O SOFRIMENTO E AS INTERROGAÇÕES NO OLHAR DE UMA JOVEM MULHER DA GUINÉ-BISSAU

Fotos: Liga Guineense dos Direitos Humanos

 

Por: Fernando Casimiro (Didinho)

didinho@sapo.pt

08.03.2007

Hoje, celebra-se o Dia Internacional das Mulheres. Quero elogiar todas as Mulheres do Mundo e em especial as Mulheres da Guiné-Bissau, que continuam a ser vítimas dos mais bárbaros actos em nome de uma Tradição que teima em não respeitar a pessoa humana e se manifesta de forma ignorante na abordagem das práticas tradicionais prejudiciais ao nosso povo e, particularmente às nossas Mulheres.

Recebi ontem as imagens que vos apresento neste texto. Fiquei chocado com o que vi! Posso imaginar o sofrimento e as interrogações desta jovem Mulher guineense...Até quando isto?

Esta jovem foi amarrada e torturada pelos próprios familiares que a queriam obrigar a um casamento de conveniência.

Na Guiné-Bissau, segundo certos usos e costumes, os pais ou familiares é que decidem com quem as filhas ou parentes se vão casar.

Para além da questão dos casamentos forçados, as Mulheres guineenses sofrem com a questão da mutilação genital, feita na maior parte das vezes a crianças.

Muito se tem escrito e falado sobre estas duas questões, sem se saber concretamente o que é que o Estado guineense pretende fazer para acabar com estas práticas!

 Ainda que se afirme que estas práticas simbolizam a Tradição ou vão de encontro aos usos e costumes, deveriam ser definidas como opção e sempre da Mulher e nunca por imposição de quem quer que seja.

Os guineenses devem unir esforços no sentido de denunciar, condenar e acabar com comportamentos que continuam a entravar o desenvolvimento do país.

Que não se confundam os actos bárbaros de uma Tradição retrógrada com a nobreza da Tradição com que cada guineense se deve orgulhar na definição da sua identidade.

Somos um povo, tal como todos os povos do Mundo, feito de Homens e de Mulheres.

Estou com as nossas Mulheres, pelos seus Direitos, pois que dos seus Deveres não nos devemos queixar!

Como complemento deste trabalho, sugiro a leitura dos pontos de vista de Ernst Schade, cidadão holandês, fotógrafo e amigo da Guiné-Bissau. Uma visão real de quem conhece e reconhece o valor das Mulheres na Guiné-Bissau.

Mulheres da Guiné-Bissau

Farim, regresso a casa, aldeia K-3, pôr do sol. Foto de Ernst Schade

Farim, 2005, regresso a casa, aldeia K-3, pôr do sol. Foto de Ernst Schade

 

Por: Ernst Schade (ernstschade@netcabo.pt) – Janeiro de 2005

Guiné-Bissau, situada na costa ocidental de África, não ocupa sequer  metade de Portugal. Independente de Portugal a partir de 1974, e desde então fortemente dividida por disputas políticas internas que quase levaram o país à falência. Abundante em água, com floresta de tarrafes ao longo da costa e alguns grandes rios que correm do interior africano para o oceano Atlântico.

 

Atravessamos o rio Cacheu num barco pouco estável, perto da pequena cidade de Farim. O orvalho cai sobre o rio. Na outra margem, mulheres com alguidares cheios de sal esperam pacientemente para atravessar.

São as mulheres da Guiné-Bissau que mantêm o país a andar.

Arrebanham água para as hortas e vendem a sua colheita no mercado. Uma hora para cima, para chegar ao barco, e uma hora para baixo. Elas cozinham e cuidam dos filhos. E os homens da Guiné? Parece que apenas deambulam, ocupados com negócios pouco claros, rezam e esperam pela tarde mais fresca.

Conseguimos uma boleia de um camião de caixa aberta. Nas margens exteriores do rio, grupos de mulheres apanham as camadas de lodo à superfície. “O que é que esta gente está a fazer?”, perguntamos ao guia. “O lodo contém uma grande quantidade de sal”, responde. Sal? Aqui? A 150 quilómetros do mar? As margens exteriores afinal eram as primitivas bolanhas, campos de arroz que noutros tempos eram irrigadas com água do rio.  Mas como cada vez menos água vinha do interior, a água salgada do mar entrou por ali adentro. Assim, os campos de arroz desapareceram e perdeu-se a principal fonte de subsistência. Mas as inventivas mulheres da aldeia com o estranho nome de “K3” transformaram em virtude uma necessidade: o lodo é transportado para casa, uma viagem a pé de 30 minutos. Depois filtram-no com a água de um poço por elas mesmo cavado a 15 metros de profundidade. Os resíduos são depois cozidos em grandes panelas rasas, feitas com materiais deixados pelo exército colonial português. Cada cozedura produz à volta de seis quilos de sal de primeira qualidade.

A aldeia “K3” é conhecida em todo o país. Antes albergava casernas do exército português (a três quilómetros de Farim, então K3!). Aladji Fode Touré é o Homem Grande, o chefe tradicional. Tem pelo menos 90 anos. É fluente em árabe. Está reunido com os homens mais velhos na varanda da sua casa. Touré é uma figura lendária e conta como a sua tabanca, a sua aldeia, fez frente aos portugueses, nunca pagou impostos e apoiou os guerrilheiros contra o regime colonial, fornecendo-lhes abrigo e comida. Esta resistência teve o seu preço, duzentos e cinquenta homens foram deportados e nunca voltaram.

Sob a liderança de Djombo Fode Touré (filha do Homem Grande), as mulheres de “K3” juntaram-se na “Associação de Sal”, uma associação que lhes deu estatuto legal. Na capital, Bissau, Djombo conseguiu alguns fundos provenientes de uma organização de  desenvolvimento e soube utilizá-los na compra de uma máquina que adiciona iodo ao sal. O que é essencial para a prevenção da tão temida doença do bócio.

 

Hoje em dia a associação produz cerca de 5000 quilos de sal por ano, o qual é famoso nos mercados de Bissau. E assim, depois do desastre do cultivo do arroz, cerca de 25 famílias conseguiram uma razoável fonte de rendimento. “Não contes com os outros, confia apenas na tua própria força”, disse-nos Djombo. São as mulheres da Guiné-Bissau  que mantêm o país a andar.

Cadique, Janeiro de 2006, mulheres pescando. Foto de Ernst Schade

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