Memória duma visita do Comandante Paulo
Correia
Ernesto Dabó
edabo49@hotmail.com
14.06.2010
Nesta
incessante procura de saídas para esta cíclica crise que não nos deixa viver e
construir em paz, ocorreu-me rever alguns escritos que restam dos meus arquivos
e dei com uma crónica que escrevi, à praticamente trinta anos. Nela relato uma
visita realizada pelo Comandante Paulo Correia na qualidade de Ministro da
Defesa, em Abril de 1981, a algumas regiões militares do País, portanto, cinco
meses após o 14 de Novembro de 1980. Integrei a delegação ministerial na
qualidade de técnico do Ministério do Desenvolvimento Rural.
Após
releitura desse texto achei que o devia partilhar com todos os que se esforçam
por compreender e contribuir para uma saída airosa da crise.
Memória duma visita do
Comandante Paulo Correia
ÀS 15:55 H,
do dia 15 de Abril erguia-se o helicóptero da base militar de Bissalanca para
uma digressão do Camarada Ministro da Defesa, Comandante Paulo Correia,
acompanhado de sua escolta e uma equipa técnica do Ministério do Desenvolvimento
Rural.
Quebo foi a
primeira etapa do percurso, onde o Camarada Ministro iniciou a sua observação,
in loco, das unidades militares estacionadas em algumas Regiões.
Ao
princípio da noite, mais sombrio era o quartel do batalhão de Infantaria de
Quebo. Homens e coisas, envoltos nesse quadro pintado a óleo de húmido suor, com
pingos de luar. Passo a passo, de edifício a edifício, movimentou-se a delegação
ministerial, indagando e discutindo. A preocupação de conhecer ao pormenor, foi
a tónica do diálogo do Camarada Ministro com os residentes, durante toda a
visita. As exposições do camarada Quecuto e outros membros do comando do
Batalhão, complementavam a constatação das precárias condições em que aí vivem.
Uma breve reflexão acerca do observado, a outra conclusão não pode levar: o
quartel de Quebo, o que tem de diferente das bases do tempo da guerrilha, é
apenas o facto de ter algumas casas de adobe forradas de cimento e algumas horas
diárias de iluminação eléctrica. É difícil aceitar que alguma atenção se prestou
à melhoria das condições de vida das nossas Forças Armadas, durante o regime
deposto, pois que, o retrato do Quartel de Quebo é desolador. Quase tudo que aí
se encontra foi herdado do exército colonial, encontrando-se presentemente em
avançado estado de deterioração. Do portão ao extremo do quartel não se vê uma
casa caiada, nenhuma sem fendas nas paredes, portas em bom estado, tectos em
boas condições, coberturas sem estragos. Deixando o exterior dos edifícios, no
interior a situação não se apresenta com melhor aspecto: dormitórios com camas
velhas, colchões carcomidos, poeirentos e quase todos sem lençóis, raras
instalações eléctricas, canalizações avariadas, etc, etc,. O refeitório, posto
sanitário, oficina e demais instalações, são fotocópias das atrás descritas.
Concluída a
visita às instalações, teve lugar um meeting em que durante quase três horas se
escutou o Comandante Paulo Correia dizendo como funcionou o regime deposto, de
forma a levar o país ao caos económico em que se encontra. As palavras brotavam
num discurso objectivo e bem elaborado. A indignação e revolta cresciam a cada
frase. Crimes de todo o tipo, cometidos durante os seis anos do regime deposto,
foram dados a conhecer. Assassínios, roubos, corrupção, etc., etc., foram as
variantes fundamentais do regime.
Era
importante dizer a situação em que se encontra o país, em todos os domínios. Mas
muito mais importante, é saber-se que fazer para a transformar. Essa foi a
preocupação central do Camarada Ministro em toda a sua exposição. Trabalhar mais
e melhor, para maior e melhor produção obtermos, foi a palavra de ordem que o
Camarada Comandante levou aos Camaradas de maneira convincente, pois que, disse
o porquê, como e para quem o fazer. Quando abandonamos a sala onde se realizou o
meeting, os comentários eram carregados de indignação e pasmo pelos horrendos
crimes que se cometeram. Para que um grupinho de gente pudesse viver uma vida de
gente de país rico, os camponeses e assalariados deste país de mil pobrezas
tiveram que pagar o elevado preço de viverem abandonados à fome, doença, nudez,
analfabetismo e tantos outros males. É certo que não vai ser fácil cobrar-lhes
esta dívida. Mas que não se duvide: pagá-la-ão, porque assim sentenciou a
história. As etapas a vencer são múltiplas e complexas. A Primeira é a
auto-suficiência alimentar, que ultrapassaremos com o aumento da produtividade e
da produção em todos os domínios, sendo o primeiro o da produção agrícola. Por
isso na agenda de trabalhos do Camarada Ministro destacou-se a proposta de
criação de campos de produção agrícola por todas as unidades militares. Sendo a
maioria dos “militantes armados”, homens que por imposição da história trocaram
alfaias agrícolas por armas, a proposta foi aprovada com o maior entusiasmo.
Assessorado
pela equipa técnica do Ministério do Desenvolvimento Rural, o segundo dia da
digressão principiou com visitas do Ministro a algumas áreas dos Sectores de
Balana e Quebo, a fim de se escolher terrenos para a criação de campos de
produção agrícola. Balana foi a primeira zona visitada. O riacho que passa sob a
histórica ponte de Balana, obrigou-nos a estacionar. As condições encontradas
eram favoráveis à produção agrícola. Mas dado a distante localização da área em
relação ao quartel, agravada por uma má via de acesso, decidiu-se tentar
encontrar uma outra área a menor distância da unidade. Após uma hora e quarenta
minutos de marcha, três horas e vinte minutos de viatura, conseguiu-se escolher
outra área junto ao rio Corrubal, a pouca distância do quartel.
É
interessante descrever alguns momentos dessa visita. A cada quilómetro ou pausa,
ocorria aos combatentes das nossas Gloriosas FARP, factos dos duros momentos da
guerra pela Libertação Nacional, sucedidas na zona em que nos encontrássemos.
Foi emocionante observar como o Camarada Comandante Paulo Correia se recordava
das bases, caminhos, locais de emboscadas, bombardeamentos, assaltos, etc.
Gargalhadas pontuais coloriam os relatos. Trocas de cumprimentos com populações
das tabancas, ofertas de água, cola, comida, foram outros tantos momentos
repetidos, do tempo da guerrilha.
A segunda
hora da tarde do terceiro dia já se fazia sentir, quando outro meeting teve
começo. Desta feita, com responsáveis dos Comités locais do Partido, das
Organizações de Massas, responsáveis estatais e outras personalidades. Situação
no país durante o regime deposto, com ênfase na degradação das condições de vida
nos quartéis; esclarecimentos sobre o 14 de Novembro; relações com Cabo Verde;
situação económica do país; clima político no país após o 14 de Novembro;
mobilização massiva de camponeses para a próxima campanha agrícola; aumento das
receitas regionais; vigilância permanente; foram, entre outras, questões
abordadas pelo Camarada Ministro durante o encontro. As questões levantadas
pelos participantes, permitiram a complementarização de alguns pontos, de certa
maneira mais complexos.
Caminhando
com frescura, como se ainda fossem as primeiras horas do dia, o Comandante
abandonou o pequeno “Djemberém” onde se realizou a reunião para uma breve
refeição, regada igualmente de circunstanciais “passadas” do tempo da guerrilha.
Carne de vaca, arroz e óleo de palma foi o prato do dia. Terminado o almoço, já
a agenda impunha outra actividade: graduação de alguns militares. À sombra de um
hirsuto “mampatâs”, derramada sobre um soalho ferruginoso de latrites, via-se
uma ordenada formatura, aguardando o inicio do acto. Como em outros momentos,
sempre ladeado da sua atenta escolta, em marcha serena e decidida dirigiu-se o
Ministro ao local da cerimónia. Enérgicas continências e outras atitudes
militares, exprimiram as saudações ao Primeiro Comandante. Um sintético discurso
acerca do reajustamento das graduações nas FARP, permitiu mais uma vez ao
Ministro da Defesa, revelar como o regime deposto se aproveitou da distribuição
de patentes para dividir as nossas Forças Armadas. Colocadas as divisas nos
ombros de alguns Camaradas, finda a cerimonia, iniciamos os preparativos para o
arranque da segunda etapa da digressão ministerial. Uma ligeira aceleração de
movimentos e toda a delegação se pôs pronta para deixar Quebo rumo a Gabú. Como
que em jeito de saudação pelo intenso trabalho realizado em menos de 48 horas,
frenéticas notas de tambores, espicaçando um frenético djidiu, vinham do portão
do quartel. De certo modo surpreendida por esse inesperado surto de um alegre
fragmento das artes nacionais, a delegação interrompeu a caminhada ao
helicóptero para se deliciar com esse breve instante de cultura.
Das janelas
do aparelho, ainda se podia observar o jovem dançarino, como que balançando com
a deslocação de ar dos hélices, agitando-se cada vez com mais frenesim. Minuto
sobre minuto, o pássaro cinzento e barulhento, atravessou os ares que separam
Quebo de Gabú. Fins do segundo dia da digressão, chegada à capital mais a Leste
do país. Rápida corrida de automóveis levou a delegação à residência do
Presidente da Região. Aí aconteceram as saudações e escasso momento de repouso.
Em seguida dirigimo-nos ao quartel de Gabú. Tal como em Quebo, a agenda de
trabalhos indicava a realização de visitas, encontros, reuniões, graduações de
militares e escolha de terreno para a lavoura.
O meeting
realizado com o batalhão de Gabú, de novo levou o Camarada Comandante Paulo
Correia a falar aos militares das seguintes questões: reestruturação e
disciplina nas FARP; interpretação das resoluções das reuniões dos oficiais com
o Conselho da Revolução e Estado Maior General; reajustamento das graduações nas
FARP; apelo às Forças Armadas para participarem na produção agrícola. Para alem
destes, foram abordados outros assuntos dos domínios económico, social, cultural
e político.
Com apenas
algumas variantes para melhor, as condições de vida e trabalho da unidade de
Gabú, muito pouco diferem das encontradas em Quebo. Manhã do dia seguinte,
encontro com reponsáveis dos órgãos estatais e partidários na Região. Para
estes, a intervenção do Comandante Paulo Correia foi agua cristalina que à muito
se aguardava para saciar a sede de informações que os ajudassem a combater as da
“Rádio Tabanca”. Dúvidas diversas foram eliminadas, dando lugar a novo
encorajamento.
Após Gabu,
Bafatá, Farim e Mansoa, foram as paragens seguintes. Em todas elas se repetiram
os objectivos e se registaram as mesmas situações nos quartéis.
Nos rostos
da delegação já se notavam alguns traços de cansaço, motivados por intensas
horas de trabalho, vividas durante cinco dias. De regresso a Bissau
acompanhavam-nos as duras imagens deste país. A memória de tudo o que vimos e
ouvimos crescia em nós como um grito de tufão, exigindo que justiça seja feita
sem complacência, neste momento de reajustamento da vida nacional.
Bissau, 28
de Abril de 1981
Ernesto
Dabó
POST
SCRIPTUM
Caro
leitor, depois desta crónica de à quase trinta anos atrás, quis o destino ter-me
na condição de Assessor do Presidenta da Republica de Transição, aquando do caso
“6 de Outubro” de 2004, do qual resultou o assassinato do Chefe de Estado Maior
General, Veríssimo Correia Seabra e do Coronel Domingos Barros. A 08 do mesmo
Outubro, o grupo de militares protagonista do “Caso”, remeteu ao Presidente da
Republica um documento a que deram os significativo título de “PROPOSTA DE
ENTENDIMENTO DOS MILITARES COM O GOVERNO”. Quando li o exemplar que me foi
distribuído para análise, constatei que filhos dos militares que visitamos em
1981, vivem hoje nas mesmas condições (ou piores), que os seus pais, nos mesmos
quartéis.
Dos oito
blocos de reivindicações que integram o documento, três me pareceram mais
expressivos da velhice da questão militar na Guiné-Bissau. Passo a
transcrevê-las:
IV
“Referente
à melhoria da dieta alimentar de forma a acabar com a fome generalizada em todos
os Quartéis, os Militares propõem:
a)
Criação de um fundo de maneio em cada Unidade
Militar;
b)
Distribuição directa a cada Unidade Militar da sua
ração de combate e géneros alimentícios para o rancho;
c)
Criação de cantinas nas unidades;
d)
Reparação de Messes;
e)
Fornecimento de pães para o pequeno-almoço deve ser
directamente ligado a cada Unidade Militar e superiormente controlada pela
Inspecção Militar.
V
Atendendo
que as instalações das Unidades Militares, herdadas do colonialismo Português,
até hoje não sofreram quaisquer pintura ou grandes reparações e considerando as
condições desumanas das casernas, os Militares propõem:
a)
Revisão imediata das coberturas das casernas,
livrando-se assim os seus elementos (entenda-se militares) da chuva e humidade;
b)
A distribuição de colchões e camas incluindo os
respectivos cobertores e mosquiteiros aos militares;
c)
Pintura das casernas e refeitórios;
d)
Reparações de casas de banho;
e)
Agua canalizada e electrificação de casernas;
f)
Que os fornecimentos aos quartéis se procedam através
de concursos públicos com contratos escritos e devidamente seguidos pelo
Ministério da Defesa e Inspecção Superior das Forças Armadas.
VI
Preocupado
com o clientelismo nas promoções, os Militares propõem que sejam doravante
respeitadas as carreiras instituídas por Lei e as condições de promoções e
nomeações da Lei da Defesa Nacional e das Forças Armadas (Nº 6/99 de 07 de
Setembro e publicado no Boletim Oficial nº36).
«««//»»»
Caro
leitor, quando no presente, analiso a intervenção do Presidente da Republica,
Combatente da Liberdade da Pátria, Malam Bacai Sanhá, no encontro com veteranos
da Luta de Libertação Nacional, chega-me o eco dos discursos do Comandante Paulo
Correia em 1981. Quando o General António Indjai, após o primeiro de Abril
disse: “ posso ir para a reforma, mesmo que seja amanhã…desde que seja condigna”
chegaram-me ecos de Ansumane Mané, Veríssimo Seabra e Tagme Na-Waié.
Pedir a
umas Forças Armadas nestas condições, à quase 40 anos, que se submeta ao poder
político, me parece utópico.
Vendo
bem as coisas, estou em crer que reformar o Sector da Defesa e Segurança e
manter o sector político como está, é entregar carro novo a velho e míope
condutor.
Ernesto
Dabó
VAMOS CONTINUAR A
TRABALHAR!
Associação
Guiné-Bissau
CONTRIBUTO
associacaocontributo@gmail.com
www.didinho.org
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