(Nota ao leitor: Com a ratificação do Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa pelo Brasil, São Tomé e Príncipe, Cabo Verde e Portugal e à luz da decisão da V Conferência dos Chefes de Estado e de Governo da CPLP, realizada em São Tomé, em 2004, relativamente à entrada em vigor do referido acordo com o terceiro depósito de instrumento de ratificação e sendo que a meu entender a uniformização da escrita desta nossa língua comum é um dos principais (senão o principal) garantes da sua afirmação como língua de comunicação internacional, bem como um fator indispensável para uma maior integração da Comunidade, decidi, de agora em diante, escrever todos os meus artigos ao abrigo deste acordo.)
O CASAMENTO FORÇADO
Fatu - Fernando Carvalho |
14.07.2009
No livro "Eu, Nojoud, 10 anos, divorciada", publicado em janeiro deste ano e que escreveu com a colaboração da jornalista Delphine Minoui, correspondente no Médio-Oriente do jornal francês Le Figaro, Nojoud Ali conta a sua história "para que outras meninas" nas mesmas circunstâncias "possam ter a coragem de pedir o divórcio".
O casamento forçado e a excisão, já aqui abordada neste nosso espaço, são as práticas socio-culturais que mais interpelam por porem em causa a salvaguarda dos direitos da mulher, uma vez que são praticados contra a vontade da mesma.
A história do casamento da pequena Nojoud, cidadã de um dos países mais conservadores em matéria de direitos da mulher, não é, infelizmente, um caso raro ou excepcional. Com efeito, o casamento forçado é uma realidade bem presente em sociedades dos diferentes continentes em que os direitos da mulher são inexistentes ou simplesmente não aplicados.
Em África e particularmente na Guiné-Bissau, é ainda tradição, sobretudo nos meios rurais, as famílias arranjarem o casamento das filhas, muitas vezes combinado desde o nascimento da menina.
Porém, esta prática que "choca" para quem a analise fora do seu contexto, tem uma explicação que assenta numa lógica de sobrevivência própria a um tipo de organização socio-económica.
Sendo a pobreza uma constante do dia a dia, os pais ao procurarem um marido para casar a filha, buscam também o sustento desta, transferindo para o marido e/ou a família deste a responsabilidade desse sustento. Em contrapartida, o casamento da filha também constitui, em muitos dos casos, uma fonte de receita para os pais, que recebem uma contrapartida material da parte do noivo ou sua família, variando aquela em função das posses destes.
É também numa lógica de sobrevivência e de sustento da mulher que, em caso de morte do marido, um dos cunhados, no caso de certos grupos étnicos o irmão mais novo a seguir ao falecido, tome a cunhada como sua esposa.
Em geral os casamentos arranjados acontecem quando a menina ronda os 15 anos, sendo uma forma de garantir a sua virgindade para o matrimónio. O que possa pensar a noiva não tem importância nenhuma, pois quem decide são os grandes e ela apenas tem que obedecê-los... Toda a sua educação é orientada de forma a que aceite o marido que a família escolher para si e venha a ser uma esposa dócil e obediente. E, mais tarde, uma mãe ciosa de bem casar as suas filhas com o melhor partido que conseguir arranjar para elas...
Porém, o casamento forçado não é um apanágio dos países menos desenvolvidos. Nos países ditos do Ocidente, nas grandes potências mundiais, a mulher continua a ser um objecto de troca, muitas vezes para selar alianças, consolidar fortunas ou garantir a sobrevivência de famílias. Quantas multinacionais não se consolidaram graças ao casamento do "filho deste com a filha daquele"? Quantas famílias reais não redouraram as suas coroas casando os filhos respectivos, ao ponto de serem quase todos "parentes" entre si?
Com o envolvimento da mulher guineense na luta de libertação, o trabalho de consciencialização e apoio a jovens desenvolvido por instituições diversas, bem como a emigração e o empobrecimento cada vez maior da sociedade guineense que levaram muitas jovens a assumirem de formas diversas o sustento das respectivas famílias, o casamento forçado é cada vez mais posto em causa, inclusivamente no mundo rural.
A conquista total pela mulher guineense do direito de escolher o seu próprio marido é indissociável do papel que ela é chamada a desempenhar na sociedade em que vive. A sua formação e a conquista de uma autonomia, particularmente financeira, constituem armas indispensáveis nesse combate. É o que nos tem mostrado a realidade.
Convido-os a ler ou a reler este meu conto, publicado na página literária do nosso Espaço Cultural e que aborda a temática do casamento forçado.
Mara Cassamenti
O sol já ia alto quando Mamadú e Cau Tcherno se apearam das mulas a alguns metros da entrada da morança. Entre dois trejeitos bem característicos que o faziam entortar a boca para o lado esquerdo enquanto inclinava a cabeça para o lado direito, Mamadú enxugou o rosto suado com a manga da camisa que trazia debaixo do bubu e ajeitou o súmbia que lhe cobria o cimo da cabeça. Apalpou o bolso para se certificar que as nozes de cola estavam ainda aonde as tinha colocado e, seguido pelo tio, avançou com o porte direito para a morança de Serifo. O momento era solene. Há muito que programara esta visita, mas estava à espera de uma ocasião propícia para a fazer. Muito recentemente, Serifo viera ter com ele para lhe pedir um favor que se prontificou logo a acordar-lhe. O que lhe custaria ceder ao seu interlocutor três sacos de arroz com a promessa de receber quatro em pagamento logo após a colheita e a dívida moral que esse seu gesto de compreensão representaria para Serifo? Enquanto via os acompanhantes de Serifo carregarem os sacos de arroz para as costas dos burros, cofiou pensativamente a sua barbicha acalentando o sonho de ter encontrado aí o fio pelo qual poderia desfazer a sua meada...
Acelerou o passo quando viu aproximar-se Serifo com um meio sorriso bailando no rosto.
– Sala malecum – disse Mamadú retirando o súmbia.
– Malecum salam – retorquiu o outro.
Sucederam-se em seguida os cumprimentos recíprocos da praxe em que sussurrados djam’tuns iam respondendo às perguntas. Como estás? Como vai a tua mulher Aua? E a tua mulher Génabo? E a tua mulher Binta? O teu filho Mamudo? E o Demba? Serifo? E o trabalho? As cabras?....
– O que vos traz até nós? – perguntou Serifo, terminado o ritual das mantenhas em que cada um dos presentes se inteirou pessoalmente da situação dos outros e seus familiares. Estava porém constrangido por ainda não ter liquidado a sua dívida do arroz para com o seu visitante e pensava que aquela vinda inesperada do comerciante tinha a ver com isso. Tentou disfarçar a preocupação enquanto recebia a noz de cola que Mamadú lhe oferecia.
Aos poucos, atraídos pela nova da visita, começaram a chegar ao bentém os outros homens grandes da morança que vinham falar mantenha aos visitantes. Novamente se passou à ladainha dos cumprimentos, repetida tantas vezes quantos eram os recém chegados. Foram trazidos bancos das casas e todos se sentaram formando um círculo. Os olhos dos presentes não se despregavam do rosto de Mamadú, que entre dois tiques tentava responder às perguntas dos seus interlocutores. Enquanto isso a meninada, numa delirante galhofada, ia espreitando por uma nesga do crintim o comerciante que daí para a frente seria motivo de chacota na tabanca.
Terminados os cumprimentos, Mamadú limpou a garganta e olhou para Cau Tcherno para incitá-lo a iniciar a conversa. O homem grande passou as mãos pelo rosto e fixou Serifo nos olhos.
– Serifo, teu pai e eu somos mandjuas e levantamos juntos deste chão. Considero os seus filhos como sendo meus e o bem que quero para os meus quero-o também para os dele.
Serifo perguntava-se aonde queriam chegar aqueles propósitos, mas não deixou sequer de desconfiar um segundo que o velho falava em nome de Mamadú.
O homem grande prosseguia o seu discurso:
– Tenho um grande respeito pela tua família e só me posso regozijar com o bem que possa acontecer aos teus. Sei que és um pai consciente e que educas os teus filhos como mandam os preceitos do nosso profeta Maomé. Estou certo de que o que mais desejas nesta vida é deixar os teus amparados no dia em que partires deste mundo. Que Alá dê saúde e força aos teus filhos para que posam ganhar a sua vida honestamente e que ampare as tuas filhas nos seus casamentos com homens honestos e que nunca lhes faltem com nada. – parou novamente e limpou a garganta, enquanto Mamadú entre dois trejeitos se ajeitava na cadeira. Serifo acolhia cada fim de frase com um “hum, hum”, mostrando que seguia com atenção o que o homem grande lhe dizia.
– Mamadú, que está aqui sentado, filho do meu falecido irmão Samba, veio fazer-me um pedido: interceder junto de ti para pedir uma das tuas filhas em casamento.– Cau Tcherno fez uma pausa para que o seu interlocutor digerisse o que acabara de ouvir. Viu Serifo levar a mão à cabeça, retirar o boné e coçar o cocuruto com uma expressão interrogativa no rosto. O velho continuou: – Mamadú é um homem honesto e um reputado comerciante aqui no Gabú. Ele tem tudo para oferecer à tua filha a quem nada faltará.
Mamadú ia aquiescendo estas afirmações com um sacudir de cabeça de cima para baixo, que se alternava com o movimento do tique da direita para a esquerda.
– De que filha minha estás a falar, Cau Tcherno?
– Da... da Ádama – cortou abruptamente Mamadú, com os olhos a brilharem de cobiça.
– Hum... – fez Serifo num mugido quase imperceptível. Ádama Aua ? – quis confirmar precisando o nome da mãe da moça.
– Essa mesma! – respondeu apressadamente Mamadú, como se com isso pudesse agarrar ao mesmo tempo a pequena.
– Hum... – voltou a fazer o pai da pretendida – apanhas-me de surpresa... – acrescentou numa meia verdade, pois se previra que Mamadú lhe preparava alguma, nunca pensou que fosse pedir uma das filhas em casamento. Mas no fundo não ficou descontente. Como disse Cau Tcherno, o comerciante tinha o suficiente para tomar conta da filha decentemente e sobretudo parecia ser respeitado na região. Afinal não seria mal pensado se acedesse a esse casamento. Além disso seria um caso arrumado e a cunhadaria iria sem dúvida garantir-lhe uma certa segurança nos anos difíceis enquanto se aguardava a nova colheita... Não quis dar logo a resposta para não trair os seus pensamentos.
– Dá-me uns dias para pensar – disse fingindo um ar distraído.
Mamadú tirou do bolso três nozes de cola e ofereceu-as a Serifo que guardou duas na algibeira da camisa e dividiu a terceira com os presentes.
Após a partida dos dois homens, Serifo dirigiu-se a passos largos à casa da sua mulher Aua, mãe de Ádama.
– Debo! – disse da porta metendo a cabeça dentro de casa – Anda cá! – acrescentou quando ouviu o “Hã?” que lhe dirigiu a mulher do interior.
E, puxando o banquinho que estava à porta, sentou-se estendendo as compridas pernas.
– Temos que conversar. Senta-te aí – disse-lhe indicando a esteira que estava na varanda.
Nem Aua obedeceu enquanto acabava de amarrar o lenço na cabeça, puxando para fora as extremidades das suas quatro tranças.
– Mamadú comerciante quer casar a Ádama – disse sem rodeios – acho que será um bom partido e ela já está em idade de se casar.
Era verdade que Ádama ia já nos seus quinze anos e raramente as badjudas se casavam depois dessa idade. A mãe não respondeu logo. Sabia que chegara a altura de casar a filha mas o pretendente não era do seu agrado. Não que não apreciasse o facto de ele viver afastado das privações, mas nunca fora com a cara dele. Também não era por causa do tique, mas por algo que nunca chegara a definir. Porém seu marido tinha razão, já era tempo de arranjar um amparo para a filha e, afinal, melhor partido que aquele seria difícil encontrar nos tempos que corriam.
– Acho que tens razão. Ao menos ele é rico... – disse Nem Aua esfregando o nariz para disfarçar a sua inquietação. De qualquer forma, de que valeria ir contra a vontade do marido se ela sentia que a sua decisão já estava tomada? E depois era-lhe impossível dizer porque não gostava do pretendente por ela mesma não saber...
A notícia foi acolhida pelos grandes da morança com satisfação. O casamento de Mamadú comerciante com Ádama foi o tema central do djumbâi daquele serão. Coisa acertada, sim senhor! Um cunhado que valia a pena! E o dote? Onde já se vira tamanha generosidade? Cinco vacas, zinco para o telhado de todas as casas da morança e cinquenta contos em dinheiro. Uma fortuna! E nos tempos presentes, isso caía que nem um maná! Quem ousaria não aceitar tal casamento? Só por loucura! Djarama! Deus, obrigado!
A noiva foi a última a saber e a notícia só lhe foi dada pela mãe depois da resposta a Mamadú.
– Ádama, minha filha, pára de chorar! O mundo não vai acabar! Tu vais te habituar! A vida é assim. Todas nós um dia deixamos os nossos pais e a nossa morança para seguirmos o marido que eles nos deram. Pensas que fui eu que escolhi o teu pai para marido? Tudo foi arranjado pelas nossas famílias e eu só o vi quando cá cheguei no dia do casamento. Tu, ao menos, já sabes quem te espera...E no teu caso não poderíamos arranjar-te melhor partido. Vê o que ele te pode dar com todo o dinheiro que ganha!
– Com aqueles tiques todos... – quis contrariá-la a filha.
– Isso é obra de Deus, minha filha! Ele nasceu assim, o coitado. Mas dizem que trata bem as suas mulheres e que não lhes falta com nada!
Ádama não voltou a insistir. Ficou calada uns momentos com o olhar perdido nas ramagens do poilão, que majestosamente cobria o quintal com o frescor da sua sombra. Na sua mente todo o seu passado deslizava como as imagens dos filmes mudos que Sô Manel costumava vir projectar em Sintchã Sulai de vez em quando. Tudo muito rápido e meio fusco. De repente o passado pareceu-lhe distante, como se fosse a vida de uma outra pessoa. Pelo menos já não parecia a sua, que tão bruscamente tinha dado uma viravolta. Agora ela era a prometida de Mamadú comerciante que podia ser pai dela... Mas lembrou-se que seu pai também podia ser pai de Nem Binta, a sua última mulher e não havia na morança par mais harmonioso. Talvez que com Mamadú e ela as coisas não seriam tão ruins como temia. Intchala! Inspirou profundamente e passou a mão pelo rosto. Nem Aua observava-a calada. Ádama acabou por levantar-se e num resignado murmúrio disse mais para si do que para a mãe:
– Djitu câ tem... – e voltou às suas lides domésticas.
Glossário
Badjuda (t.crioulo): menina, rapariguinha.
Bentém (t. crioulo): lugar coberto com esteiras, onde os habitantes da morança se reúnem para conversar e onde em geral são recebidas as visitas.
Bubu: camisão.
Cau (t. fula) : tio.
Crintim (t. crioulo): cerca feita em esteira.
Cunhadaria (t. crioulo, de cunhado; cunhado: qualquer membro da família por aliança: sogro, cunhado, genro, concunhado...): família por aliança.
Debo (t.fula): mulher.
Djam’tum: (exp.fula): estou bem, está tudo bem.
Djarama (t.fula): obrigado.
Djumbâi (t. crioulo): encontro para conversa.
Falar mantenha: cumprimentar.
Homens grandes: homens idosos.
Mandjuas: pessoas da mesma geração, muitas vezes que cresceram juntas.
Mantenhas (t. crioulo): cumprimentos.
Mara cassamenti (expressão crioula, trad. literal : amarrar o casamento) : pedido de casamento, oficialização do noivado; a noz de cola é oferecida simbolicamente ao pai da noiva pelo noivo ou seus familiares.
Morança : conjunto de habitações pertencentes à mesma família.
Nem (t. fula): mãe.
Sala malecum (exp. árabe): que a paz esteja contigo.
Malecum salam (exp. árabe): que contigo esteja a paz.
Súmbia: espécie de boné.
Djitu ca tem (exp. crioula que indica resignação): não há outra solução; paciência.
VAMOS CONTINUAR A TRABALHAR!
Projecto Guiné-Bissau: CONTRIBUTO