O ESTADO E A REVOLUÇÃO

A QUESTÃO GUINEENSE IV

 

INTRODUÇÃO DA “INTRODUÇÃO”

 OU REFLEXÃO SOBRE AS “REFLEXÕES”

 

“Há uns que nos falam e não ouvimos;
há uns que nos tocam e não sentimos;
há aqueles que nos ferem e
nem cicatrizes deixam, mas...
há aqueles que simplesmente
vivem e nos marcam por toda vida.”

Hannah Arendt

 

 

Fernando Jorge Pereira Teixeira *

teixeira_ferjor@hotmail.com

18 de Outubro de 2010

A Introdução deste presente trabalho que já publiquei separadamente - pela ocasião do Trigésimo Sétimo Aniversário da Independência – com título homónimo e subtítulo “A Promessa”, vem aqui, novamente, publicada a seguir a este “prefácio”. Esta repetição é obrigatória por se tratar de parte integrante desta meditação sobre o Estado Guineense e os Guineenses como Povo único.

Os últimos aniversários da Independência Nacional decorreram sob o signo de grande instabilidade política e social e esta não constituiu excepção; atendendo isso, não podia deixar passar “em branco” essa importantíssima efeméride do nosso Povo, sem exprimir a esperança de um amanhã tranquilo para a Nação. Mas infelizmente, por motivos já explicitados, não pude terminar o texto sobre esse sujeito. Dessa feita, utilizei a parte introdutória, que estava parcialmente acabada, em forma de um “postal de parabéns” pela Independência, aos meus leitores.

Por isso quem já o leu - embora tenha sofrido modificações substanciais - pode “salta-lo. Mas como autor, embora correndo o risco de ser imodesto, aconselho vivamente a sua releitura antes de passar a Primeira Parte, pois contem a “ajuda necessária” para a compreensão tanto desta Primeira Parte como da Segunda e Terceira que publicarei a seu tempo, conquanto Deus me dê vida e saúde para isso. Alem de que isto não é um conto ou divagações que podem ser lidos e esquecidos; isto é um acreditar e um despertar que um dia será o de muita gente. Deve ser lido mais do que uma vez para que, para alem da compreensão empírica, a interiorização dos seus ditames seja real. Pois é o único caminho que temos. Outro não nos é dado.

Dito isto, quero esclarecer que na sequência e na lógica dos meus escritos anteriores, estas “três partes” que irão ler - que contrariamente aos textos anteriores, serão publicadas separadamente para não “cansar” o leitor - inserem-se no Capítulo Geral denominado “A Questão Guineense”, da qual serão a “Parte IV”; isto por entender que a sua abrangência ultrapassa o “entendimento pessoal”, para ir mais além, para apontar outras direcções e dimensões.

Nesta compreensão do processo histórico, estas humildes ideias pretendem uma abrangência maior. Uma vida para além de quem as escreve. Não ambicionam por isso, ser somente reflexões individuais de apenas “alguém”, embora “preocupado com o seu País e Povo”. Pretendem “não ser” reflexões de unicamente “um nacionalista”, mas de “todos Nacionalistas”, preocupados com o seu País e Povo.

Esses nacionalista que vivem na Guiné e por todo o lado neste mundo, que apenas os não escreveram por diferentes motivos que temos de respeitar. Mas que os meditaram tanto como nós, se não mais. Pois - embora me revejo nas palavras de Albert Camus que dizia que “(…) os meus escritos são as minhas horas de felicidade. Mesmo naquilo que eles tiverem de cruel. Preciso escrever assim como preciso de respirar, porque o corpo me exige.”, - sei que muita gente não escreve, embora o corpo exija, não por cobardia pessoal (embora também os há, que não escrevem por pura cobardia), mas para a protecção dos entes queridos ou por falta de meios ou de não encontrar a diapasão certa para transmitir o seu sentir muitas vezes vem encontrar esse sentir nas palavras de outros que com eles comungam os mesmos sentimentos e decepções. 

E esses nacionalistas que não escrevem, que não falam, que parecem indiferentes até, sofrem também, em silêncio, o destino ingrato da nossa terra. E são milhares por este mundo fora; pois conhecendo os Guineenses, sei que ninguém ama mais o seu país do que eles, seja onde estiverem, como estiverem e com quem estiverem.

Por isso, em última instância, estas cogitações pretendem ser isso e mais do apenas reflectir sobre isso; pois se há algo em que acredito piamente, para além das palavras, é na imortal asserção de Karl Marx: “Nada valem as ideias sem homens que possam pô-las em prática”. Mas não deixo de reflectir e chegar a outra conclusão justaposta de que “nada valem os homens sem ideias para por em prática”.

Assim se estas humildes “reflexões” vierem a ter o condão de fazer com que nem que seja um Guineense apenas, pense na sua Pátria com orgulho sim, com amor sim, mas com o firme propósito de muda-lo completamente, de o transformar naquilo que é o seu destino histórico, faze-lo ser um dos melhores países de África, contra tudo e todos, então elas servirão o seu primeiro propósito.

Os outros textos já publicados, que estão inclusos em outro “Capítulo Geral” intitulado “A Minha Herança” terão futuramente o seu desenvolvimento posterior. Como é do conhecimento do “meu leitor frequente”, estas reflexões que tenho publicado no site CONTRIBUTO, têm um frontispício comum chamado assim mesmo: Reflexões de um Nacionalista. Porque no fundo, estas meditações, são isso: Reflectir sobre a Nação no seu todo a procura do “Ponto de Restauro Nacional”. Esse ponto de apoio, para alavancar o início do renascimento nacional para um “começo limpo” que nos levará para o caminho do verdadeiro desenvolvimento económico e social.

 

INTRODUÇÃO

OU “A PROMESSA”

 

 I

OS CONDICIONADOS VERSUS CONDICIONADORES

 

Somos responsáveis por aquilo que fazemos, o que não fazemos e o que impedimos de fazer.

Albert Camus

Trinta e sete anos de existência como País independente. Trinta e sete anos de dor e sofrimento. Trinta e sete anos de alegria imensa. Trinta e sete anos… toda uma vida. Quem nasceu nesse maravilhoso ano já é homem feito; adulto; com filhos e com alguma sorte até com netos. Aqueles nossos avós que não viveram para assistir esse dia, não assistiram a glória na Terra, nem a transcendência do Homem Guineense, chegando por fim ao fim da sua História. Nesse dia os maravilhosos Rios da Guiné, depois de séculos de dor e esperança, rebentaram finalmente os diques da dominação e as barragens da nossa submissão para correrem livre e dolorosamente, levando-nos na garupa das suas águas revoltosas há 37 longos anos.

Muito se tem escrito sobre a Guiné “pôs Independência” - referindo-se a estes 37 anos com base em análises económicas, sociais e culturais. A maioria destes escritos nos chega acompanhada de um sentimento de amargura ou revolta, com dor ou com pena, mas raramente com alegria e satisfação. Mas o que mais caracteriza este sentimento é um misto de desilusão, resignação e esperança. Um sentir ambíguo.

Sobre estes trinta e sete anos quero escrever as histórias das vidas dos que os assistiram e ainda estão vivos para contar; dos que os viveram e já morreram sem poder assistir o dia da Redenção. Pois o destino dos que foram condicionados e dos que condicionaram o nosso processo histórico merece e deve ser contada. E não apenas para os contemporâneos ainda vivos - que também assistiram e participaram - mas principalmente para aqueles que não viveram esses “tempos primeiros da destruição” e para os que ainda não nasceram. Para que os nossos vindouros saibam que também fomos homens dignos, esperançosos, com imensos sonhos para com o porvir da nossa Pátria e a felicidade dos nossos filhos.

E que também como outros homens neste mundo, almejamos a ventura de poder deixar para eles uma Nação da qual viessem ter orgulho de pertencer. E se nada conseguimos, se nada deixamos, pedimos desculpas por isso e por muito mais. Mas só aceitarão as nossas desculpas se entenderem “como foi temperado o aço” e porquê que do seu cadinho não saiu a Pátria moldada conforme os moldes pelos quais se regem todos os outros seres humanos no mundo.

 

II

A PERGUNTA QUE SE IMPÕE

       

 O significado da vida é a mais urgente das questões. Só há um problema filosófico verdadeiramente sério: (…) Julgar se a vida merece ou não ser vivida é responder uma questão fundamental da filosofia. O resto, se o mundo tem três dimensões, se o espírito tem nove ou doze categorias, vem depois.

Albert Camus

 

Por isso hoje, embora dia de festa, não posso falar apenas de “factos” políticos, “acontecimentos” sublimes e “proclamações” oficiais, sejam elas boas ou más. Pois como posso falar destes anos passados, deste sofrido País, se não falo dos seus filhos? Das suas dores e alegrias, do seu amor profundo a esta pequena Pátria que Deus nos deu? Além de que não quero falar somente das nossas “guerras” sejam elas de Libertação Nacional ou de Caba Ku Lebssimente

Quero contar dessa gente, deste sofrido povo, para que o meu contar faça com que um dia, estes trinta e sete anos não sejam apenas lembrados como um longo pesadelo na nossa história; ou como apenas um interregno infeliz, na longa caminhada do nosso povo.

Por isso primeiro devo falar das pessoas nesta primeira parte e depois dos factos nas partes seguintes, porque é minha obrigação acima de tudo falar deste Povo e desta Nação. Mas antes de avançar mais, tenho que fazer uma pergunta sacrílega que atravessa a nossa existência comum todos estes amargos anos. Uma pergunta nunca feita, que apenas existe no nosso subconsciente colectivo como povo. Uma pergunta que jamais será feita pois é uma pergunta sem resposta. E mesmo assim, hoje volvidos tantos anos, a pergunta que se impõe é: Valeu a pena a Independência?

(Aqui abro um parênteses para estabelecer uma analogia: Uma vez, há muitos anos li um artigo do Reader`s Digest, onde para exemplificar o sentimento de desencanto de muitos Africanos com relação a Independência dos seus respectivos países, punham a seguinte exclamação de um Queniano “ignorante” (alegadamente desagradado com o caminho que o seu País tomava depois da Independência) para ilustrar essa frustração: “Meu Deus, quando será que vai acabar a Independência?”. E o resto do artigo realçava um certo mal estar dos cidadãos Africanos de Países relativamente desenvolvidos como o Quénia, Zimbabwe, Tanzânia entre outros, que com o aceso a Independência teriam vindo a sofrer com a queda vertiginosa do seu nível de vida. Mas sem ir muito longe, aqui ao lado, em Cabo verde - quando as coisas ainda não marchavam tão bem -, houve forte vozes a abjurar a Independência dizendo que tal teria sido um erro, pois poderiam ser um estado a associado a Portugal como Açores e Madeira (a beneficiar de membros da Comunidade Europeia) e estariam muito melhor do que sendo independentes. Hoje essas vozes já se calaram (talvez não totalmente), embora no campo oposto vemos Madeirenses a desejar a Independência dizendo que se os Cabo-verdianos conseguiram o nível de vida e respeito internacional que têm - em alguns casos mais do que eles - então se eles fossem Independentes também de Portugal, embora sozinhos, conseguiriam até mais do que aqueles, pois situados mais perto da Europa e inclusive sendo membros da Comunidade Económica Europeia, poderiam beneficiar de muitíssimo mais ajudas do que os Cabo-verdianos.)

Isto apenas para situar o leitor acerca da minha pergunta acima feita: se “Valeu a pena a Independência”. Pois no nosso caso - mais do que todos esses povos africanos referidos atrás -, ela foi a mais traumática e a mais desaproveitada. Ouso dizer que na África inteira, fomos nós que mais desperdiçamos a nossa Independência e o nosso Povo.

Mas para responde-la temos que nos refutar visceralmente dizendo que esta pergunta nem se põe! No sentido que nós no fundo “nunca nos arrependemos” de ter sido independentes e nem da gloriosa Luta de Libertação Nacional e Secular para alcançar esta aspiração, apesar de todos os pesares e contrariedades destes anos. Apesar de tanto tempo perdido. Apesar de tantos sonhos lançados ao vento e de tantas vidas desperdiçadas…

 Mas se a pergunta “não se põe”, se não esta dentro de nós, então donde vem esta sensação de perda, de vazio, de sofrimento, que nos assalta de tempos em tempos?

Albert Camus, disse um dia, que “Julgar se a vida merece ou não ser vivida” é responder ao problema mais importante da Filosofia. Sem ser filósofo, no nosso caso concreto, a pergunta “se valeu a pena” é como perguntar a um homem no fim da vida, se valeu a pena “ter nascido”. A pergunta deve ser outra: se valeu a pena “ter vivido”. Se a sua vida teve significado, se a viveu condignamente.

A nossa vida comum como Nação, como Povo, teve significado? Foi vivida condignamente? Esta que é a pergunta. E ela é dirigida a todos nós de maneira individual. Pois embora saiba que a responsabilidade é tão individual como colectiva, não a posso dirigir ao Povo no seu colectivo (embora em ultima instancia, quem responde pelo Povo no seu colectivo é o Presidente da Republica).

Que cada um responda, a si próprio, com honestidade e coragem: segundo a sua consciência e segundo os seus actos individuais, independentemente das funções desempenhadas, cargos ocupados e organizações nacionais e internacionais a que se pertenceu nestes últimos 37 anos que vão passar hoje a meia-noite. E a vossa resposta a vós mesmos será o inicio de uma nova relação com o vosso País e Povo. Porque independentemente de tudo, aceitemos ou não, existe a responsabilidade política e a responsabilidade moral. E não se pode fugir de ambas eternamente.

E não se esqueçam que o filósofo disse que “Não podemos afirmar a inocência de ninguém, ao passo que podemos afirmar com segurança a culpabilidade de todos. Cada homem é testemunha do crime de todos os outros, eis a minha fé e a minha esperança.

 

III

AS DUAS DIMENSÕES DA INDEPENDÊNCIA

"Um homem sem memória é um homem sem passado. Mas um homem que não sabe fantasiar é um homem sem futuro."

Albert Camus

 

Neste dia de comemoração e de alegria, em que lembramos com orgulho e emoção o outro dia igual a este em que pela primeira vez “no iça nó bandera: bandera di povo” (como diz a canção), há 37 anos, não escrevo apenas porque “quero falar” deste povo. Escrevo porque é meu dever primeiro; porque como vós, nasci deste povo, desta mãe terra; cresci no meio deste povo; só vejo e entendo o mundo desta maneira, porque o vejo e entendo-o através dos olhos do meu povo, através da sua cultura, através da nossa forma de ser; e sou o que sou, bom ou mau, feliz ou infeliz, porque nasci nesta terra, no seio deste povo que devemos amar mais do que tudo nas nossas vidas. Porque só temos orgulho em nós mesmos se tivermos orgulho nele. Pois sem orgulho nele não o podemos amar. Alem de que - não canso de o repetir - só amamos na verdade a nossa Pátria quando amamos os seus filhos.

E nesse pressuposto, entendo que a Proclamação do Estado, a Independência, tem duas dimensões: A real, a factual, feita de datas, símbolos, actos, locais, etc., e a espiritual feita do “sentir profundo de um povo”, da sua vivencia, das suas lutas diárias, dos seus sonhos, da sua historia comum e do seu heróico passado. Mas independentemente destas dimensões, ela é feita principalmente da promessa. Na promessa doradioso futuro”, do almejar da redenção, que a Independência como conceito, como realidade insofismável, como promessa possível, contem em si mesmo.

Por isso hoje vou falar dessa promessa, desse “Dia da Independência” e de todos os “outros dias” que sucederam a esse primeiro; vou falar desse que foi o dia mais maravilhoso ainda vivido pelo nosso povo. O dia em que soubemos que não éramos nem menos nem mais do que todos os outros povos deste mundo: Apenas iguais.

E como iguais não somos nem mais burros nem mais inteligentes; e como iguais não merecemos nem mais nem menos. E como iguais queremos “viver igual” com todos os seres humanos neste mundo. E esse querer ninguém nos pode tirar, pois é esse querer que na verdade, em último caso, nos faz “iguais” a todos os povos deste mundo. E é esse querer que realizará um dia, por fim, a “Promessa”.

É a “promessa” que sustenta a “Independência” e não a História, os actos, os feitos e as datas comemorativas. É a “promessa” que nos une e nos impelirá para frente, contra todos os reveses da vida. É a “promessa” que nos faz viver cada dia, pois é na promessa que se casam a dimensão real e a espiritual da Independência. É a “promessa” - embora saibamos com dor que não assistiremos a sua concretização - que faz com que tudo valha a pena. E por fim, é a sua realização que responderá a pergunta se “Valeu a pena a Independência”.

É desta Promessa que falo quando falo deste povo – que é o meu povo -, desta gente – que é a minha gente - que tudo sofreu e tudo sofrerá de novo, se assim for preciso, para que o dia da Redenção chegue. Este povo, que um dia cumprira o seu destino e será igual aos outros povos do mundo, construindo juntamente com eles o futuro da humanidade. 

 

PRIMEIRA PARTE

 

TURUBÃ MANÉ E A DESINTEGRAÇÃO DO ESTADO

I

MARIA CAMARÁ

A grandeza do homem consiste na sua decisão de ser mais forte que a condição humana.

Albert Camus

 

 

Meses antes da revolta de Ansumane Mané, estava eu por acaso, num sábado de manhã na casa da Dra. Maria Camará (técnica superior do Ministério das Finanças) onde tinha ido com a minha namorada, amiga dela, “comer ostras” (divertir com amigos). É necessário frisar, para melhor compreensão do relato a seguir, que Maria Camará era cunhada do então Chefe do Estado-maior das Forças Armadas, Brigadeiro Ansumane Mané.

Quem conhece essas casas do Plano do Alto Bandim conhece a sua peculiar arquitectura; Por força disso, tendo ido a casa de banho, escutei repentinamente, sem querer, vindo da sala de visitas, um enorme escarcéu. Era uma tremenda altercação entre a Maria Camará, nossa anfitriã, e uma pessoa estranha para mim, que vim saber ser o Brigadeiro Ansumane. Ao ouvir a alarido, vindo de uma voz desconhecida, pensando o pior, quis sair da casa de banho em defesa da dona de casa - que nesse momento também já discutia aos berros - mas no momento em que ia abrir a porta, apercebi-me que momentaneamente os gritos atenuaram e a discussão descambou para algo de foro mais familiar, mas a briga verbal continuou. Como é óbvio, apercebi-me que já não devia intervir e se possível nem dar a conhecer a minha presença, pois podia ser constrangedor para eles. Então fiquei quieto, com a mão na maçaneta, sem abrir a porta, a espera que acabasse a argumentação. E assim, inadvertidamente acabei escutando algumas frases soltas. Depois a vozearia voltou e por fim a porta de saída bateu violentamente e tudo ficou em silêncio. Então sai do meu refúgio e vi a Maria Camará encostada a parede completamente transtornada. Estava irritada e fora de si. Quando me viu, abriu a boca de admiração, não esperava que alguém estivesse na casa de banho (donde se podia escutar a conversa da sala se ela fosse alta o suficiente) nesses instantes da discussão.

Então quando apercebeu-se que eu possivelmente ouvi a conversa deles ficou a olhar-me sem saber o que fazer ou dizer. Ao ver o seu semblante perturbado, fi-la sentar no sofá e perguntei o que se estava a passar e de quem era aquela voz que eu escutei a gritar tão alto. Ela sem quase poder falar, respondeu-me num fio de voz, mas suficientemente audível: Ansumane!

Ela pensava que todo o mundo estava no quintal, quando ao ir buscar algo na sala, ouviu bater a porta de frente. Como não havia mais ninguém, foi ela mesma abrir dando de caras com o Brigadeiro Ansumane Mané, que já vinha muito irritado, por algum motivo que desconheço, falar com ela. E as primeiras palavras de Ansumane Mané foram para acusar o Presidente Nino Vieira de entre outras coisas de desmandos e prepotência; e prometia vingança se algo viesse a suceder etc. etc., e como a Maria estava a tentar dissuadi-lo de confrontações e a chamar-lhe atenção sobre a hierarquia e os riscos de querer defrontar o Presidente da República, o verniz estalou e  discussão desencadeou-se. Depois de ouvi-la, não dei muita importância ao caso no momento, mas por uma questão de educação, por a ver tão aperreada, perguntei:

- Cal Ansumane?

- Mané

Quando percebeu pelo meu semblante que eu não fazia mínima ideia de quem falava, disse:

- Bric Brak!

- Quim?

- Birick Barak!!!

Não disse nada, estava a tentar entender ainda; por fim inquiri quase afirmando:

- Não é o tal Chefe do Estado Maior?

 - E iel gora. Ma n`kontal cuma si brinca Nino na matal…

- Ma i quê? - Questionei outra vez tentando entender melhor.

- Cuma Nino ka na lebssil. Cuma si Nino brinca cu el  i na odjal…

- i na odjal o otchal? - Brinquei para ver se desanuviava a situação; mas ela não estava para brincadeiras. Então em duas palavras, elucidou-me das divergências que opunham esse Senhor, que era Chefe do Estado Maior das Forças Armadas, ao Presidente Vieira; pelo que me apercebi eram bastantes e graves; pois para alem da questão do tráfico de armas para os Combatentes da Liberdade de Casamance, de que se falava todos os dias em Bissau, havia agravos de parte a parte, ou da parte do Presidente em relação a este antigo guerrilheiro; ou pelo menos este o entendia assim.

Na altura eu não tinha noção de quem era na verdade Ansumane Mané. Sabia apenas que era Brigadeiro, um antigo guerrilheiro da Frente Sul, durante a Luta de Libertação Nacional, actualmente Chefe de Estado Maior das Forças Armadas por decisão única e exclusiva do Presidente Vieira. Também sabia, por ouvir dizer, que era um homem simples e afável, mas sem nenhuma competência académica ou outra - como por exemplo a chefia de exércitos durante a Luta de Libertação como Nino Vieira, Paulo Correia ou outros comandantes históricos - para desempenhar tão importante e determinante cargo.

 A sua nomeação para tão alto e delicado cargo – suplantando tantos oficiais mais capazes intelectualmente, com altas formações académicas, em Estudos Militares e não só, provenientes de várias Academias Militares do mundo, como os da Rússia, Portugal e Estados Unidos -, foi um erro crasso e gravíssimo, com sequelas até hoje. E mesmo que isso fosse analisado como uma questão de defesa e perpetuação do regime do P.A.I.G.C., também não se justificava; dentro desse partido havia históricos Comandantes da Luta de Libertação Nacional, ainda na força do vigor, mais capazes e que deram mais provas no passado que o Ansumane Mané; e isso tanto em operações de combate, em postos ocupados, na organização do exército etc., Portanto, que tinham de longe, mais capacidades de liderança, bagagem social, militar e intelectual para esse posto.

O Presidente da Republica sabia que Ansumane Mané não tinha formação suficiente, nem capacidades intrínsecas - já para não falar de habilitações literárias ou aptidões académicas - para ter interacção (ou simples diálogos) frutífera com os seus futuros homólogos; sejam eles Angolanos, Brasileiros, Portugueses ou de qualquer outra Nação; sem esquecer de generais de outras proveniências, como a França ou Senegal, sobre questões de Ciência Militar e técnica (já para não falar de questões como “o futuro das Forças Armadas”, do seu “enquadramento jurídico” na Nação, da sua “relação com o Poder Politico”, só para dar alguns exemplos, entre outras centenas de questões relevantes que um Chefe de Estado Maior competente tem que ter sempre presente no seu espírito). Para além da gestão da relação entre os três corpos que formam as Forças armadas - Exército, Marinha e Aviação -, cada um com o seu próprio Estado Maior General.

Mas mesmo assim, João Bernardo Vieira nomeou-o, desrespeitando uma parte a classe castrense, desconsiderando outros respeitados Combatentes de Liberdade da Pátria e a própria Nação em si, que com o seu nível de desenvolvimento social, já não podia suportar nunca, tal Chefe de Estado-Maior das Forças Armadas. Mas fê-lo assim mesmo, pensando erradamente, que assim, o seu poder sobre o Exército, o Partido, e em suma o País, ficava consolidado. Foi o maior erro de toda a sua vida Politica e do qual veio a arrepender-se amargamente.  

II

Mas voltando ao Alto Bandin, depois da minha anfitriã se acalmar, voltamos para o quintal, onde continuamos a comer ostras com os restantes convidados dela e depois almoçamos (já se passaram 12 anos, mas arisco dizer que era tchebudjem) e ficamos até ao fim da tarde sem mais incidentes. O Brigadeiro não voltou e se bem me lembro nem eu, nem a Maria Camará, comentamos a sua súbita aparição nesse dia e nem o que ele disse ou deixou de dizer. Por volta das sete da tarde fomos todos embora, mas eu tinha coração pesado (e acho que a Maria Camará mais ainda). Nunca antes tinha ouvido de um militar de alta patente, palavras tão desafiadoras dirigidas ao Primeiro Magistrado, como as que ouvi o Ansumane Mané proferir essa tarde.

 Alguns anos depois vim a conhecer duas filhas de Ansumane Mané aqui em Lisboa e sou amigo de uma delas (a Mariama) que é de uma beleza singular, como dizemos na Guiné, da cor de “manpataz”, cabelos pretos como azeviche, alta e esbelta como só as mulheres Fulas conseguem ser em toda a África. Mas com todos esses atributos, nunca lhe contei dessa longínqua tarde - embora ela me tivesse falado do pai algumas vezes – em que conheci o seu pai quando era ainda apenas um Brigadeiro.

Preciso aqui dizer, abrir parênteses e dizer em abono da verdade, que uma vez (mal informado) num dos meus textos escrito em Bissau, afirmei que Ansumane Mané era estrangeiro; depois vim a saber, em Portugal, através de um primo/sobrinho dele, ligado a Mesquita de Lisboa, que ele era originário de Bafata, mas que por contingências da vida viveu algum tempo fora do país (em Gâmbia parece) e dali foi juntar-se a Luta de Libertação Nacional. Daqui a tal confusão e a informação (errada) obtida de que ele era Gambiano.

Destino singular o deste homem humilde: De todos os militantes que começaram por baixo, foi ele que galgou mais rapidamente o posto mais alto na hierarquia do Partido e do Estado quando se tornou Co-Presidente da República com o homem de quem foi guarda-costas durante anos. Os Portugueses, que quando o Victor Saúde Maria foi nomeado Primeiro-ministro, escreveram em grandes parangonas “De empregado de Balcão a Primeiro-ministro” no afã de vender jornais, no caso de Ansumane Mané podiam ter escrito “de Guarda-costas a Presidente”, mas isso não escreveram, pois eles tinham promovido o Ansumane Mané desde o primeiro dia da rebelião, ao posto de General. E até agora, merecido ou imerecidamente, sentem ainda algum respeito por ele, misturado com um sentimento de desapontamento por terem tomado reflectidamente partido por um dos lados do conflito que veio a ser tão mau para o país, como pensavam que era, o outro lado.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

II

 

ANSUMANE MANÉ HIMSELF OU

O ÚLTIMO SECRETÁRIO-GERAL DO P.A.I.G.C.

 

“Não se perdoa a uma nação ou a uma mulher o momento de descuido em que o primeiro aventureiro que se apresenta as pode violar.”

Karl Marx , in “18 de Brumário de Luís Bonaparte”

 

Ainda hoje, volvidos tantos anos, analiso com certa admiração e algum respeito, como é que este Guineense, mandinga de nascimento, muçulmano pela fé, veterano da Luta de Libertação nacional, camponês transformado em guerrilheiro, guerrilheiro transmutado em militar de careira, semi-analfabeto, desconhecido da maioria do nosso Povo, teve um apoio (que não solicitou, pois no inicio ele só estava a lutar para lavar a sua honra de militar e pela sua dignidade de homem) de uma maioria clara da população? E que com o tempo veio chegar a ser Co-Presidente do País, Homem-Forte do Regime e informalmente - ao mesmo tempo -, Primeiro-ministro, Ministro de Defesa, Chefe de Estado Maior; e se não formalmente - de facto - Secretario Geral do P.A.I.G.C. (que nessa altura apenas lutava pela sua sobrevivência).

Para ter esse esmagador apoio popular logo no inicio do Levante, temos que concordar que havia de facto algo de muito errado e podre dentro do Regime na altura em vigor. E a podridão tinha chegado há muito ao Exercito Nacional que era naquele tempo uma estrutura indefinida. Porque era uma estrutura Partidária “de facto”, embora já sendo “teoricamente” um dos pilares do Estado e garante da Soberania; e nessa qualidade devia ser apartidária e estar, sem nenhuma dúvida existencial, acima dos Partidos Políticos. Portanto, era “Republicano” de nome, mas a sua matriz (e de todos os seus chefes) era profundamente Partidária; ainda obedecia mais a lealdades partidárias reais do que as abstractas considerações sobre a “independência dos Órgãos de Soberania” em relação ao Poder Politico.

Mas isso acontecia não apenas por causa dessa sua matriz que vinha da Luta de Libertação Nacional, mas porque um exército como o nosso, nascido e temperado no fragor de combate, só poderia servir o Estado de forma imparcial, quando percebe que esse Estado é também imparcial - não somente em relação a ele, mas também em relação a outros órgãos de soberania; e principalmente em relação ao próprio Partido P.A.I.G.C., no seio da qual ele brotou. Pois se os dirigentes do Estado são também os mesmos dirigentes do P.A.I.G.C., como se poderia exigir a imparcialidade do Exercito? - em todas as questões de âmbito nacional, em decisões e politicas públicas.

Por isso, a governação do Estado deve suscitar uma autoridade moral, legitimada seja pela superioridade hierárquica, seja pela legitimação de casta ou se preciso for tribal (não se esqueçam do pragmatismo), dentro das fileiras das Forças Armadas. A condução da Coisa Pública, deve ser correcta de tal magnitude, que possa fazer coincidir sempre o interesse da Governação e do Estado com o das Forças Armadas. Porque só assim, o Exército, que embora tenha as suas Leis e regulamentos de conduta próprias (como a pena de morte) que são diferentes das da Sociedade Civil, deve servir ao Poder Político e permanecer controlado por ele.

Só assim esse Exército, no seu conjunto – desde o simples soldado até ao mais graduado dos oficiais – podia saber, sem nenhuma dúvida, que o Estado é inviolável; e que quem levantasse a mão contra o Estado só poderia ter como destino a morte. Mas não era preciso matar para provar isso, isso apenas tem que estar implícito em todas as decisões castrenses, em todas as conversas informais entre militares, presente em todos os espíritos; e esse sentimento pairar por cima da cabeça de toda a oficialidade e de cada soldado individual tal espada de Dâmocles.

Assim em vez de um instrumento de coerção e medo, essa ameaça implícita, seria uma certeza transformada em dever de os militares protegerem o Estado como a menina dos seus olhos, como entidade sagrada acima das questiúnculas humanas, sejam elas tribais, partidárias, regionais ou outras que aqui não posso frisar na totalidade.

E essa “ameaça implícita” também serviria para assegurar a obrigação (para não dizer interdição total) do Poder Politico de nunca aproximar-se do Exército tentando usa-lo como apoiante nas lutas políticas ou causas de qualquer índole. E este pressuposto devia constituir um sacrilégio que nenhum Partido quisesse cometer, sob a pena de ser interditado por um largo período de tempo ou ser sumariamente proibido pelo Tribunal Constitucional.

E isto é sumamente importante, pois quando o Exército (ou algumas chefias) “percebe” que o Estado é frágil e permeável, e que pela força das armas é possível mudar as suas estruturas e centros de poder, surge a tentação e o perigo de uma Ditadura Militar. Porque a Ditadura Militar emerge quando os militares já não querem servir, mas subjugar o próprio Estado e os seus órgãos constitutivos, como a Presidência e o Governo. E em seguida usurparem estes cargos e os ocuparem de facto por oficiais ou pessoas da sua confiança nomeadas por eles.

II

Ansumane Mané sabia, com absoluta certeza, que o nosso Estado era permeável e frágil; pois juntamente com Nino Vieira, ele e um conjunto de militares derrubaram o Estado da Guiné-Bissau numa só noite, sem qualquer resistência de maior. Nem do Partido Dirigente e nem do Povo. E essa lição apreendida no frenesim do golpe, na noite de 14 de Novembro - quando o mandaram ir buscar Rafael Barbosa (este tinha sido libertado da 2ª Esquadra de Bissau, onde estava detido desde o seu julgamento (?), pelo Iafai Camará por ordem de Nino Vieira) a Fortaleza de Amura para o levar a Rádio Nacional - não foi esquecida. Aliás, essas coisas nunca se esquecem, só ficam adormecidas no nosso subconsciente até chegar a hora

Ansumane Mané “sabia” também, que se quisessem, os golpistas de 1980, teriam proibido, destruído e dissolvido o P.A.I.G.C. - como de resto, não tiveram nenhum pejo em dissolver o órgão máximo da soberania a Assembleia Nacional Popular - e estabelecido um Ditadura Militar no País, sem qualquer problema de maior. E isso só não aconteceu porque por detrás do Golpe de Estado não havia nada substantivo em termos teóricos ou objectivos a longo prazo.

Era apenas uma “simples” tomada de poder, numa luta surda pelo poder dentro P.A.I.G.C.; era ao que consta, apenas um grupo que se adiantou a outro; sem nenhuma ideologia diferente da outra facção. As ideias eram as mesmas, a questão era quem as ia implementar (em beneficio próprio claro). Mas mais do que isso (já depois do sucesso do golpe) a Ditadura Militar só não aconteceu, porque a matriz de João B. Vieira e dos restantes militares golpistas (Iafai Camará, Paulo Correia, Binhancare Na N`tchanda, Buota Na N`batcha, João da Silva, etc.,) como a dos restantes Membros e Conselheiros do Conselho de Revolução, era o P.A.I.G.C.; e consequentemente tinham mais lealdade ao seu Partido que ao seu Estado Nacional; o infeliz e impotente Estado Guineense proclamado por eles na Madina de Boé há apenas sete escassos anos antes. Esse Glorioso Estado, tão maltratado, que era em suma, o tal resultado último da Luta de Libertação e o seu Porque filosófico mais importante; esse Estado Nacional pelo qual sofreram e morreram tantos patriotas durante centenas de anos e tantos camaradas desses mesmos golpistas.

E João Bernardo Vieira devia ter percebido que nesse dia, sem querer abriu a caixa da Pandora, e dali para frente nada voltaria a ser como antes; Devia ainda mais entender que a “inocência” revolucionária, a lealdade absoluta ao Partido de Cabral e amor desprendido a Pátria, que era o apanágio dos nossos militares, tinha terminado; e dali para frente as coisas seria diferentes para pior e era só uma questão de tempo.

Mas isso não retira o mérito e nem desmente o facto de os nossos militares, como classe independente - e já (pela primeira vez) não como o braço armado do P.A.I.G.C. - a partir desse momento da subversão do Estado terem aprendido uma grande lição com o 14 de Novembro: se era possível subjugar o próprio Partido (como Nino Vieira veio a fazer), era ainda muito mais fácil dominar o aparelho de Estado, pois esta era ainda mais frágil que o Partido Dirigente.

Na altura este Estado, quase abstracto, despido das roupagens que dão honra e dignidade, era um Estado sem legitimidade aparente; Um Estado com quem ninguém se identificava, de quem ninguém se orgulhava e pelo qual quase ninguém estava disposto a morrer (nem o Povo, diga-se de passagem) e por isso tinha os dias contados. Bastava aparecer um aventureiro, suficientemente temerário, para o destruir de uma penada, sem prever as consequências e nem imaginar o trabalho titânico que iremos agora ter para o soerguer de novo. Porque em verdade vos digo, o trabalho vai ser vastíssimo e com imensos sacrifícios.

E não será uma questão de civilizar o Estado, mas criar um novo Estado. Não se trata melhorar a sociedade existente mas de fundar uma nova sociedade baseada em outros valores que não os actuais. E isto só pode ser realizado por um verdadeiro Governo Nacional. Governo esse que nunca deve ir a reboque do povo, deve estar sempre aquém das expectativas deste. Deve estar sempre um passo em frente. Pois todo o Governo que esta a realizar no presente, acções que povo acha que já devia ter sido feitas no passado, esta condenado.

III

 

Portanto, se na altura do Golpe de Estado de 1980, ainda havia muita gente leal ao Partido PAIGC - quer pela ideologia, quer pelo genuíno acreditar ou simplesmente porque “só eram quem eram”, graças ao Partido - ninguém era leal ao Estado Guineense como tal: Estado como Ideia e como Representação; Estado como unidade representativa da Nação e o Povo, como a união entre a Infra-estrutura e a superstrutura da Nação. O Estado como “a expressão da Nação politicamente organizada”. Enfim o Estado como garante da perenidade da Nação e do Povo, independentemente do Presidente em exercício, do Governo em vigor, dos Partidos, do Exercito ou de diferentes organizações da Sociedade Civil.

Termino dizendo que comparativamente a subjugação do Partido PAIGC pelo Nino Vieira, de que falei antes, a de Ansumane Mané também não veio a ser diferente. Um membro do Comité Central do PAIGC de há três anos atrás, contou-me que ele só estava nesse órgão porque o Ansumane Mané não sabia o seu nome e apelido; pois este não gostava nada dele. O caso é que uma vez levaram ao Ansumane Mané a lista das pessoas que eram “propostas” para pertencer ao Comité Central do PAIGC, para ele aprovar ou não a seu bel-prazer; e ele pegou numa caneta e calmamente, inocentemente, começou a riscar os nomes que não queria naquele órgão. E como ele não sabia o nome dessa pessoa (só o nominho) deixou passar. E o Comité Central ganhou um orgulhoso novo membro. Se isto não é ser Secretario Geral do P.A.I.G.C. então o que é?

 

III

 

O PODER CAÍDO NA RUA OU

A LIBERDADE FEITO MULHER 

 

Não podemos afirmar a inocência de ninguém, ao passo que podemos afirmar com segurança a culpabilidade de todos. Cada homem é testemunha do crime de todos os outros, eis a minha fé e a minha esperança." 

 

Albert Camus

 

 

Mas começo por este grande evento, o “7de Junho”, porque o que estava em causa em Junho de 1998 contínua a estar em causa em “Setembro de 2010”. É preciso, a partir dele, falar-vos do que aconteceu na verdade com os Guineenses nesse período e as consequências inimagináveis que veio a ter no nosso futuro. Porque os erros crassos e as omissões escandalosas que nos levaram ao “Junho de 1998” continuam sendo cometidos hoje, neste Setembro de 2010.

Os Guineenses de hoje são gente que infelizmente aprendeu a sua própria custa, que se pode destruir o Estado e todos os seus representantes, num fim-de-semana e segunda-feira a tarde ir beber uma cerveja fresca na prosaica “Nó Djungutu” ou inenarrável “Djiu di Mancebus”. 

Mas essa transformação não foi paulatina e nem foi interiorizada aos poucos. Nos que vivemos essa transformação, dia a dia, hora a hora e minuto a minuto, sabemos que foi abrupta e fulminante como uma tempestade de verão. E foi no fim desse Domingo (o primeiro da Guerra) que nunca mais há-de repetir-se nas nossas vidas - no meio de comunicados e contra-comunicados, mentidos e desmentidos, boatos e verdades, verdades com sabor a mentiras -, a amarga realidade, de braço dado com a irrealidade, acompanhados pela irracionalidade, foram passando pelas ruas, bairros, feiras, pelos clandôs e bares de Bissau, deixando as vezes um rasto de medo, outras de alivio, dependendo do ouvinte e dos seus pecados. E assim fomos descobrindo em que Nação vivíamos, com que líderes contávamos e mais importante, qual a sua têmpera.

Desiludido com tudo que descobria, numa velocidade alucinante, difícil de assimilar, o Guineense começou a entender pouco a pouco, que estava entregue a si mesmo, pela primeira vez na sua história. Mergulhado no pó das ruas de Bissau desses dias, desses dias do fim do mundo, em que o Guineense pela primeira vez em 500 anos foi de facto livre: Pela primeira vez na sua existência não tinha nenhum Poder temporal por cima dele. Nem do “Estado Colonial” nem do “Estado Nacional”, pois o Poder tinha caído nas ruas.

E as ruas -por incompetência da Câmara Municipal -, como sempre, estavam sujas, molhadas, lamacentas, cheirando a podridão. Mas mesmo assim livre, foi para casa, entendendo pelo caminho que toda a liberdade só merece a pena se for conquistada. Mas seja como for o Presidente eleito e o Governo nomeado já não tinham poder; a não ser no Palácio e arredores: e a Junta era ainda um contra-poder difuso que ele não conhecia e nem reconhecia.

Por isso, inicialmente surpreso, sofreu e chorou; depois caiu em si e apercebeu-se da ventura da liberdade caindo do Céu, então abriu os abraços e acolheu-a, para a ninar e acarinhar e só depois cantou; cantou como nunca tinha cantado, tocando tambores de esperança e da vitória; e por fim dançou, dançou como nunca tinha dançado, como se a sua existência dependesse apenas disso; só então embriagou-se de vinho e da própria liberdade que era a mais estranha das liberdades. Liberdade que não foi dada, mas também não foi conquistada.

Por fim, cansado, dormiu no embalo das bombas que ao longe ribombavam, ao sabor vento que vindo dos lados do “matadouro” uivava, subindo a Avenida do Brasil, arrastando com ele o Poder – que de tão recente queda ainda cheirava a novo - misturando-o com a poeira, galhos secos, sacos de plástico rasgados, pingos de chuva, folhas de árvores soltas e páginas rasgadas de um jornal do dia seguinte, que ainda não tinha sido publicado, mas onde já se lia que “soldados amotinados recusam a render-se”; assim redemoinhando, passaram por mim, indiferentes, respingando-me de chuva, cobrindo-me de pó; estava eu no antigo Parque XX Aniversario, a frente da Mãe de Água, onde no cruzamento, sem sinaleiro aquela hora tardia, para lhes dar indicações, hesitaram entre descer para os lados do Palácio da República ou subir a Av. 14 de Novembro. Nessa hesitação conjecturei uma leitura: O Palácio era o continuar de tudo que detestavam, “o ficar tudo na mesma”; subir a Avenida era o saudar de algo novo, mas desconhecido, que podia ser pior do que o existente. E foi nessa hesitação, nesse momento mágico, que vislumbrei a silhueta e a face da Liberdade.

O semblante era de uma mulher ainda jovem, no fim da casa dos vinte, com um lenço branco na cabeça que parecia refulgir na noite, contrastando com a sua pele negra como o ébano; era a mais bela das Guineenses - creio que era ainda mais bela que nha Rosa de Banbadinca que o Atanásio Miranda (já depois de voltar da prisão de Caxias, em Lisboa), me disse ter sido a mulher mais linda da Guiné e quiçá a negra mais linda do mundo -, a mulher na sua plenitude máxima, a essência da feminilidade, que eu tinha a ventura de contemplar.

Nesse momento, virando graciosamente o pescoço de garça, os seus lindos dentes, brancos marfim, sorriram para mim envergonhadamente, como só as princesas podem sorrir - pois o tempestuoso vento “matcho” que turbilhonava incessantemente, levantara inesperadamente as suas saias, numa fracção de tempo, deixando antever como também era lindo o seu corpo. Desesperadamente tentou segurar as pregas da sai que se escapavam dos seus dedos - Esse momento foi um segundo apenas; nem tive tempo de devolver o sorriso com outro igual, pois o companheiro dela, ciumento e ébrio, com uma garrafa de aguardente de cana na mão, puxou-a bruscamente pelo braço, e ela num gesto involuntário de defesa, libertou-se das mãos do atrevido, mas os botões da blusa não resistiram a pressão e soltaram-se no vento forte. Os seus lindos seios, libertos da blusa apertada, saltaram para fora libertos e livres. E assim permaneceram, balançando ritmada e imperceptivelmente, como se tivessem vida própria.

 Ao aperceber do sucedido, a orgulhosa luz da Lua, tentou chegar dianteiro que a pobre e artificial luz de néon, que vinha do posto de abastecimento vizinho; cada um tentando tocar primeiro nos seus seios de cetim. Mas por estar muito longe, a Lua perdeu a corrida; a luz artificial chegou primeiro, pois enquanto ainda atravessava a estrada, teve ajuda dos seus iguais, do “prédio da Cooperação Francesa”, que acenderam-se bruscamente, ofuscando o luar que já aterrava; mesmo assim a lua não se retirou - sabia que Lua ki di nós -, contentando-se em iluminar as pregas da saia rodada e as sandálias de pele de carneiro que calçavam os seus delicados pés.

A Liberdade sem se aperceber de nada, permaneceu no mesmo sítio, quieta, misteriosa, fortemente iluminada, no meio do cruzamento, como se estivesse num palco e não numa estrada; majestosa no seu porte, parecia uma Baiana que numa sessão de candomblé, misteriosamente tinha descoberto o caminho para a sua casa africana.

Nesses pequenos instantes de que é feito a eternidade, em que o nosso cérebro não processa os sons e imagens a velocidade com que nos entram pelos sentidos, percebi por fim, porque é que o maior Doutor da Igreja, Santo Agostinho de Hipona, tinha dito há mil e tal anos antes, que “os desígnios de Deus são Insondáveis”. Se não tivesse havido a Revolta, se não fosse a audácia de Ansumane Mané, eu não teria visto a obra de Deus na sua plenitude... mas foi sol de pouca dura, pois um rapazinho que vendia amendoim ao meu lado, indiferente a revolta, as razões do Ansumane, ao ribombar dos mísseis e a “obra de Deus”, sem perceber que ela não era uma mulher, mas a própria Liberdade, gritou para mim:

-  tiu, djubi si mama. Nha mame ku padim !!!

Foi tudo muito rápido, antes de poder explicar ao menino i-“nocente” ke ki Liberdadi” e o dever de respeita-la. Ela, a Princesa Liberdade, ainda indignada com o comportamento do companheiro, num protesto mudo e imóvel, sem esboçar nenhum gesto para se cobrir, com os seus maravilhosos seios cobrindo todo o firmamento, vislumbrou o garoto. Então num arroubo de emoção misturado com a maternidade, caiu de joelhos e abriu ambos braços num gesto acolhedor de mãe, para onde o menino sem se fazer rogado, correu abrigar-se de todos os infortúnios da vida; os passados, os presentes e os futuros que ainda hão-de vir, esquecido do tabuleiro de mancara, que precavidamente depositou nas minhas mãos.

Então os dois corpos enlaçados, imóveis, no meio da Avenida pareciam um só. Nesse instante as camareiras da Princesa Liberdade, como era o seu dever, aproximaram-se e a cobriram com um pano de pinte, escondendo dos olhos dos homens e dos meninos, a obra de Deus.

Por fim, depois de muito revolutear, discutir e brigar, toda a comitiva resolveu subir em direcção a “Chapa de Bissau”, e com essa decisão saudar os revoltosos. Fiquei ali a vê-los andando, as vezes voando, mansamente sobre a Avenida que aqueles que se tinham revoltado agora, tinham dado o nome - há dezoito longos anos atrás - com igual acto de insurreição.

Não fui atrás deles, embora a vontade fosse imensa, nem desci para as bandas do Palácio, que seria o mais seguro e natural para quem ia aonde eu ia. A minha dúvida, a procura, o sentimento era outro. O coração estava partido e procurava a cola dentro do meu ser, mas não me lembrava aonde o tinha guardado. Nenhum dos dois lados me podia satisfazer, nem os lados da “Chapa”, nem os ares do “Palácio”. Como não satisfizeram milhares de Guineenses. Mas como o meu coração estava demasiado pesado preferi continuar em frente: penosamente, passo a passo, pensamento a pensamento, caminhando sozinho nessa deserta Av. da Unidade Africana. Ao chegar a ruazinha que da para antiga Escola de Direito, senti passos rápidos atrás de mim, era o “vendedor de mancara” que esforçava-se para me alcançar.

No turbilhão pensei que o meu pequeno companheiro, vendedor ambulante de profissão, assistente de milagres por opção, tinha partido com a comitiva da Liberdade, como naqueles filmes que os extraterrestres levam um humano para o infinito. Mas ele foi só até a feira de Bandé e com medo regressou, pois lembrou-se que tinha deixado o tabuleiro de amendoins comigo e não podia voltar a casa sem ele. Parei para esperar e devolver o tabuleiro, que ainda carregava sem me aperceber; ele já tinha chegado ao seu destino; ao se despedir perguntou-me se os tiros não iriam parar (tinha a secreta esperança que não, pois assim não haveriam aulas) respondi-lhe que não sabia e nem tinha a certeza se “deviam” parar. Ao ouvir a minha resposta, disparou correndo para casa; morava a frente do Ciclo Preparatório Salvador Allende, onde um dia fui muito feliz.

Nessa noite ele dormiria sem dormir e sonharia com a Liberdade em forma de mulher e a sua rija cama, de colchão de palha, estendido no chão da cozinha, pela primeira vez seria suave acolhedor.

II

De novo sozinho na noite, continuei a caminhar, estugando o passo, até que ao meio da rua, a frente da Igreja de Nossa Senhora, onde sem saber bem porquê, parei outra vez. Talvez apenas para descansar, talvez para analisar a movimentação dos lados da Segunda Esquadra, antes de continuar a minha solitária caminhada.

Mas não pude deixar de olhar, por um momento, para esse grande edifício, imerso na escuridão e como se me tivessem transportado no tempo, lembrei-me que um dia, numa outra vida, quando ainda, essa bonita Avenida chamava-se Governador Arnaldo Schulz, tinha eu uns sete ou oito anos, meu pai levou-me, segurando-me pelas minhas pequenas mãos que se perdiam dentro das suas, a esse mesmíssimo sítio onde estava agora. Naquela altura era apenas um grande terreno vazio, mas nesse dia ia ter lugar ali a cerimónia de “lançamento da primeira pedra” para a construção dessa Igreja, que agora pronta, silenciosa, também me contemplava através das suas janelas de vitrais.

Era uma tarde escura e ventosa com nuvens cobrindo o firmamento; mas o meu velho estava muito animado, pois entendia que essa nova Avenida, no coração de Bissau, trazia um certo desenvolvimento urbanístico e um ar mais cosmopolita a nossa capital; além de que a construção de um edifício novo como essa Igreja daria também um certo lustro a nossa tão abandonada (pelos portugueses) urbe, como ele dizia. Por isso orgulhosamente deu-me três moedas e me disse para atira-las para a cova que foi feito no chão, onde os presentes também atiravam moedas numa cerimónia de deposição da primeira pedra. Depois de atirar as minhas moedas, com muita pena, pois preferia comprar sorvete com elas outro dia, derramaram cimento fresco nessa cova e por fim puseram dois tijolos a simbolizar o inicio da obra da Igreja. Essa igreja haveria de demorar uma dezena de anos ou mais a ser construída, por falta de verbas, que teriam que vir da Itália julgo.

Mas nesse momento com os tiros soando da zona do Aeroporto, parado - encostado a um candeeiro da rua, deixando que o vento fresco batesse na minha face - sem saber porquê deixei que o meu espírito voasse pela historia da Guiné e lembrar do homem que em sua honra e gloria os Portugueses deram o nome a essa Avenida. Desse General, que uma vez disse em Portugal com profunda convicção, que “A Guiné jamais deixaria de ser portuguesa”. Esse homem que foi Governador da Guiné e depois de ser Ministro de Interior de Portugal, acumulando - pela primeira vez na Guerra Colonial, nas três colónias Angola, Guiné e Moçambique - com esse alto posto, o cargo de Comandante-Chefe das Forças Armadas Portuguesas no território.

Então percebi com certa ironia histórica, que os actuais titulares dos dois cargos que ele desempenhou na Guine estavam nesse momento em Guerra entre eles. Só que agora o Chefe máximo não se chamava Governador mas Presidente e a Província já era uma República contradizendo a sua afirmação de 1965.

Este Governador veio a sair ingloriamente da Guiné - substituído pelo Brigadeiro António de Spínola – pois durante o seu mandato, em 1965, deu-se o alastramento da guerra ao Leste da Guiné nomeadamente em Pirada, Canquelifá e Beli e no “Chão de Manjacos” nas localidades de Jolmete e Plundo. Também se afirma que foi em 1965 que o Partido começou a Luta Armada  na região de São Domingos, onde FLING, já estava implantada, embora com dificuldades.

E eu não sabia que o Brigadeiro que neste momento, comandava o canhoneio que eu ouvia, também viria a ser como o outro (O Brigadeiro Spínola) durante algum tempo, o homem mais poderoso da Guiné.  

III

Mas era tempo de continuar, era tempo de atravessar o bairro de Cupelão (Pilum) e alcançar Santa Luzia, para como o meu povo, também ir descansar, pois pressentia que em breve um novo amanhecer ia despontar… mas a cor desse amanhecer era uma incógnita e um temor indistinto dentro de mim. Tudo estava a mudar rapidamente. Percebi nesse dia que um “tempo acabou”, toda uma era passou a história, todo um ”modus vivendi”, tinha se ido para sempre; e nada voltaria a ser como antes.

O que pensei durante todo o resto do meu caminhar, guardo para mim, mas hoje sei que salvo as respectivas proporções, o 7 de Junho de 1998 foi o nosso 11 de Setembro. Como os Americanos fomos acordados do nosso sono letárgico para que nunca mais adormeçamos quando o País esta em jogo. Só por isso este acontecimento teve algum mérito. Porque neste acontecimento, Deus, escrevendo certo por linhas tortas nos fez ver, que todos nós, Guineenses desse tempo, indignamente escrevíamos torto por linhas tortas; e quando não escrevíamos, líamos torto em linhas tortas e assinávamos por baixo, torta e tortuosamente. E assim, sem pressentirmos a culpa pouco a pouco deixou de ser partidária, governamental, presidencial, ministerial, para insidiosamente tornar-se individualmente comum. E num determinado momento todos – O Presidente, os Ministros, os Directores Gerais, os Funcionários Públicos, os Empresários, em suma a Sociedade Civil em seus múltiplos sectores, - passamos a ser cúmplices, voluntários ou involuntários, no descalabro inexorável do País.

E hoje ainda, volvidos tantos anos, os culpados e os inocentes, no afã de atribuir culpas - como fizeram com o “barco enterrado” na Praça Honório Barreto – e se eximir de responsabilidades tentam culpar Amílcar Cabral do estado caótico em que a Nação se encontra num exercício disparatado e irresponsável. Esquecendo que há líderes que destruíram os seus próprios países e mataram milhões de pessoas do seu próprio povo, como Hitler, Stalin, Mao Tse Tung, Pol Pot, etc., mas o Povo e novos dirigentes desses países, fizeram deles grandes países de novo.

Se nós até agora não conseguimos gerar um dirigente capaz, quarenta anos depois da morte desse gigante, para por ordem no País, a culpa é nossa e só nossa. Sei que a grandeza e a genialidade não são dados a pessoas normais. O sabor de viver no limite e ter a ventura de saber que não haverá amanhã e mesmo assim olhar a morte nos olhos e aceitar morrer por um ideal maior não é para quem quer, mas para quem pôde. Mas tínhamos o dever (e ainda temos) de – para o bem do Povo – olhar ao nosso redor e ver os que merecem, podem e sabem nos conduzir e destrinça-los dos que são apenas patetas alegres.

Se em quase quarenta anos - com toda a ajuda externa que tivemos (e essa ajuda não foi só económica: foi social, moral, solidária, de particulares, de países inteiros, de movimentos políticos, até do papa de Roma), multifacetada, garantida e certa - não conseguimos fazer nada, a culpa é nossa e só nossa. Se em quarenta anos fomos cobardes, lacaios, assassinos, ladrões, incompetentes, a culpa é nossa e só nossa. Basta de procurar desculpas, basta de falta de carácter e coragem política; basta de continuar a pensar em nós e nos nossos filhos em detrimento da nação e dos seus filhos.

Nenhum Cabral, nenhum País vizinho, nenhuma infelicidade extemporânea são culpados. Nós somos os culpados. Nós como povo, como indivíduos, como seres humanos. Nós que não tivemos nunca a coragem de revoltar mesmo quando se matavam os nossos companheiros do Partido, compatriotas inocentes, amigos, pais e filhos. Pois há centena de anos já Edmund Burke dizia que “Para que o mal triunfe só é preciso que os homens de bem não façam nada”.

Nós que não protestamos quando se destruía as relações familiares, o respeito pelos mais velhos e pais, o frágil tecido económico, quando se destruía, em suma, tudo que “a vista alcança”, somos culpados. Todos culpados, cada um a sua medida, mas todos culpados. Porque não devemos esquecer que “somos responsáveis por aquilo que fazemos, o que não fazemos e o que impedimos de fazer.” A isto eu acrescento, no nosso caso, e por aquilo que “não impedimos de fazer”.

Por isto e por tudo o mais que foi mal feito, se hoje um Guineense tem pouco com que se orgulhar, esse pouco é feito da “gesta de Cabral”, de “ser compatriota dele” e ter “nascido na mesma terra” que o viu nascer. Pois o único acto do nosso povo reconhecido mundialmente como igual ou melhor do que o dos outros Povos - um acto de excelência portanto, onde conseguimos a nota mais alta, vinte valores, no concerto das nações - foi o acto idealizado, organizado e chefiado por Cabral: a Luta de Libertação Nacional. 

A nossa Luta de libertação, a par da Luta dos Chineses, Vietnamitas, dos Cubanos e Argelinos, é um “case study” pela maneira como foi feita, unindo a teoria e a prática, provando as teorias sobre as Lutas de Libertação ainda não provadas, e originando comparações com as outras Lutas coroadas de sucesso. A nossa Luta foi o espelho onde outros povos olharam-se para ter a coragem de fazer a deles (imitando a nossa de certa maneira). E neste particular nenhuma outra Luta foi “melhor” que a nossa. E esses soldados da Luta deveriam ser embrião do homem novo que jamais deixaria que se destruísse o País em nome de interesses mesquinhos, sejam eles tribais, económicos, ou de qualquer outra índole, protagonizados por políticos inescrupulosos. Mas como o resto do povo, foram negligenciados durante muito tempo e o resultado foi depois sentida no corpo da nação no seu todo. E isso acreditem em mim, não é e nem poderia ser, culpa de Amílcar.

Porque se hoje fala-se de gigantes morais como Nelson Mandela e mártires de África como Patrice Lumumba, de lutadores pela emancipação humana como Martin Luther King ou um lutador pela liberdade como Ernesto Che Guevara, não se esqueçam que o nosso Amílcar Cabral foi tudo isso a vez, nos poucos, quarenta e tal anos que viveu neste mundo. Foi pelo seu legado, moralmente um gigante, pelo seu martírio e assassinato, um mártir da causa do nosso povo e da África, pelas ideias e acções um emancipador dos povos das colónias portuguesas e pela sua Luta de Libertação, um estratega, teorizador e lutador pela liberdade que mundo conheceu poucos iguais. Por isso este Freedom Fighter, será lembrado durante séculos, enquanto aqueles detractores dele, serão esquecidos quinze dias depois das suas mortes.

 

IV

 

O NOSSO ACORDAR COMUM NO NOSSO DESTRUÍDO ESTADO COMUM OU QUEM SÃO OS GUINEENSES

 

 

“A maior riqueza de um país são as reservas de inteligência existentes nas amplas camadas populares, que só podem revelar-se numa atmosfera de Progresso”

António A. Monteiro, 1907-2007

Mas não “posso impedir” que muita gente, infelizmente, ainda entenda erradamente, que Amílcar Cabral teve certa culpa no nosso descalabro actual, por não ter previsto (com toda a espantosa inteligência e discernimento que tinha) que entregando armas a gente analfabeta ou com pouca formação clássica, tarde ou cedo, eles as usariam de modo errado. Mas essas lucubrações não passam disso mesmo e não resistem a uma análise séria. Nenhuma Luta de Libertação poderia ser feita com meia dúzia de quadros e finalistas do Liceu que Cabral tinha conseguido mobilizar aqui e acolá. Tinha que ser feita da única maneira possível, da maneira que Cabral o fez e por quem o fez: pelo povo.

Claro que dar armas a pessoas sem nenhuma preparação é um disparate imenso, para não dizer um crime hediondo. Mas não se trata de se “ser analfabeto” ou “gintiu” no sentido pejorativo ou significando pessoa selvagem. Um soldado tem que saber exactamente para que lhe foi confiado uma arma tem que usa-lo essencialmente para esse motivo. Mas a questão é mais do que apenas preparação (no sentido militar claro) no sentido do dever e obediência cega as chefias; a questão deve ser mais profunda, de âmbito ideológico, consubstanciado num sentido de dever e de amor pátrio que estará acima das pertenças tribais ou lealdades pessoais. E doutra forma só pode dar em tragédia. Cabral conseguiu fazer uma Luta excepcional (comparativamente a qualquer outra Luta de libertação no mundo) e vitoriosa porque ele cumpriu este pressuposto. Quando ele falou na “Arma da Teoria” de certa forma ele falava deste entendimento das coisas. Porque a teoria, a ideologia correcta é a mais poderosa das armas.

Na verdade, todas as Lutas ou Revoluções, que serviram para alguma coisa, foram feitas pelo povo, pelos camponeses, por operários que eram analfabetos e pouco preparados, liderados pela intelectualidade revolucionária. Seja a Revolução Francesa, a revolução de Outubro, todas as Guerras de libertação incluindo a mais importante, a Chinesa liderada pelo Mao Tse Tung

Mas nenhum povo não se organiza sozinho, se não tiver lideres a altura e se o próprio Estado - como conceito perene e demiurgo da nação - for destruído. E quando o Estado foi aniquilado, o sentido de Estado desapareceu, com todos os seus pressupostos e princípios éticos e morais que impediam a libertinagem e a selvajaria. E o poder começou a resvalar para rua.

Mas quem leu Cabral com atenção, sabe que ele já se preocupava com isso. Por isso afirmava que “(...) A natureza do Estado que vamos criar no nosso país é uma questão muito boa, porque é uma questão fundamental.” De facto hoje sabemos na pele, na carne, nos ouvidos e na barriga cheia de fome que é “uma questão muito boa”. Pois o nosso sofrimento, a nossa desilusão, a nossa vergonha, advêm toda ela da irresolução deste pressuposto. E cada dia que passa é uma prova da sua veracidade. Mas como também bem sabemos Cabral não conseguiu resolver este dilema de modo satisfatório, o que lhe veio a custar a própria vida. Mas ele sabia e sentia, mais do que ninguém, a importância que a “natureza” do Estado à criar, depois da Independência, teria para a nossa vida futura; e frisava isso com todas as letras dizendo: “(...) É o problema mais importante do movimento de libertação.”.

 Mas a maioria dos militantes do Partido nunca perceberam que este é que era o górdio em que assentava o futuro. E que podiam libertar, re-libertar e tornar a libertar, mas de nada serviria, - e nada podia ser feito -, sem um estado forte, coeso, unificador das etnias e garante do progresso do Povo. Também, na verdade, infelizmente, não sabiam como se fazia isso na prática. Deviam ter lido e relido o “Estado e a Revolução” de Vladimir Ulianov (Lenine) não para saberem como o destruir, mas para entenderem a sua essência, o seu papel profundo e emancipador no nosso contexto. Pois aqui, como já demonstrei, é o “Estado que vai fazer o Povo”, pois ele só pode ser uma emanação, criação, do Estado; mas não um estado qualquer, mas um “Estado do Povo” na sua acepção mais profunda. Um Estado que tem como objectivo primeiro e último construir a Nação Única, com um povo único e não de um emaranhado de tribos cada um pensando que esta numa competição com o outro para a sobrevivência. Mas sem esquecer nunca que a Pátria e o Povo será o resultado deste “emaranhado tribal” que será a raiz da árvore Nação.

 É o papel desse estado assegurar a sobrevivência e o desenvolvimento harmonioso de todos os elementos deste Povo. Sendo este o objectivo e o papel único do estado, todo o resto virá por acréscimo. Pois mesmo aceitando que o “Estado é apenas um meio para atingir um fim”, esse fim que é a Nação, só pode ser atingido, se houver a estabilidade. E aqui a estabilidade não significa esse lugar-comum repisado inconsequentemente todos os dias pelos “nossos políticos”. Aqui significa a Acalmia Nacional e Descanso do Povo de todos os dislates dos últimos anos. Pois até o mesmo o Povo, no seu conjunto, dentro e fora das fronteiras nacionais, “precisa de descansar”, mesmo que for apenas um ano, dos disparates de actores políticos da nossa praça.

Amílcar Cabral possivelmente o leu o “Estado e Revolução” (pois, se não o leu, era muito mais inteligente ainda que se supunha) pois sobre o Estado e a sua importância disse uma coisa que demonstra que conhecia profundamente as teorias de Estado e era algo que o preocupava verdadeiramente: “O importante é saber quem será capaz, uma vez destruído o poder colonial, de tomar nas suas mãos o aparelho de Estado.”. Nunca se chegou a saber “quem seria capaz”, nem no âmbito teórico; os herdeiros de Cabral (leia-se os militantes do Partido) acharam que eram eles “os que eram capazes”; mas a história veio a demonstrar que eram na verdade, por uma data de razões, os menos capazes.

Não “sabiam” que nenhum Partido por si só pode governar uma Nação com os seus militantes. Tem que se basear numa franja importante da população, seja uma classe ou uma elite. Nem o maior Partido do mundo, o Partido Comunista da União Soviética que chegou a ter quase vinte milhões de militantes governou com apenas seus militantes. De uma forma ou outra tinha que procurar a sua legitimação e mandato na classe operária e camponesa que representavam quase 70% da população.

Não “sabiam” que engrandecer a Guiné pressupunha ter uma ideologia clara e uma vontade férrea que não se detém perante nada nem ninguém quando o objectivo é o desenvolvimento económico e social da Nação. Este pressuposto deve ultrapassar quaisquer dúvidas existenciais.

Os objectivos “a curto prazo” deviam ser enunciados e alcançados no máximo em quatro, cinco anos. Os “a longo prazo” deviam ir sendo alcançados paulatinamente um atrás do outro. Por exemplo, os objectivos que ultrapassassem o tempo de existência de Luís Cabral, ou de João Bernardo Vieira, deveriam vir a ser alcançados pelo seu sucessor, mas não mudados; estariam para além de mudanças. Por isso os objectivos nunca devem ter cariz religioso, Partidário ou tribal.

Os objectivos determinados “a longo prazo” e mesmo que não as possamos atingir de imediato por causa da conjuntura nacional ou internacional não devem ser mudados por diferentes governos. O que quero dizer é que os objectivos gerais devem ser consensuais para todo o edifício do Estado, as conjunturais devem depender de cada momento histórico.

Os Objectivos de que falo são os Nacionais, que deviam ser decididos a partir do sentir colectivo dos Guineense, do País real que temos, das possibilidades existentes (prevendo os futuros) na altura de os definir. Os objectivos têm que ser simples, compreensíveis para toda a gente. Mas a crença neles e na sua utilidade para a Nação devem ser inabaláveis.

 

 

II

E no segundo dia do inicio da revolta, nessa límpida manhã de segunda-feira, dia 8 de Junho, o Povo Guineense acordou e interiorizou que estava só - e que apenas se salvaria se salva-se a si mesmo (e aos filhos), que só comeria se desenrasca-se sozinho, que só não morreria debaixo das bombas, se arranja-se um abrigo para ele (e para os filhos) -, percebeu, por fim, completamente, que na verdade não tinha Estado nem Governo e que era a lei da selva que imperava, num “salve-se quem puder” imenso e medonho. Compreendeu que a Constituição da Republica estava pendurada de cabeça para baixo na sacada do Ministério e que as suas belas e grandiloquentes promessas continuavam tão vãs como sempre foram. Entendeu então que a Lei Constitucional vigente nesse momento tinha artigo único, sem parágrafos nem adendas. E esse artigo na sua solidão e imparcialidade que a Lei obriga, rezava simples e impiedosamente: Cada um por si, Deus por todos.

Mas o mais grave de tudo que ele entendeu nesses dias, para o seu grande assombro, era que na verdade sempre foi assim nesses anos todos. Podíamos não ter Constituição e nada mudaria, pois ela nunca serviu para nada de bom para este povo. Se servia para honrar, legitimar, aprovar e desculpar as más práticas. E ajudar a dar uma aparência de legalidade formal aos actos hediondos praticados contra a soberania, contra o povo, contra a Nação.

E percebeu de uma vez para sempre que o Estado há muito que se tinha demitido de todas as suas funções de soberania. E todos os seus corpos constituintes só lá estavam para utilizar os parcos meios ainda existentes e as ajudas internacionais ao País para se governar. Por isso não havia um Sistema Nacional de Saúde, não havia asilos para velhos, hospícios para doentes mentais, orfanatos para crianças sem pais, maternidades para as mães, reforma para os velhos, respeito para com as pessoas.

Também não havia, digno desse nome, um sistema de transportes públicos terrestres, marítimos e aéreos para o povo, não havia estradas para os condutores, não havia electricidade para ler, desenvolver a economia e não tropeçar no escuro, não havia água para beber e irrigar os campos de cultivo, não havia escolas dignas, não havia Liceus em condições, nem escolas técnicas e comerciais, não havia universidades, não havia teatros e cinemas, não havia bibliotecas, não havia agências funerárias e não havia serviço de bombeiros nas cidades.

Não havia uma frota pesqueira, nem indústria de pesca e de transformação de pescado, não havia uma simples pequena indústria de transformação de frutos. Não havia produção de mancara, milho e arroz; não havia produção normal para exportar como antigamente e nem que chegasse para alimentar a população; e também não havia respeito por ninguém.

Um Sr. Embaixador que estimo de uma forma particular, por ser um autodidacta - e o maior conhecedor vivo da Classe Política Guineense, da Diplomacia Guineense (seus quadros e tendências), dos “costumes” e das susceptibilidades do diplomata Guineense -, uma vez me disse que de tudo o que digo sobre o Pais e o Povo, uma coisa com que ele concorda vivamente é o facto que digo e ele verifica todos os dias: ninguém respeita ninguém na nossa sociedade. Nós nunca dávamos valor a nós mesmos, aos nossos quadros, aos nossos músicos, aos nossos escritores, pintores, lavradores, etc., ao que temos, ao que é nosso genuinamente; só depois de morto é que sentimos a falta que alguém faz. Para nós ninguém tem valor nenhum. Mas isso é uma forma dos medíocres esconderem a sua mediocridade e proliferarem para a nossa desgraça. Pois se “ninguém vale nada” então “todos não valemos nada”. Nivelar por baixo em bom Português.

III

Desde essa segunda-feira o que aconteceu com os Guineenses? A descoberta da verdade os mudou? Volvidos todos esses anos, passadas que estão, todas as guerras, Cometidos que foram, dezenas e dezenas de assassinatos, nada aprendemos. Ainda continuamos a pensar que o País é o mesmo de há 37 anos, onde pode-se fazer tudo o que se quiser. Esquecendo-se estupidamente que os Guineenses de hoje, são compostos por gente que apreendeu vivamente com os trágicos acontecimento do 7 Junho 1998. E eles, embora não o realizem permanentemente na sua procura diária de subsistência, lá no fundo, sabem perfeitamente o que nos fez chegar onde chegamos.

Esquecemos que os Guineenses de hoje são de outra têmpera; são formados por milhares de quadros de nova geração com um sentir completamente diferente da geração anterior a 1998. Esquecemos que os Guineenses de hoje são milhares de pessoas que a Guerra deu oportunidade de saírem do seu país e conhecerem outras vivencias e outros povos. Foi a oportunidade de encontrarem seus parentes há muito emigrados para com eles dividirem o sofrimento e consolidarem o que sabiam apenas teoricamente de outros países e povos.

Os Guineenses de hoje são compostos de gente cosmopolita, multirracial, multicultural por terem estudado em todos os continentes e em todos os países do mundo; por terem casado e gerado filhos com outras nacionalidades do mundo; por gente que domina a ciência e o saber; por gente que quer mais que tudo na vida desenvolver o seu País e deixar de ter vergonha dela e andar de cara erguida em qualquer lugar.

Os Guineenses são constituídos pelos fulas do Leste que votaram em Henrique Rosa, embora lhes tenha dito que ele era filho de “branco” e ex. soldado do exército colonial. São feitos de mandingas de Pilum e de Hafia que votaram no Cumba Yalá, como Aminata Baldé, que encontrei no último comício deste, em frente a UDIB (por ser uma amiga da juventude lhe perguntei o porque dela ali estar com o filho. Me disse que estava farta de 35 anos de mentiras do PAIGC), no momento em que decorria o comício de Malam Bacai Sanha ali ao lado.

Os Guineenses são também os cristons de praça, os balantas de Bissau e do Norte que votaram em Malam Bacai Sanha entendendo que assim defendia a estabilidade e a Nação e o fariam voltar a normalidade por fim que tanto anseiam.

Nesses dois últimos comícios da campanha eleitoral presidencial - que fiz questão de assistir no meio da multidão, olhando para a cara das pessoas - não havia tribos, não havia religião, havia Guineenses apenas, pensando pela sua cabeça e analisando que candidato seria o melhor para o País.

É dessa gente que é feita o guineense de hoje e cada vez mais, o de amanhã e não daqueles que nos teimam em dividir pela cor da pele, pertença tribal ou a origem dos pais. Porque esses pertencem ao passado e são eles os responsáveis morais e de todas as nossas desgraças e catástrofes. Esses mereciam ser pendurados no “Polom de Brá” primeiro e só depois a Junta descer para o Palácio.

Os Guineenses são essa gente feita de técnicos de várias áreas, que mesmo que apenas um pouco de tudo que já apreenderam, teriam muita honra e orgulho em usa-lo para o engrandecimento da sua Pátria. Pois são gente que hoje em dia olha para aquelas velhas e retrógradas noções de pertença tribal e cor da pele e origem dos antepassados - papel ku ma djiro; mandinga ku dibi manda gossi; balanta ku na dana terra; fulas bin nam de fora; mandjaco atrevido, felupe tulo e caba é puco; cal dia ku bidjugo manda? ami ki preto nock é ku manda dibi di manda; si pape e tuga o frances, si mame e cabriano, si pape e suriano; e casa ku branco; e ca obi purtuguis drito; etc , etc. –, como puro lixo de um passado atrasado, analfabeto e espúrio. E o pior é que, quem usa estes argumentos, geralmente é o mais burro da “sala de aula”, pois de que outra forma poderá enganar para mandar? Mandar para roubar? roubar para ter “casa sin luz ma cu badjudas bonitus”? Ele sabe que só será alguém assim.

Os Guineenses de hoje são formados por homens que já construíram prédios no mundo inteiro, de Lisboa a Madrid, de Berlim a Greve, de Ontário a Dubai, de Moscovo a Luanda, de Açores a Praia, de Dacar a Nova York. De tantos estarem pendurados em andaimes já conhecem a geografia do planeta inteiro. Construíram o mundo inteiro só não construíram na sua terra. Onde mais queriam construir, onde mais orgulho teriam, onde seriam mais felizes.

São formados por mulheres que estão fartas de limpar escadas, escritórios e ruas em Portugal e na Europa inteira, sabendo que têm formação superior às suas humildes e a maior parte das vezes, humilhantes ocupações.

São também feitos de dezenas de inválidos, de tetraplégicos, por terem caído de altas torres de construção deste mundo, sem falar de centenas que já morreram - como o Engenheiro Químico Nelson Semedo, que com mais de vinte anos de formação, morreu ano passado em França, por ter caído de um prédio onde era um simples servente de obra – sem nunca poderem contribuir para o futuro e grandeza deste país. Por incúria, inaptidão, falta de carácter, incompetência, banditismo, nepotismo e mais grave de tudo a ausência total de patriotismo de muita gente que dirigiu este pobre País, nestes longos Trinta e Sete Anos. Mas eu falo do “meu” Nelson Semedo, com quem um dia dividi quarto em Moscovo na Volguina (Instituto de Petróleo e Química), com quem passei noites a discutir a nossa terra e o seu futuro. Com quem deambulei pela neve de Dezembro esperando o Ano Novo, e que vinte anos depois me veio visitar, um ano antes de morrer.

Peço a Deus que no Além encontre o caminho para casa, que não encontrou em vida; para aquela casa que é a nossa terra; para aquela casa que é o nosso povo. Onde nunca conseguiu voltar para dignamente trabalhar e ter um futuro decente. Por culpa de quem? Pergunto outra vez, para os menos atentos: Por culpa de quem? De que? De que maldição? De que irresponsáveis? De que seres que não sentem a dor e o sofrimento do seu próprio Povo? Mas o meu sofrimento não é maior que o vosso, pois se eu tenho o “meu” Nelson, cada um de vocês tem também o seu Nelson, em forma de um irmão, de um amigo, de um pai, de um filho ou simplesmente na pessoa de um outro Guineense como vocês. É por todos os nossos Nelsons que nos contemplam da terra dos mortos, que devíamos ter vergonha na cara e deixar de ser bestas para sermos finalmente seres humanos.

 Mas se eu falo do meu Nelson, dos quadros, da nossa elite, perdida pelos quatro cantos do mundo, quem falará de dezenas de humildes Guineenses por quem ninguém nunca se interessou, desconhecidos da maioria de nós, que vieram das profundezas das suas tabancas, sintchans, madinas, moranças para povoar este mundo e serem hoje detentores autodidatas de conhecimentos e educação esmerada. Quem dirá uma palavra dessas dezenas de fulas, mandingas, papeis, beafadas, manjacos, etc, nossos conterrâneos que morreram a construir a sede da Caixa Geral dos Depósitos em Lisboa (só para dar um exemplo), e em dezenas de construções similares por esta Europa fora? Na construção de pontes e viadutos que os Europeus atravessam todos os dias, indiferentes a essas vidas, sem uma placa que seja a testemunhar a sua perda.

Estas mortes (e todas as outras) devem ser redimidas e a sua remissão só é possível com o cumprir da Promessa. Se os seus filhos vierem a ter por fim, um dia, uma Pátria da qual se orgulham. Nesse dia eles saberão e nós saberemos, que não morreram em vão. E encontrarão juntamente com os nossos Nelsons o caminho para casa. Esta casa que é a Pátria Imortal.

Termino jurando-vos que os Guineenses de hoje, são gente que faz jus a frase de António A. Monteiro: A maior riqueza de um país são as reservas de inteligência existentes nas amplas camadas populares, que só podem revelar-se numa atmosfera de Progresso”.

O potencial existe a espera de ser revelado e usado; mas qual as nossas mangas “saralhon”, se as deixarmos durante muito tempo sem uso, apodrecem; e nos criminosamente já deixamos sem uso tanto saber, tanta ciência acumulada pelos Guineenses, milhões de horas de estudo, de preparação e de expectativa de fazer algo pelo seu País. E só esperam essa “atmosfera de Progresso” para se revelarem, para fazerem da Guiné um exemplo para África em meia dúzia de anos.

 

 

V

 

RIO GRANDE DE BUBA OU

OS SONHOS PERDIDOS DOS QUADROS GUINEENSES

Não existe pátria para quem desespera (…) Eis porque sofro, de olhos secos, este exílio. Espero ainda. Um dia chega, enfim... "

Albert Camus

 

A Guerra de 1998 começou inopinadamente num fim-de-semana, esse sábado estava eu na zona de “Chapa Bissau” na discoteca “Cabana” quando por volta das três da manhã começaram a se ouvir os primeiros disparos. Fui para casa onde cheguei por volta das quatro. Quase não dormi, preocupadíssimo. Tinha que preparar um ZOOP (seminário em siglas alemães) sobre a Habitação, segunda-feira tinha que ir a Quinara fazer pagamentos dos guardas, cozinheira e varias pessoas afectas ao Núcleo Regional do Projecto. E estava a preparar a minha candidatura a um Doutoramento em Urbanismo na U.S.P., no Brasil, que pretendia começar em Fevereiro de 1999. E de repente a vida inteira desapareceu. Todos os planos foram por água abaixo.

Mas uma vez, antes de falecer, a Maria Camará veio a Portugal em tratamento e veio me ver pela última vez (conhecia onde eu trabalhava de outra ocasião em que nos tínhamos cruzado). Devo dizer que nessa altura Ansumane Mané já tinha sido assassinado. Ela estava nesse dia acompanhada da viúva de Ansumane Mané que me apresentou. Como cavaleiro que sou, convidei-as para tomarmos qualquer coisa, num pequeno Café aqui da zona onde vivia. E acabamos por recordar os últimos dias da República, da paz podre dessas últimas quatro semanas antes do Conflito. Lamentamos toda uma época “que o vento levou” das nossas vidas. Deploramos tudo que perdemos e tudo que foi destruído por nada. O sofrimento irracional a que foi submetido todo este povo. E como não podia deixar de ser lembramos dessa já longínqua tarde em que Ansumane foi a casa dela desabafar e saber o que ela pensava. Recordando, lhe disse, que por um triz não abri a porta da casa de banho para dar porrada e por o Brigadeiro na rua (claro que eu não sabia ainda quem estava na sala a gritar, mas tinha o dever de lhe defender, defender a mulher que estava a ser agredida na sua casa). Ela deu uma gargalhada espontânea e continuou a rir até quase chorar; ria com aquele riso miudinho dela, fechando os olhos completamente; e ainda rindo, quase com as lágrimas a saíram pelos olhos, por fim, quando pôde falar, com um carrinho imenso, me disse:

- bu ka sibi que ku na otchou ba! - Se AnsuMané sibi kuma bu na obi ba quê qui na fala… bu na matil ba… - talvez bu ka sinta ba li cu mi és hora, o nin bu ca staba bibo

É-so-hora… (nem imaginas o que te aconteceria! – Se Ansumané soubesse que estavas a ouvir o que dizia nesse momento… ias te arrepender amargamente… - talvez não estarias aqui sentado comigo neste momento ou nem estavas vivo neste momento…)

Também ri e respondi que nada iria me acontecer, pois se eu falasse cinco minutos com o Brigadeiro ele ia passar a ser meu fã e não teria havido o turubã de Junho de 1998… Estava a brincar claro e ela também, pois sempre simpatizou comigo, sendo na altura que me conheceu, amigo de uma grande amiga dela, logo teve estima por mim. E foi recíproco pois sempre lhe estimei. Eu na verdade, não consigo deixar de estimar gente assim.

Foi a última vez que vi a Maria Camará viva (acho que nessa altura ela já sabia que tinha pouco tempo de vida); que Deus a tenha em sua infinita glória.

Dói-me saber que tanta gente boa como ela, tantos quadros, já desapareceram do nosso convívio e que a vida deles foi criminosamente desperdiçada, pois numa Nação normal, teria sido diferente e as suas vidas e contribuições teriam sido profícuas. E deixariam algo as gerações vindouras que por sua vez as multiplicariam. É assim que se constrói uma Nação, pouco a pouco, passo a passo, mas realisticamente, usando as experiencias acumuladas, que quantitativamente que sejam terão a sua transformação qualitativa no futuro.

Depois da Maria Camará e a viúva de Ansumané Mané terem partido, fiquei ali sentado, sozinho, nesse Café durante longo tempo a recordar cada momento que foi a minha (nossa) vida desde o deflagrar do Conflito de 1998 até a nossa chegada a Portugal, passando por Dakar. São todas essas recordações desse dia, que sem querer me fizeram nascer “uma lágrima no canto do olho”, que agora transcrevo para vós.

 Mas aqui tenho que abrir um parêntese e para dizer que para falar da nossa Pátria e do nosso Povo tenho que socorrer-me das minhas memórias, que por serem “as minhas” me obrigam a estar presente nestes relatos como um dos protagonistas. Por isso peço desculpas, mas só posso contar o que vivi e assisti (e o que me contaram ou tive sorte de saber). Acreditem que preferia não estar presente, pois não tenho mais direito de estar e de ser do que qualquer um de vós que me lê. Mas como sei que também estiveram … noutros sítios - noutras circunstâncias é verdade - mas estiveram… escrevo tranquilamente, esperando que tenha alguma utilidade, nem que seja apenas para os nossos vindouros.

Mas antes de avançar quero vós dizer (para uma melhor compreensão do resto do texto) que algum tempo antes do inicio da Guerra de 1998, tinha ido a Buba no quadro das minhas actividades profissionais. Foi a última vez que vi o Rio Grande, lembro-me de ter falado com o Baio, condutor do Projecto que me trouxe para Bissau, sobre tentar começar a construir a minha futura casa ali. Já tinha um terreno que tinha legalizado oficialmente na Delegacia Regional, num dos lotes da última urbanização que tínhamos feito para a vila de Buba. Ela ficava ao pé do Rio Grande e podia-se ouvir o murmurar das suas águas durante todo o dia, na sinfonia mais bela da Criação. Naquela altura o meu sonho maior era fazer uma vivenda em Buba, vila para onde, um dia quando fosse velho, queria retirar-me e passar a minha velhice. Nada nesse meu paraíso pressagiava o que iria acontecer dentro de tão pouco tempo. Estava já a conseguir estruturar pouco a pouco a minha vida, a recuperar do casamento acabado e a tentar arranjar maneira de encontrar e reunir-me por fim a minha filha.

Devo salientar que desde o primeiro dia que cheguei a Buba - para resolver o problema pontual (como se dizia) da chuva que caía dentro do mercado municipal molhando os vendedores - apaixonei-me por essa Região, que nos “estudos sobre o desenvolvimento” era considerado o mais pobre do País. Adorava o Rio Grande, a lagoa de Cufada, a vila de Buba, pequenas vilas como Empada, Tite, Fulacunda, tabancas pequenas como Banta, sem esquecer as da região vizinha como a vila de Catio, Djabada Porto, etc., etc.

E não me cansava de andar toda essa região, de dia ou de noite (viajar a noite é mais fresco e permite pensar mais profundamente) atravessar em São João até Bolama de canoa, para sentar na sua praça deserta e imaginar o fervilhar de vida que era essa cidade na altura que era a Capital da Guiné. Vim trabalhar três anos nessa região e já me sentia melhor ali do que em Bissau. Por fim tinha ido a “tabanca” dos meus sonhos juvenis. Não me cansava de subir e descer o Rio Grande sempre que pudesse, e andar de carro todos os dias nas suas sinuosas margens, para que pudesse fazer fiscalização e as vezes a entrega das pequenas obras como postos sanitários, escolas, fontenários e outros em várias localidades nos confins da Guiné profunda.

Uma vez descendo o Rio Grande de Buba encontrei-me de repente em frente das muralhas da mítica Bambaia; O sol poente fazia essas muralhas centenárias brilharem na sua plenitude e criar em nós aquele sentimento de pertença que se confunde com a própria existência.

Já quase sabia de cor os nomes de cada tabanca e sintchans. E a gratidão imensa que encontrávamos nos olhos desse povo simples era a maior paga que um jovem técnico, como eu na altura, poderia ter na vida. Guardo ainda religiosamente as poucas fotos (com a população) desse tempo.

Hoje, volvidos tantos anos, posso dizer com toda a propriedade que foram dos melhores da minha vida. Quando obrigado pela Guerra, tive que ir para Portugal, só levei meu portátil, uma calça e uma camisa, mas as fotos vieram comigo, pois instintivamente não queria separar-me dessa parte da minha existência; e as fotos, de certa Maneira, me ajudariam a não esquecer no estrangeiro.

Mas do Rio Grande de Buba, de Quinara, de seus habitantes, das suas tabancas, das suas chuvas torrenciais, das suas tradições, que me são tão caras, falarei um dia especialmente. Pois lá aprendi que quando Deus fez o mundo, o fez exactamente como eram essas florestas e essas tabancas por onde passava todos os dias, velozmente, procurando uma sabedoria que estava ali mesmo a mão de semear. Quando o Criador fez os homens, os primeiros homens eram iguais a esses, com quem eu falava através dos meus companheiros e condutores; só ali pude ser na verdade aquilo que sou e saber quem sou na verdade; ali não “desejava ir a tabanca” da minha juventude, ali eu “estava na tabanca” no sentido real e figurado; e a tabanca era aquela caneca de água da fonte, que essa rapariga, a mando dos pais, me oferecia com toda a naturalidade, da porta da sua cubata, como se eu fosse um seu irmão.

Naquela altura era o Coordenador Regional do Ministério das Obras Publicas, com responsabilidade de coordenar a implantação das três Delegacias Regionais do Ministério. Uma era em Buba e cobria a Região Sul. Outra era em Gabu e cobria a Região Leste. A terceira e mais recente em Bissorã e deveria cobrir todo o Norte do País. A minha função era coordenar a sua implantação formal e efectiva de forma que no futuro vir a ser descentralizado o trabalho urbanístico e habitacional da sede nacional das Obras Publicas em Bissau e dar competências as regiões (através das Delegacias) para realizarem os seus Planos Directores (urbanísticos e de pormenor), para que o processo de licenciamento de construção fosse mais lesto, com menos burocracia. E assim eu estava directamente envolvido na execução de planos locais tanto em Gabu, Bafata como na Região de Quinara.

Mas como dizia, no meio desse ano de 1998, estava a ver se de alguma maneira podia começar as obras no meu terreno de Buba, onde julgava que seria feliz finalmente. (Falando desse terreno, hoje já não o tenho. Ouvi dizer que tiraram-mo - claro esta para dar a alguém melhor que eu - esquecendo todo o trabalho que lá fiz durante anos. Mas a nossa terra ainda é assim - já agora também tiraram-me o meu terreno em Bissau – também como sempre para dar a outro melhor -, mas disso falarei noutra altura com todas as letras, mas por agora esqueçamos as tristezas pessoais e debrucemos sobre as comuns.

 Lembrei me deste episodio da minha vida porque o sentimento de “deja vu” que se apoderou de mim na altura da revolta, no dia em que cruzei com a Liberdade e atravessei o Pilum tarde da noite, voltou hoje para de novo me levar a esse tempo. Pois o tempo de hoje é ainda o tempo de ontem. O tempo de ferro e fogo; mas mais do que isso, a comparação se impunha pois aqueles sucessos, aquela revolta nefasta, foi o corolário de um viver indigno. Esse “modus vivendi” era errado, demagógico, irresponsável, atrasado e pífio; e só podia terminar assim num inferno de ferro e fogo.

E lembrei-me de todas as advertências que eu e muitos tínhamos feito; dos artigos críticos que tinha escrito e publicado sobre a situação do pais, tanto no Nô Pintcha como no Diário de Bissau, alertando para uma explosão eminente, alertando para o facto de não se puder viver na opulência, no roubo, no nepotismo, esbanjando, enquanto outros sofriam diariamente na pele as agruras de uma desgovernação que pouco a pouco nos arrastava para o abismo. Mas quem ligava essas coisas? A “literatura” nunca foi coisa de valor para os nossos dirigentes, diga-se de passagem, e ainda menos o jornalismo de intervenção. Com a Guerra e assalto a minha residência, perdi tudo que tinha, mas o que mais me doe, é ter perdido todos os jornais onde os meus artigos desse tempo vinham publicados; e tenho uma pena imensa pois gostaria de lembrar como os escrevera. Lembro-me especialmente de um, quando prenderam o Luís Nancassa, na altura Presidente da Associação Nacional dos Professores. Eu não o conhecia e nem conhecia bem os fundamentos da sua Luta pelos professores, mas tive que fazer um artigo contundente exigindo a sua libertação imediata. Uma semana depois, ele apareceu no meu Gabinete nas Obras Publicas perguntando “quem era o “Arquitecto Fernando”, para me agradecer o artigo e me contar que o leu na prisão. Lembro-me de o ter dito que apenas cumpri o meu dever de cidadão, mas ele entendeu que fiz um pouco mais e me agradeceu profundamente. Fiquei comovido, pois se em algum momento tivesse tido dúvidas sobre escrever ou não, naquele momento percebi que tinha feito a coisa certa mesmo pondo em risco a mim mesmo. Hoje tenho pena de não ter podido fazer mais, pois se cada um de nós tivesse feito um pouco mais, quem sabe estaria a escrever não isto, mas um romance de amor, uma monografia sobre as vilas e tabancas de Quinara, ouvindo o suave murmúrio do Rio Grande de Buba, entrando pela janela da minha sonhada vivenda.

Esta parte pessoal, que inseri aqui, podia ser a história de um qualquer outro técnico como eu naquela altura. Porque os outros técnicos (com quem trocava impressões amiúde) tinham sonhos mais ou menos idênticos aos meus: Construir uma casa, casar, criar filhos, etc. em suma o normal num ser humano normal. Por isso falo da minha história - que conheço melhor - mas no fundo falo de todos os outros quadros iguais a mim nessa altura. Esta é também a história deles. Tinha um amigo que era engenheiro naval com quem estudei no Ciclo e Liceu e que estava em Bissau a tentar implantar um projecto na sua área. Ele tinha um bom trabalho em Lisboa mas decidiu ir viver na Guiné e desenvolver uma actividade privada na sua área em prol do desenvolvimento do País. Nos primeiros dias de Bombardeamentos, com Bissau a ferro e fogo, projecteis caindo por tudo que é lado, fui visita-lo, pois segundo a cunhada, ele recusava-se a sair de casa. Disse-me que não era o medo da morte que o impedia de sair, mas o medo de ficar inutilizado por qualquer projéctil, por uma bala perdida… este quadro e todo o seu drama ficou na minha mente, pois ele era apenas um entre centenas de outros como ele. Ele teve que fugir depois com a esposa e filho num barco de guerra senegalês juntamente comigo e tantos outros quadros que abandonavam toda uma vida reduzido a nada, num fim-de-semana. Ninguém derramou uma lágrima por eles, nem lhes ofereceu uma cerveja no “ilheu de Mancebus”, pois nesses dias “Nó Djunguto” estava fechado pela primeira vez desde o dia da sua fundação. Mas entendo que na vergonhosa luta pelo poder os interesses da nação são sempre os últimos.

Não por acaso, viajamos no mesmo barco, com este quadro e sua família; num barco cheio de caixões de militares senegaleses, no início não sabíamos que havia corpos no barco. E eu fiz dezenas de fotos desta odisseia para um dia poder contar ao mundo o que aconteceu connosco se por algum azar não tivéssemos sobrevivido. Por volta das quatro da manhã, com a maior parte das pessoas dormindo, cansadas e com fome e sede, aproximamo-nos da costa Senegalesa de onde veio ao nosso encontro outro barco: esse acostou-se e durante quase uma hora e meia os caixões foram passados do nosso para aquele que pouco tempo depois desapareceu nas brumas. Isso era um segredo de Estado. Quando tentei fotografar um oficial aproximou-se e mandou-me sair da coberta. Esses rapazes senegaleses morreram por nada, numa guerra que não era deles. Ao ver os caixões deles lembrei de uma noite ter trocado meia dúzia de palavras com eles. No auge do conflito, com o bombardeamento indiscriminado da Junta, acabei dormindo na casa um actual deputado da Nação (nessa noite também estava lá um actual Ministro da Nação) e alguns desses soldados senegaleses, colocados na zona, vieram pedir agua; e nas poucas palavras que trocamos num francês menos que sofrível da parte deles, apercebi-me que não tinham, mínima ideia acerca do nosso País e nem dos porquês do conflito e que também não estavam dispostos a sacrificar-se pela clique dirigente de Bissau. E também percebi que não estavam imbuídos de nenhuma ideologia de base sobre a Guerra que vinham travar, que podia custar as suas próprias vidas - Nesse barco estivemos mais de 24 horas num mar tempestuoso sem comida nem água, antes de finalmente aportarmos Dacar. Um dia escreverei sobre essa Odisseia, mas adiante, na Segunda Parte, falarei um pouco disso. Além de que espero que isto servirá para fazer alguma luz a esse período da nossa história e mostrar como as pessoas viviam e quais eram os seus sonhos, coisa que nunca vi escrita por ninguém; Pois para se entender a destruição social e material da Guerra é preciso saber de que se fala. Porque se há coisas passíveis de ser quantificadas, há outras que não. E os sonhos destruídos fazem parte destas últimas. Continuarei na Segunda Parte.

 

Atenciosamente

 

Arq. FERNANDO J. P. TEIXEIRA

 

 * Licenciado em Arquitectura (Rússia 1991). Pós graduado em Urbanismo (ISCTE)

 


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