, infelizmente, têm um orgulho com que viverão para sempre: mataram um gigante da política, o mais ambicioso dos Guineenses e porventura um dos homens mais esclarecidos que esta terra pariu …
E assim, Prof., recebe estas lágrimas como um tributo, pois são aquelas que não derramei no teu funeral ao ouvir a elegia fúnebre… É o carpir que não carpi, nem quando escutei o ruído surdo da terra caindo no teu caixão a enterrar.
Prof., este é o choro que não chorei nesse dia, quando no quintal do teu pai vi o teu filho homem, a quem quis prometer - como você um dia me prometeu -, “um amanhecer diferente” para a nossa Pátria, mas apenas lhe disse o que disse tantas vezes de ti a terceiros e a ti próprio: “o teu pai foi um fantástico autodidacta e uma referência para mim; que a terra lhe seja leve”…
Sei que devo ser contido e modesto nesta hora, mas não posso deixar de te dizer que disse ao teu menino ainda outras palavras bonitas - que pela sua boniteza - que aqui não cabem. Pois aqui a página é de luto. De luto cerado. Mas gostaria de ser poeta para acreditar e recitar as palavras que dirigis-te a avó dele, a tua mãe:
Mãe encara a
madrugada e o sol nascente / vê as flores desabrocharem no canteiro livre da
nossa terra / Mamã, se as aves não fossem ingratas dir-te-iam Onde estou / mas
talvez os ventos te digam / que aqui estou neste maravilhoso paraíso…
Este não é um Ode a você, meu Prof., lastimo a minha incapacidade para coisas singelas, mas este é o meu derradeiro agradecimento pela confiança, pois quando me propusestes “um amanhecer diferente”, quando me desafiaste partir “a conquista do futuro”, “vazias eram as mãos”, as tuas e as minhas e sem nada começou o nosso caminhar. E hoje eu é que te proponho, tardiamente, com as tuas palavras, “abraçar a História”, propondo ao teu/meu povo o “(…) o hastear eterno do nosso sangue para um amanhecer diferente!”. Um amanhecer em que os homens não serão mais bestas ferozes e conjuntamente “descobrindo estrelas nas matas / semeando verdura em todas as negras nuvens” faremos deste povo aquele que “encara a madrugada e o sol nascente, vê as flores desabrocharem no canteiro livre da nossa terra.”
Espero que encontres “a paz e aquela luz”, pois também nesse poema dedicado a tua mãe não dizias tu “Mamã, parti, parti buscando uma luz / lua para a qual o sol é trevas / A LUA DA LIBERDADE”?
III
VIAJANDO PARA O FUTURO RUMO AO PASSADO OU FORMADOS SIN FORMA
Enquanto há
braços misticamente estendidos
H. M. Proença, In “Meu poema...”
E como este não é um Ode, deixa-me te falar e permite-me contar-te como foi o meu viver antes e depois do dia (e no dia) da tua morte… Desde o dia que te conheci. Vais ouvir coisas que já sabes por nelas teres participado, outros pela primeira vez. Mas começarei por esse fatídico dia, o dia em que fostes, pois ela viria a dar lugar a outros e dali surgiria a decisão de escrever sobre nós Guineenses, as nossas vidas, os nossos percursos, as nossas ambições, as nossas vinganças, nossos erros e omissões, em suma o que nos faz Guineenses e não Gambianos ou Senegaleses. Pois nós somos carne da mesma carne, sangue do mesmo sangue, espíritos dos mesmos espíritos, que desde os tempos dos nossos ancestrais caminham nesta terra.
E nesse dia continuei andando perdido nos pensamentos e fui dar a “bancada auxiliar” onde subi as escadas para sentar no meio e enquanto o sol se levantava, lembrar os meus doze anos quando nessa mesma bancada pertencia aos “Abre-e-fecha” da Ginástica Massiva. Participei em todas as três ocasiões nesse movimento juvenil, organizado pelos Chineses, nos anos logo a seguir a Independência; De cada vez desempenhei um papel diferente: numa das vezes fui “Abre-fecha” (os jovens que se sentavam nessa bancada - feita especialmente para isso - e com uns grandes livros, com paginas de um metro de diâmetro que iam sendo abertos conforme as ordens de um instrutor; o conjunto das nossas paginas encostadas uns nos outros formava as caras dos heróis Nacionais e paisagens da nossa terra. Noutra vez era um daqueles meninos que com dois pauzinhos cobertos por uma bandeirinha faziam graciosos movimentos circulares. Na ultima vez era um dos que seguravam aquela barra comprida e ritmadamente a íamos subindo e descendo fazendo desenhos no ar seguindo atentamente as instruções dos instrutores chineses. Belos tempos da minha infância…
Mas lembrar, sonhar, recordar mesmo com um aperto no coração, não me é permitido. A realidade medonha se impõe no meu espírito a cada passo que dou nesse estádio vazio. E o meu espírito viu essa existência comum que vejo a passar a frente dos meus olhos na forma dessa gente desconhecida que cobertos de pó e de suor, caminham apressadamente, descendo a rua do campo, perdendo-se para os lados das bolanhas, mas esse são os meus olhos que me distraem, que num esforço titânico, fizeram um intervalo no caminhar do espírito, que o corpo aproveitou, sorvendo agora o ar depois da corrida que acabou de realizar automaticamente, sem me informar, sem informar o espírito
Então o meu espírito - embrulhado ainda no estival ambiente liceal, envolvido nas labaredas da chama esfuziante dos dezassete anos - perguntou ao meu velho corpo de quarenta e tantos, porque me parecia que estavas a chorar? Este respondeu que durante a minha ausência foi até ao campo de Basquete e pelos seus velhos olhos, foram passando a minha vida inteira: fiquei a ver-me ali com os meus companheiros de então a aprender a jogar basquetebol com o Sr. Caetano, depois maiorzinhos com o nosso professor Coreano que trocava os nossos nomes que não conseguia pronunciar em Português; doTony Bembelo, do Gil, Alexandre, do golo que marquei ao meu irmão de “biqueira” (só rematava com a biqueira, tentando colocar a bola onde queria), jogando na equipa dos mais velhos como Bernal “Butcho”, Beto Fernandes e Miguel… bons tempos… Tempos da minha meninice… Fui acordado desse enlevo pela brusca recordação da voz que me tinha acordado nessa noite e me disse que tinham morto Hélder Proença e que este “era meu amigo”. Lembrando-me implicitamente quem era o Hélder para mim (ou que deveria ser). Há muito que não via o Hélder na verdade. Há muito que não sabia nada dele na verdade. Depois de sete anos na Rússia, somente em 1991 é que vim a encontra-lo; Nessa altura já tinha terminado a licenciatura. Creio que trabalhava no “Partido” entre outras actividades pessoais. Mas antes de continuar com ele preciso dizer algo.
Se não estou em erro, por volta de 1992, um ano depois de terminar a licenciatura trabalhando no Ministério das Obras Publicas, portanto “Jovem Quadro” (Jovem Quadro era aquele inocente que ganhava 23 dólares por mês (antes de ir estudar já ganhava 200 dólares; só este facto demonstrava como o país tinha retrocedido em 8 anos) e tinha que pagar do seu bolso o transporte para ir trabalhar a Brá onde ficava o Ministério das Obras Públicas. jovem Quadro era aquele que depois de ter terminado os estudos, tinha ainda que ser sustentado pela família, pois ganhava dez vezes menos do que ganhava antes de ir estudar em virtude do descalabro económico que o Partido e o Governo tinham levado o País; não acreditam? Pois deviam, pois tenho ainda tanto para vos contar. Nessa altura presenciei incrédulo, da varanda da geladaria “Baiana “ algo de insólito: Vi, com estes olhos que a terra há-de comer, tractores e retroescavadoras e camiões revolvendo todo o asfalto da Praça “Ernesto Che Guevara” (outrora Honório Barreto) e parte do passeio da rotunda, numa movimentação incompreensível. Perguntei ao gerente (Beto) da geladaria o que se passava por ter chegado primeiro ao local. Estavam simplesmente a procurar um barco enterrado a uma centena (?) de anos nesse local por régulos ou a mando destes por baloberos e afins. E o porque dessa insólita escavação? em plena via publica e durante todo o dia e parte da noite? É que algumas mentes brilhantes no Aparelho do Estado tinham chegado a insólita e asneirenta conclusão de que o País não se desenvolvia por causa desse malfadado barco… enterrado por alguém… há centenas de anos (?) …
Primeiro céptico, sem poder acreditar no que os meus olhos viam e ouvidos escutaram, acabei (incredulamente) por perceber que o círculo tinha fechado. Que tínhamos por fim voltado no tempo, numa insólita viagem ao passado e chegado ao ponto de partida dos primórdios do aparecimento da Nação, há centenas de anos atrás… Éramos ainda, nos finais do século XX, quase no século XXI, os mesmos homens que há trezentos anos habitavam este pedaço de chão que chamamos Pátria (é dessa altura um artigo meu, num jornal de Bissau, em que afirmava que em vinte anos de Independência em vez de desenvolvermos o País como era legitimo esperar, tínhamos, em todos os parâmetros, retrocedido outros 20 anos. Portanto em vez de estarmos no ano 1994, estávamos realmente em todos os indicadores em 1954. Mas as cabeças dos que nos governavam pelos vistos estavam ainda em pior estado… estavam no ano 1694. Por pouco não se cruzaram com os Descobridores Portugueses).
Sim, pois toda a civilização, todo o desenvolvimento social, científico e humano, passou ao lado dos nossos mais altos dirigentes e nem os salpicou com um pingo de bom senso, para não dizer um pouco de inteligência Como é que isto foi possível? Pois podemos ser ditadores, corruptos, assassinos etc., mas ao mesmo tempo sermos inteligentes e bem formados. Pois podemos apostar em nós mesmos como seres humanos que somos…
A má governação, a incúria, o nepotismo, a incompetência, o roubo, os assassinatos, a loucura de todo um Partido Nacional, de vários Governos, Ministros, Secretários de Estado, etc., criminosamente irresponsáveis e tudo o mais - que não posso descrever aqui - que de mau tinha sido feito diariamente, durante dezenas de anos, impunemente, não eram responsáveis pelo triste e caótico estado em que tinha chegado o País. Não! Isso não tinha nada a ver com o caso. O culpado do descalabro económico e social, da condenação do Regime por quase todos os Organismos Internacionais, da retirada do País de quase todas as Embaixadas Estrangeiras, o abandono de todos os ONGs Internacionais, a falência de todos os Projectos de Desenvolvimento, a bancarrota de todas as empresas do Estado e privadas, era a culpa de um “barco”, enterrado há umas centenas de anos atrás…
Percebi finalmente que estávamos total e completamente lixados (para não usar outra palavra). E irremediavelmente entregues a bicharada e a simples loucura mansa.
De que outra maneira eu poderia caracterizar este acontecimento? A isto? Que para a minha imensa vergonha testemunhava? Este dia foi, sem nenhum exagero, um dos dias mais tristes da minha vida. Para entenderem o meu estado de espírito naquele momento têm que voltar comigo para trás no tempo e porem-se no meu lugar e sentirem o que senti:
Eu, um jovem licenciado, que acredita na Ciência, com a cabeça cheia de sonhos prenhes de realização, que ama a sua terra, que ama até o ar que respira dessa terra, com a qual sonhou cada dia do seu tempo de faculdade e que por isso foi estudar (e voltou) para pôr em prática o que aprendeu ao serviço do seu povo; ao serviço da normalidade que espera encontrar numa sociedade normal; e logo nos primeiros tempos do seu regresso é confrontado com um acontecimento de tal magnitude, de uma imbecilidade tremenda…, era de facto incompreensível para não dizer intolerável. Mas o pior é que vindo dos mais altos Poderes Instituídos da Nação, era de facto inadmissível. Pois se as trapalhadas que um Dirigente imbecil ou os dislates que um Ministro incompetente (numa Ditadura ou não) faz isoladamente, são graves, mas “suportáveis” até um certo limite... O caso muda totalmente de figura quando os Poderes Instituídos, que não se representam a si próprios, mas a todos nós, como cidadãos, estão ainda nesta “fase de desenvolvimento” do seu pensamento teórico e discernimento sobre os destinos da Pátria, depois de tanto tempo, depois de centenas e centenas de quadros formados era realmente insuportável. E assim o nosso País vivia num registo sem par na História dos Povos. Igual ao filme “Back to the Future”, estávamos a viajar para trás, mas rumo ao futuro promissor… com toda a realidade invertida. Numa inversão total de valores.
Só seres de uma obtusidade total podiam contemporizar com semelhante pouca vergonha. Onde estava a intelligentsia da Nação nesse momento (o mesmo posso perguntar agora também)? Pois tudo o que o Poder faz, fá-lo com a convicção de que a Nação no seu todo o aceitara e com ela pactuara. E nessa demonstração de atraso os nossos intelectuais pactuaram como sempre, traindo o povo, como sempre…
Depois de durante algum tempo assistir as movimentações das máquinas (que até nesse momento ainda não tinham encontrado o barco do nosso infortúnio) sem saber o que fazer comigo próprio, aniquilado, resolvi ir para casa. Pela primeira vez desejei exorcizar e evocar o espírito dos nossos antepassados das profundezas das balobas, de igual modo que eles, para que se encontrassem o barco por fim, ele viesse com um Piloto terrível, vestido de brancas vestes qual um anjo da morte no seu leme, que fosse o vingador implacável do nosso povo; que armado com poderes sobrenaturais, troando como as nossas tempestades do tempo das chuvas, destruísse toda essa gentalha ignara que tão irresponsavelmente nos governava. Caminhando na escuridão total das ruas de Bissau, aos tropeções, entrando e saindo de buracos, correndo o risco de aleijar uma perna - repetindo incessantemente na minha cabeça, a “pergunta Guineense” que ku nô fassi Deus? -, realizei por inteiro o nosso destino comum, sem nenhuns atenuantes, salvaguardas ou mecanismos de protecção que eu próprio tinha criado ao redor do meu ser com o passar de anos, para não enlouquecer como muitos outros da nossa geração (Bonifácio, Catita, Hélder S., Pérgamo e tantos outros colegas nossos) para poder aceitar o inaceitável, beber a minha parte do cálice, para não desistir do meu País, não o abandonar (como tantos outros jovens licenciados que na altura foram procurar um futuro melhor para outras paragens), para poder resistir e tentar ser feliz onde pertenço, lá onde nasci, lá onde quero morrer um dia…
Pobre “Jovem Quadro”, “formado sin forma” igual aos “catchos calerons” da minha infância em Farim, que perdidos no mundo desconhecido da noite iam-se entregar nas nossas mãos de crianças, que sem esboçar nenhum esforço real para os caçar, voltávamos para casa cobertos de louros de grandes caçadores. Assim igual a “alma beafada” no mato, eu soltava gritos silenciosos; eu estava perdido na noite da nossa existência, no negrume imenso querendo voltar a minha infância, para me abrigar da chuva e do ribombar tremendo do destino que se abatia sobre mim. Apenas mais um de centenas de quadros que formados por diversos países do mundo - que se preocupavam com o nosso e queriam genuinamente nós ajudar -, mas que na verdade nunca serviram realmente para mudar o quer que seja, pois o sistema era particularmente nefasto. Tão nefasto que na sua marcha autónoma as vezes ultrapassava a capacidade daninha de alguns detentores do poder. Era uma máquina de uma capacidade destruidora invejável.
Fico abismado com tamanha incúria. Só de pensar como se pode dar ao luxo de fuzilar elementos do povo numa nação que precisa desesperadamente como de pão para a boca de todos os seus filhos? Para não dizer de quadros, superiores e médios? Se agora rebentar uma guerra eu sendo governante teria o cuidado de evacuar todos os quadros e pô-los a salvo. Pois só assim garantiria o renascimento posterior…
Mas esses não tinham essa sensibilidade para com o futuro da nação. Não destruíam apenas os sonhos, a economia, o futuro, triturava os próprios seres humanos, que teoricamente poderiam servir para a sua própria legitimação, com o seu trabalho abnegado e desinteressado… mas isso não interessava a ninguém e ninguém ousava falar pois “formado sin forma… si bu ka toma sintido… bu na fika suma tras di cabra”
Quantos deram as suas vidas para chegarmos injustamente a este beco sem saída histórico? Quantos lutaram durante dezenas de anos, quantos estudaram e se prepararam tanto tempo para não servirem rigorosamente para nada? Porque na verdade tinha que chegar a triste conclusão que a maioria dos Guineenses dessa época (e desta também) não “servia para nada”. Pois como ainda não havia eleições - nem para isso serviam, como hoje servem - para legitimar o poder daqueles que fazem a sua desgraça. Não serviam nem para, como homens normais, serem donos das suas vidas e do seu destino…
IV
DEPUS KE É LEBAL KASSA FICA SIN NINGUIM OU AQUELA MENINA QUE CHORA DENTRO DO MEU CORAÇÃO
- “Kê ku bu na fassi li?” - “Trouxeram-me com os outros e mandaram-nos cavar as nossas sepulturas”
“Tio Lourenço” falando com um Condenado a morte em Cumeré
Não vos disse que antes de voltar definitivamente para o meu País, no último ano da minha licenciatura, vim de férias para a Guiné a fim de procurar trabalho rapidamente. Já era casado e orgulhoso pai de uma menina que amava mais do que a própria vida. Portanto queria me empregar urgentemente para poder trazer a minha família (mulher estrangeira e filha de quase dois anos) para Guiné; coisa que nunca consegui fazer, diga-se de passagem, pois quem ganha 23 Dólares (sem casa para morar) nem para comer tem, que fará para sustentar a família. Assim acabou o meu casamento, assim morreu o meu amor, diluído em barcos enterrados, buracos na noite e disparates do tamanho do mundo… - Foi o fim da minha Idade da Inocência e o inicio do inverno do meu desespero. O fim do meu acreditar e inicio do meu cepticismo.
Só consegui ver a minha filha 10 anos depois… já ela tinha doze anos… quando no caos dos bombardeamentos da revolta de 98 consegui chegar ao Senegal e dali partir para Portugal (numa forçada imigração que infelizmente ainda dura, pois até agora não consegui um trabalho digno, com que possa ao menos me sustentar na minha terra) onde depois de conseguir estabilizar-me um pouco, fui a Rússia onde ela se encontrava. Tiraram-me dez anos da vida da minha filha, sem puder ver ela a crescer, sem nunca poder brincar com ela uma vez que seja na vida, quando ela era ainda uma garota; hoje ela é uma mulher feita, mas quando olho nos seus olhos, ela sente o quanto sofri por não ter assistido a sua infância; terei que viver com isso o resto da minha vida.
Mas isso é outra história, uma estória apenas, dentro desta maior, a do nosso Povo. Uma triste estória é certo, mas apenas mais uma entre tantas outras, tão ou mais tristes do que a minha. Pois acreditem que outras houveram mais tristes. Tristíssimas… que me contaram por amizade… que soube porque fui lá… que vivi e senti porque a dor da alma, quando imensa, sai da alma do seu dono (seja mãe que perdeu o filho ou filho que perdeu o pai) e trespassa-nos como uma espada. E a dor da carne, aquela dor que vemos nos olhos e nada podemos fazer para ajudar - se somos humanos, se amamos os homens, se sofremos por eles -, aloja-se na nosso coração e acompanha a nossa existência para sempre…
Mas na verdade, vendo bem, de quê que me queixo? Devia dar graças a Deus. Sou um sortudo. Pelo menos não me mandaram cavar a minha sepultura em Cumeré (como aquele meu aluno da Turma 9 do Curso Nocturno, pacifico empregado bancário, que foi salvo in extremis pelo famoso “Tio Lourenço”). Este “Tio Lourenço” que me dizem ter sido o carrasco de centenas de guineenses, nesse dia salvou um inocente; e isso lhe será atribuído no dia do Julgamento Final e pesará no prato da balança das coisas boas que fez em vida.
Esse meu aluno que vim a encontrar alguns anos depois, com os cabelos todos brancos, embora nem trinta e cinco anos tivesse (coisa que estranhei), me disse que os cabelos embranqueceram numa só noite. E contou-me algo que me arrepia ainda hoje e me provoca a mais profunda revolta. Por “engano” foi levado para os arredores de Bissau juntamente com outros condenados a morte e obrigado a cavar a sua própria sepultura. E quando foi obrigado a entrar na cova para ser fuzilado, apareceu o “Tio Lourenço” - que por acaso tinha ido assistir as execuções, para ver se tudo corria bem - que perguntou-lhe “o que fazia ali?”. Ele respondeu “que não sabia”. Este perguntou aos executores sobre ele. E segunda parece ninguém sabia quem era ele e como ele ali foi parar. Só tinham ordens para o matar. Este “responsável”, que o conhecia bem, por ele ser empregado bancário (e talvez por conhecer os erros e incompetências do sistema) e sabendo-o um inocente pobre diabo, mandou-o sair da cova e entrar no seu carro, para depois o libertar, sem mais nem menos - sem nenhumas formalidades burocráticas - , livre como um passarinho em “Chapa de Bissau”. Acreditam nisto?
Este, como tantos outros nunca reclamou, nunca pediu indemnização, pelo contrário se pudesse beijava de gratidão os que o condenaram a morte e depois libertaram. Este, como outros, apenas agradeceu a Deus, por ter sido poupado, pois nessa noite outros, dezenas de outros iguais a ele ficaram na vala comum. Portanto ele, como eu, também não tinha que se queixar; só agradecer. Coitado deste filho do nosso povo que não pedia nada. Não reivindicava nada. Não pedia escolas, não pedia hospitais, luz e agua, não pedia a felicidade. Apenas pedia que não fosse morto por nada; nada; nada; nada de nada na sua própria terra pelos seus próprios irmãos. Apenas queria que lhe deixassem viver para ver os seus filhos crescerem, para ver os pássaros a voarem e a cantarem; apenas ver o Sol nascer e a as estrelas a brilharem no céu que o viu nascer. Apenas ficar ali, encostado a essa velha placa que dizia “Bissau”, e respirar o ar fresco da noite, chorando e rindo ao mesmo tempo, olhando as estrelas, sentindo o cheiro forte da nossa terra, enquanto pessoas que passavam apressados ao lado dele, pensavam que era apenas um velho maluco (coitados não podiam imaginar nem nos seus pesadelos o que estava a acontecer no nosso País). Mas isso não era nada, para este condenado resgatado da morte, diante da certeza de que poderia nesse momento estar debaixo da terra, mas não estava.
A sua querida mulher não iria acreditar, quando lhe contasse que tinha escapado das garras do diabo, ele que era tão manso… Não acreditaria que ele tinha conhecido a dor e o medo, que tinha vista a face da morte e que tinha sido salvo…
Não sabia ainda que tinha os cabelos todos brancos de susto que teve quando depois de cavar a sua sepultura (nenhum homem devia ser obrigado a cavar a sua própria sepultura. É contra natura; É indigno; e a Lei de deus não o permite), ficaram de pé a frente dela a espera do “disparar”. Quando o pelotão de execução levantou as armas e apontou, os cabelos embranqueceram num segundo. Só soube que estavam assim, brancos como de um velho, quando a sua velha mãe lhe perguntou se tinha pintado o cabelo e para que?
É verdade, eu como esse outro - que caminha contente pelo passeio da “Feira de Praça” e pergunta o preço da “cola” e se perde na multidão, de cabelos esbranquiçados cobrindo uma cabeça jovem - sou um sortudo; não senti o cano frio da espingarda na minha nuca, nem o calor da coronha nas minhas costelas, nem choques eléctricos nos meus genitais, nem passei a noite fazendo “Apolo” de cabeça para baixo, nem me partiram o fémur na Segunda Esquadra, nem fui fuzilado nas matas e nas lalas” como tantos outros filhos do nosso sofrido povo…
Sim, sei que não devo queixar-me pelo meu destino pessoal (aprendi isso criança com o Tenente Raul, lembram-se dele?), devo apenas lamentar o meu povo e derramar lágrimas por estes filhos do nosso povo que “não tiveram sorte”, que fuzilados e enterrados ainda em valas comuns, não têm a dignidade de seres humanos nem depois da morte. E por isso pergunto cada dia porque que os culpados da nossa imensa vergonha e infinita desgraça continuam impunes?
Até hoje - embora “tenham perdoado” os que os mataram gratuitamente (pois de que forma posso explicar este silencio ensurdecedor sobre eles e o seu trágico destino?) - não tiveram o direito de um túmulo condigno com o seu nome, data de nascimento e data de matamento.
E em verdade vos digo, como Hannah Arendt, que “as nossas dores também serão suportadas” contando histórias sobre elas. Contando sobre a vida e o destino de cada um deles. Contando “A vida verdadeira de Domingos Xavier” de cada um deles, os caminhos por onde andaram, as pegadas que deixaram nos trilhos da nossa terra, onde um dia nasceram livres e iguais. Lamentando por eles os amores que não tiveram, o sono que não dormiram, a casa que não construíram, a bolanha que não lavraram, os filhos que não tiveram, os filhos que não criaram porque “depus ke é lebal kassa fica sin ninguim”… E assim apiedar-se de cada um deles e sentir a sua profunda revolta dentro do nosso peito, experimentar a dor pungente que sentiram no coração quando na hora de serem mortos fizeram pela última vez a “Pergunta Guineense”: Que ku n`fassi Deus?
Chorar como eles choraram cada dia, lembrando os filhos pequenos que deixaram para trás, para sempre. Lamentar toda a nossa imensa desgraça e saber que por cada um que morreu morreram mais três. Se vos disseram que foram quinhentos e tal, respondam que foram sim, mas multiplicados por três, as vezes por cinco. Pois cada um deixou uma filha pequenina que chora toda a noite perguntando pelo pai que nunca mais viu.
Cada um deixou um filho que odiara o mundo e o destino, e cada dia escondido no intervalo das aulas, atrás daquele portão de ferro, perguntara a Deus porque que é que só ele não tem pai na sua sala de aulas. Perguntara a Deus, porque a noite ao estudar a luz das velas, pergunta a mãe, mas esta só chora e chora. E não demorara a morrer deixando-o órfão duas vezes. De mãe e pai. E atrás do caixão da sua mãe, o seu pequeno caixão branco de menino, que chora pelo seu pai que nunca mais voltou, não demora, a partir pelo mesmo caminho.
Cada fuzilamento foi verdade três fuzilamentos. As vezes mais, as vezes muito mais. Aqueles filhos que sobreviveram a morte do pai, estão mortos por dentro, e chorarão a vida inteira e nunca serão felizes. Conheci uma menina de oito anos que desde que levaram o pai nunca mais comeu, só fazia perguntar pelo pai, quando é que ele chegaria… para brincar com ela? E definhava cada dia. E no dia que morreu era só pele e osso. O enfermeiro disse que era paludismo, daquele galopante, daqueles que só o nome nos arrepia, aquela cerebral, malvada, que logo que chega mata. Mas não foi paludismo não - o médico enganou-se no diagnóstico -, foi dor galopante, tristeza cerebral… a dor de ser órfã; a dor de ser criança e não poder entender porque lhe tiraram o seu paizinho…
Eu disse: “conheci” uma menina? Enganei-me. Não conheci. Contaram-me. Mas não vou emendar a frase. Hoje não tenho a borracha de memória, nem o apagador da dor comigo e porque as palavras têm o direito de enganar-se também. Na verdade conheci. Não uma menina, mas varias meninas e vários meninos. Porque conhecer a dor de um é conhecer a dor de centenas. Conheci sim, porque vi a dor dessa criança, nos olhos de quem me contou; ouvi o choro dorido dessa menina - molhando de lágrimas o colchão, soluçando baixinho, a noite inteira – nas palavras desta que me contou. Toquei com os meus dedos as lágrimas sofridas da sua mãe, que também acordada a noite inteira, sentia através das paredes nuas de adobe, nessa casa de fino teto de esteira, o soluçar pungente da filha: que ela impotente, coberta de vergonha, não podia conter nem amenizar; tinha imensa vergonha pois é suposto uma mãe poder consolar os filhos no momento da dor. E ela não podia, não podia prometer aos filhos que o pai um dia voltaria. Assim, nas lágrimas desta que me conta, conheci a dor da outra, que não existe para contar; conheci o seu profundo sentir, e entendi por fim, que só sentindo verdadeiramente o seu profundo sentir dentro do nosso coração, podemos sentir o nosso sentir comum como povo. Por isso vos falo em amar cada criança que chora, cada velho que definha, cada jovem que é destruído todos os dias… Porque em verdade vos digo, só amamos a nossa Pátria, amando os seus filhos.
Mas acredito que um dia o nosso ódio - conjuntamente com o nosso amor - lhes trará paz que merecem, resgatando-lhes das valas comuns onde jazem e lhes faremos o enterro condigno com a sua dignidade de homens; nesse dia tirar-lhe-emos o estigma do criminoso, o estigma do anonimato a que foram votados e os devolveremos o nome que os seus pais lhes deram ao nascerem, escrevendo em cada uma das suas campas nome e apelido de cada um e diremos quem foram, quando caminharam confiantes por esta terra, entre os vivos, sentindo o calor do sol nas suas faces radiosas. E mesmo não sabendo porque morreram em vão (nunca ninguém saberá) na flor da vida, sentirão o suave cair das gotas da chuva e o cheiro bom da terra molhada que cobrira seus corpos e por fim ouvirão o murmúrio da brisa a restolhar as flores que os seus netos plantarão em cima das suas tumbas… E aquela menina parará de chorar por fim…
E as suas histórias servirão para nos indicar o caminho futuro; pois no fundo isto pretende ser apenas isso: indicação do caminho futuro. Um futuro que talvez não conhecerei na minha curta existência terrestre, mas que será para a eternidade. E não morrerei em paz (nem sentirei o cheiro bom da terra molhada pela chuva que cobrira o meu caixão) se não lutar pela ideia da Nação. Pois para mim não existe diferença entre a ideia da Nação e a própria Nação, por isso digo que ela existira viva e pujante mesmo que apenas dentro dos nossos sofridos peitos. Ela será eterna dentro da nossa esperança que ainda se mantém, depois de “séculos de dor”. Ela será realizável dentro dos nossos sonhos, sonhos que um dia serão reais na sua concretização, pois serão “frutos das nossas mãos” e “flores do nosso sangue”. Por isso nesses tristes anos da diáspora, nos olhos de cada Guineense que aperto a mão, vejo lá no fundo, brilhando, a nossa Pátria perdida. Em cada sorriso que vejo nos rostos dos filhos dos nossos filhos vejo a certeza do nosso porvir…
E mesmo que quando olham a vossa volta e só encontrem o deserto e o desespero, acreditem. Mesmo que só vislumbrem rostos desiludidos, mesmo que não vejam mais nas ruas os milhares que já partiram, abandonando toda uma vida por não puderem suportar mais, acreditem. Mesmo que seja difícil, pois com falta de tudo que existe num País normal, com um nível de desenvolvimento que é o pior do mundo inteiro, acreditem. Mas, se como seres humanos que são, vierem a fraquejar, se por fim sentirem-se desesperados e impotentes, então olhem para dentro de vos mesmos e lá nas profundezas da vossa alma encontrarão a resposta que a realidade a vossa volta teima em vos negar. E mesmo cobertos pelas areias deste deserto de almas, acreditem, como eu acredito, que a redenção esta dentro de cada um de nós.
A Redenção que só virá depois de cada um de nós se libertar a si mesmo e tomar a decisão de não voltar a viver como até hoje. Tomar a decisão de ser um homem livre na sua terra livre. Tomar a decisão de finalmente vencer a cobardia e ser por fim um homem que fará tudo que puder para dignificar a sua existência, a sua Pátria e a sua Nação. E seremos então esse homem, que juntamente como os outros iguais, será a elite que não aceitara o que os seus pais erradamente aceitaram. Esse homem será aquele por quem trabalho, aquele que é o “Puro Guineense”. Pois a pureza não vem do sangue, nem da cor da pele, nem da tribo, instrução ou nível cultural. A pureza não é externa, ela se encontra no âmago da existência, no fundo do coração, nas profundezas da alma e a sua medida é só uma: o amor a Pátria e ao Povo.
Atenciosamente
Arq. FERNANDO J. P. TEIXEIRA
* Licenciado em Arquitectura (Rússia 1991). Pós graduado em Urbanismo (ISCTE)
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