“…NÔ PÁRA DJA…”
(Tabanka Djaz)
Por: Isabel Maria Garcia de Almeida (Bélita)
Bissau, 07 de Junho de 2009
Mais uma onda avassaladora de choque, tristeza, luto, angústia, choro, pânico!
Hoje faz 11 anos que eclodiu a guerra civil de 1998. Hoje vai a enterrar Baciro Dabó, mais uma vítima da barbárie e da intolerância, candidato presidencial e, por ironia do destino, um dos protagonistas governamentais da guerra iniciada a 07 de Junho de 98…
Apesar do sorriso nos rostos dos guineenses, há 35 anos que choramos um pouco todos os dias, alguns, como o de hoje, mais compulsivamente. Digo 35 anos? Na realidade há mais de um século se aos anos de independência somarmos o período de opressão e jugo coloniais.
Não pude evitar olhar para o meu próprio umbigo e recuar 34 anos. Lembrei-me em particular do meu pai, da desagregação da minha família nuclear original e “da minha solidão” no chão da Guiné. Foi devido à intolerância, mesquinhez e barbárie que o meu pai foi arbitrariamente preso em 1975, durante quase 3 anos, sem culpa formada e libertado sem nunca se ter provado as acusações de que fora alvo...
Para fugir à perseguição após a soltura, viu-se obrigado a emigrar para Portugal com toda a família... menos as 2 filhas. Tinha eu 19 anos na altura e a minha irmã 17. Acreditávamos que tudo não passava de equívocos, de custos às vezes inevitáveis de um pós-guerra.
Tivemos o atrevimento e a ousadia de sonhar com a possibilidade de assumir a nossa quota-parte de responsabilidade e participar de corpo e alma, na construção de um futuro de justiça e desenvolvimento para as gerações vindouras, com o risco de ruptura com a restante família, o meu pai em particular, que nos rotulava de “aliadas dos seus inimigos”. Com o tempo, mesmo sem nunca ter compreendido as nossas motivações, acabou por se resignar, aceitar e respeitar a nossa escolha…
A morte ceifou a vida à minha irmã muito cedo, aos 27 anos de idade e eu continuei a dar o meu máximo para a paz e a prosperidade deste chão querido, assim como o gozo de cidadania plena, transmitindo esse mesmo espírito aos meus filhos e a todos os jovens com que cruzo na minha vida, e não só…
Se por um lado construí a minha própria família, por outro, continuei a sentir-me sempre só, órfã de pai, de mãe, de irmãos...
Apesar de longe, o meu pai “foi perseguido até à morte pelo percurso político da Guiné-Bissau”. Aos 40 anos de idade os traumas da prisão impediram-lhe de continuar a levar uma vida familiar, social e economicamente activas.
Sem que se lhe conhecessem antecedentes cardíacos, 30 (trinta) anos depois de ter saído da Guiné, 20 (vinte) dias após a eclosão da guerra de 98, sucumbe, relativamente novo, aos 62 anos de idade, a um ataque cardíaco, quiçá fruto das recordações e emoções provocadas pelas imagens dos horrores da guerra apresentados a todo o mundo através da televisão.
Esta é apenas uma história, na construção (?) do Estado da Guiné-Bissau. Mas por ser uma história vivida na primeira pessoa, é mais tangível, por isso inevitável trazê-la à lembrança em dias como o de hoje! Milhares de outras histórias, certamente muito mais trágicas, poderiam ser contadas pelos guineenses!
Tenho 51 anos e desde que me conheço como pessoa e todos os da minha geração, atrás do sorriso estampado no rosto e da esperança em dias melhores, escondemos a opressão, a violência, o luto, a tristeza e o pranto… Os nossos filhos e netos continuam a viver sob os mesmos signos, numa progressão geométrica assustadora!
A situação banalizou-se a tal ponto que, enquanto se enterram pessoas cujo assassinato foi declaradamente protagonizado por forças que deviam ser da ordem, da segurança do Estado e da protecção dos cidadãos, uma das quais candidato presidencial e outra deputado da Nação, 3 meses apenas, após o assassinato do Presidente da República e do Chefe do Estado-Maior General das Forças Armadas, um alto responsável afirma numa entrevista, que “…a situação está calma; não há nada de alarmante”. É inacreditável, inaceitável, simplesmente medonho; mais parece uma interminável noite de pesadelo…
E pensar que muito frequentemente o guineense comum até tem dificuldade em matar mesmo uma galinha por se ter habituado à sua presença, por saber que a sua ausência poderá provocar algum vazio na sua vida… Repito, muitas vezes é difícil matar até mesmo uma galinha!
Como compreender a motivação e necessidade de matar gratuita e levianamente, de forma calculista e a sangue frio os nossos compatriotas e irmãos num espaço geográfico tão exíguo, em que todos nos conhecemos e directa ou indirectamente todos temos alguma relação, até de parentesco? “Famílias di Guiné i suma corda di batata”.
Os nossos governantes parecem anestesiados, assumindo atitudes inverosímeis, que se podem interpretar como insensibilidade/indiferença, impotência ou conivência?!…
É quase impossível agora fazer uma análise racional dos factos e vislumbrar o futuro. Quanto mais tentamos convencer-nos de que atingimos o fundo do poço e estamos em condições de começar a içar-nos para a saída, mais depressa e de forma cada vez mais atroz matam as nossas ilusões!
Costuma dizer-se que o ferro se bate quando quente, mas é precisamente nos momentos de pico das tragédias sociais que todos os que deveriam assumir a maior responsabilidade decidem primar pela ausência, tanto no plano nacional como internacional.
É preciso deixar de imitar a avestruz, tirar a cabeça da areia e enfrentar a verdade e os desafios com determinação, clarividência, tolerância e paciência. Não é necessário nem aconselhável desperdiçar tempo para “ (re) inventar a roda”. Muitos países já passaram por situações igualmente ou até mais críticas e souberam encontrar uma saída para a crise. Vamos aproveitar inteligentemente essas experiências que se revelaram boas práticas e adaptá-las à nossa situação.
Se alguma pessoa estudiosa decidir e conseguir avaliar as perdas de capital humano e depressão social sofridas pela Guiné-Bissau e o seu povo devido à instabilidade política e traduzi-las em oportunidades perdidas de desenvolvimento social e económico, concerteza que os resultados seriam arrasadores.
Durante todos estes dias tenho tido, obcecadamente, o pensamento fixo na grande interrogação que é viver nesta terra de paradoxos e tentando ignorar as teimosas lágrimas nos cantos dos olhos, por vezes impossíveis de conter...
Já tinha partilhado com os utentes deste espaço um “desabafo”, em Março último, intitulado “Guiné-Bissau: é preciso acreditar!”. Não temos outra saída, vamos continuar a acreditar… A situação é cada vez mais complicada, porque cada vez há menos Estado, uma sociedade mais desagregada e grupos sociais aparentemente fora de qualquer controlo.
Estamos concerteza ainda a tempo de arrepiar caminho, de aprender as lições e colocar os interesses nacionais acima dos interesses inconfessos, individuais e de grupo. Que sentido e utilidade têm o poder, a autoridade, o dinheiro e outros bens, num clima de insegurança, de sensação de morte iminente?
É premente que cada grupo de actores políticos e sociais assuma a sua responsabilidade, sobretudo o Estado Guineense e a comunidade internacional, nas suas diferentes formas de organização, tanto a nível sub-regional, continental, como planetário.
Nós, os sobreviventes não temos escolha, o nosso destino e desafio é reinventar diariamente motivação, forças e alegrias para continuar a viver e teimosamente buscar e fazer com que palavras como tolerância, liberdade, respeito, justiça, solidariedade e fraternidade façam sentido nestes belos, ricos, invejáveis e atraentes 32 125 Km2 que Deus nos mereceu como solo pátrio.
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