Guiné-Bissau  -  Hospital Central das FARP
 

AUTOBIOGRAFIA

Elísio Bento de Carvalho

Dr. Elísio Bento de Carvalho


1ª fase: O desmoronamento dos sonhos

Sábado, 23 de Janeiro de 1988, recebi um convite do Dr. Jacinto Bigna (falecido), na qualidade de Director, formado em 1986 pela Academia de Medicina Militar «S.M. Kirov», para ir visitar e conhecer o Hospital Central das FARP, a minha futura «casa».
Foi terrível esse momento, muito angustiante, ao constatar o estado de abandono do Hospital: lugar sujo, escuro, sem iluminação adequada, com um grande matagal à volta. Uns poucos doentes, menos de 10, desanimados, sem as mínimas condições que requer um internamento condigno. Havia várias enfermarias abandonadas. A capacidade de internamento era no máximo de 15-20 doentes.

Acho que fui invadido momentaneamente por uma forte sensação de desânimo, senti um nô na garganta.
O Sr. Director do Hospital deu-me então este grande conselho: que fôssemos, à semelhança dele, solicitar uma autorização para frequentarmos o Hospital Nacional Simão Mendes, para não perdermos a prática.
Grande conselho!

Perdi algum tempo (considero isso perda de tempo, tamanha era a desorganização) em conhecer o Estado-Maior da Amura.
Foi difícil de encontrar, ou melhor, de me apresentar ao Chefe do Departamento de Pessoal e Quadros, pois nunca estava no local de serviço, quiçá ocupado com outros serviços.

Depois de umas duas semanas, eis que finalmente na companhia de um outro colega, igualmente recém-formado, fomos recebidos pelo referido chefe.
Nessa altura, ambos recebemos as patentes de Tenente (categoria para todos os recém-formados em Academias Militares).
Alguns minutos depois, fui chamado de novo à presença do Chefe do Departamento de Pessoal e Quadros, que balbuciou algumas considerações, fui rebaixado de categoria, deram-me as patentes de Alferes.

Para dizer a verdade, isso não teve a menor importância para mim, pois eu considerava que o meu colega, primeiro, por ser mais velho de idade e, segundo, na qualidade de Combatente da Liberdade da Pátria, merecia com toda a naturalidade uma patente superior.

Eu era jovem nessa altura, com 28 anos de idade, tinha ainda muito tempo para mostrar em primeiro lugar o meu valor e depois, aspirar a voos mais altos em termos de patentes, quer dizer, subir gradualmente na hierarquia, conforme deve ser numas Forças Armadas organizadas.

Passado este episódio rocambolesco, e munidos das respectivas guias, fizemos questão de nos apresentarmos ao Responsável da Saúde.
Depois de muitas idas e vindas ao aquartelamento da Amura, sem sucesso pois a Chefe também estava sempre ausente em outros trabalhos, desisti e  dirigi-me ao Hospital para finalmente exercer medicina.

Fui recebido pelo Chefe da Administração dos Serviços de Saúde das FARP, na altura um civil, ex-grande jogador de futebol, que foi agraciado com esse emprego pelo próprio Presidente da República na altura, e então começou a luta.
O médico, Director do Hospital, nunca estava, pois repito mais uma vez, como esse lugar (o Hospital Central das FARP) não tinha condições para a prática da medicina, estava sempre no HNSM.

Quem dispunha e mandava no Hospital era o Chefe da Administração Central da Saúde, que curiosamente tinha aí a sua base, e não no Estado-Maior na Amura, onde ficava a própria Direcção do Serviço de Saúde das FARP, (assim devia ser em condições normais).

De longe, na Base Aérea, ele controlava tudo: géneros, dinheiro dos vivos e também dos falecidos, tudo mesmo.
Também controlava, mesmo sendo um simples administrativo, sem o mínimo conhecimento de enfermagem, quanto mais médico, os escassos medicamentos (comprimidos de Aspirina, Cloroquina, Brufen, Polivitaminas, Metronidazol, etc.), que existiam na Farmácia hospitalar.
Medicamentos sérios, de consumo hospitalar, esses nem sequer existiam, tal como a meu ver, até à data presente, esta categoria de medicamentos, que eu designo de «medicamentos à sério» não existem, nos vários estabelecimentos hospitalares do País, e tão-pouco nas farmácias da nossa terra (mas tratarei deste assunto de grandíssima importância mais à frente).

Esse local era, a meu ver, tudo menos Hospital, com autênticos festins, numa sala, que penso, que foi utilizada pelos portugueses como Bloco operatório, pois ainda lá  estavam mesas de operação, caixas com os mais diversos instrumentos de cirurgia, etc, etc.

Foi lá que aprendi a gostar de «mão de vaca», prato que eu detestava, pela sua viscosidade.
Eram excelentes os pratos que vinham do «Purto de Canúa».
E as bebidas então?!
Havia sempre, quase que diariamente, "comes-e-bebes" no 2º período do dia, depois da rotina habitual (consultas, curativo de algumas pequenas feridas, incisão de abcessos, eis então todo o volume do trabalho no Hospital).

Como era popular e temido, o enfermeiro responsável pela pequena cirurgia: rasgava tudo, sem se preocupar em utilizar anestésicos.
Até parecia um matadouro, com berros, choros.
Qualquer caso grave, devia ser evacuado para o HNSM, onde a meu ver, não existia nada de especial, nada que não pudesse ser feito no nosso Hospital, caso houvesse, antes de tudo uma boa organização. Era essa a minha opinião pessoal e a mantenho até hoje.

Entretanto as dificuldades começaram: o salário dos militares era miserável, pois o diploma não tinha valor nenhum.
Enquanto um médico civil tinha o salário de 90.000 pesos, eu como Alferes (não como médico) recebia cerca de 2.000 pesos (nem dava para comprar uma lata de cerveja, na altura).
Nas Forças Armadas de então, só os quadros do Tribunal Militar é que tinham conseguido (não sei como) a equiparação com os seus homólogos civis.

Pefine - 92

Nessa época, logo depois do regresso ao país residia no Bairro de Pefine, de onde saía a pé em direcção ao Hospital Central das Forças Armadas, logo cedinho de madrugada e, em sentido contrário, já noite dentro (22-23 horas), de volta a casa.
O salário nem chegava para pagar um bilhete do «Siló Diata» (ainda existiam carreiras de autocarros).
Os cobradores dos autocarros, nos dias de boa disposição, permitiam a 3 «fardados» que viajassem à borla.
O que não se ouvia... faltas de respeito, insinuações maldosas em relação aos militares.
E eu, com a minha pesada maleta de trabalho, cheia de medicamentos, preparado para o que desse e viesse, com os galões nos ombros, como não era homem para ouvir dos cobradores, decidi «boicotar o Siló».
Chegava a casa completamente destroçado, com os pés doridos.
E no dia seguinte tudo se repetia de novo.

A euforia com a minha chegada da ex-URSS, formado como médico militar, por parte dos meus familiares foi enorme.
Eu até escolhia o menu. Comia somente aquilo que eu gostava.
Até fui escolhido para ser padrinho de casamento de um familiar meu. Porém, esse desígnio não se concretizou porque eu não era nada, era um nulo, e com o aproximar da cerimónia de casamento, optou-se por um melhor padrinho, mais bem posicionado na vida.

Rapidamente o entusiasmo pelo sobrinho médico se esmoreceu, pois para além do Diploma de médico, não tinha nada.
Eu recebia tudo das pessoas, sem poder dar nada a ninguém, não tinha dinheiro. Era um empecilho.
Algumas pessoas já nem conseguiam disfarçar o incómodo que eu lhes causava.

 Isso começou a reflectir no meu dia a dia, por exemplo, já me davam para comer, exactamente aquilo que eu detestava (apesar dos meus gostos alimentares serem bem conhecidos nessa casa).
Uma vez, já bem de noite ao chegar cansado como de costume, depois de mais uma longa caminhada, vi a minha refeição tão mal tratada, descoberta, com baratas a passearem sobre ela, e então tomei mais uma daquelas minhas decisões, que voltou a ser determinante nessa fase da minha vida: silenciosamente, sem reclamar nada, arrumei os meus parcos haveres e me pus de novo a caminhar para a Base Aérea, aonde cheguei depois da 1 hora da madrugada.

Estava a começar uma nova vida.
Passei a habitar no meu gabinete de trabalho, dormindo numa marquesa (caminha estreita para a observação dos doentes).
Viver no Hospital permitiu-me uma maior aproximação aos doentes e conhecer melhor o local e os enfermeiros, detectar as insuficiências do estabelecimento em todos os sentidos.

Passo a relatar alguns episódios interessantes por que passei nesse novo período da minha vida.
Para já, tinha agora uma casa, por enquanto não havia nem cama, quanto mais lençóis, mas a marquesa resolvia o problema e os lençóis rotos destinados aos doentes davam jeito.
Quantas vezes, não caí para o chão, às vezes durante belos sonhos.
Lá me levantava, felizmente que a marquesa não era muito alta (uns 50 cm acima do chão), e por isso nunca me magoei a sério.
Às vezes ria-me de mim mesmo, às vezes chorava, pois não estava a entender nada. Pouco a pouco ia tomando conta da realidade da nossa terra, onde os valores eram outros, o diploma não tinha valor nenhum.

O meu pedido de residência dirigido ao Chefe da Logística na altura, solicitando autorização para ocupar um dos muitos bungalôs localizados junto à piscina (cheia de lixo) no QG (ex-quartel general colonial) foi despachado desta forma muito engraçada: “credo, até um Alferes ousa pedir casa. Não existem «mandjuros» (Majores) e "córneis" (Coronéis) para dar casa? Sai da minha frente”.

Tinha uma pessoa de família pertencente ao círculo do Presidente, que me quis levar à sua presença, pois ele já sabia que o parente médico-militar tinha chegado ao país, argumentado que isso era muito importante, era necessário ter um padrinho, para se poder avançar na vida.
Recusei categoricamente, alegando que eu não percebia nada de política e julgava que o «Prési» não sabia nada de medicina, portanto não tínhamos nada que falar.
Esse meu familiar ficou furiosíssimo com esta minha decisão.
Teve oportunidade mais tarde de se «xingar» de mim, quando eu lhe solicitei uma ajuda, no sentido de entregar uma carta ao Presidente, em que pedia autorização para um empréstimo bancário de 30.000.000 de pesos, para comprar uma carrinha para «Toca-Toca» (serviço público de transporte) para ajudar na vida.
Essa pessoa descompôs-me severamente, quis me fazer ver que o meu orgulho de nada me valeu, e eis-me a pedir a costumeira ajuda à moda guineense: eu estava a pedir um padrinho.

Revoltado, agradeci na mesma e retirei o meu pedido de ajuda.
De qualquer maneira, pessoalmente entreguei a minha carta na Secretaria da Presidência, que foi despachada da seguinte maneira: atender conforme a disponibilidade. Depois, vinha a «2ª assinatura» (conforme se dizia nos bastidores) do Presidente, o que significava na realidade, não atender, não dar o dinheiro.
Fiquei a saber que havia uma outra forma de despacho ou de assinatura (a 1ª) que abria todos os cofres dos Bancos do país.

Fartei-me (depois de obtidas todas as Certidões de Quitação e demais documentos exigidos) de frequentar os balcões do Banco de Crédito, descartando todas as possibilidades de compromissos duvidosos, que supostamente me poderiam ajudar a alcançar o almejado empréstimo. Vi como muitas pessoas conseguiram empréstimos, que jamais vieram a pagar.

Como sair da difícil situação em que estava a viver?
Com ajuda de alguns novos conhecidos comecei a planear a minha fuga do país. No dia aprazado, pesou-me a consciência: eu estava a desertar das FARP, um dos grandes amores da minha vida.
Não, não faria isso jamais. Quando me integrei nas fileiras das FARP não havia ainda o Recrutamento regular de jovens mancebos, o partido mandava e as pessoas obedeciam. Eu beneficiei da bolsa militar, enquanto professor da Escola Piloto.
Acho que me apaixonei pelas FARP quando vi pela primeira vez os nossos militares a marcharem, salvo erro, por ocasião das festividades de um dos Congresso do PAIGC.

Eis que chegou outro momento de decidir.
Que fazer, desta vez?
Concluí que era necessário apenas fazer uma coisa: trabalhar, trabalhar, trabalhar, estudar, estudar e estudar.

Comecei por pegar numa enxada e iniciar a limpeza do espesso matagal à volta do Hospital, matar os ratos e as cobras, que regularmente invadiam as nossas enfermarias. Quantos desses bichos não liquidamos dentro das enfermarias? Com os ratos não acabamos, mas as cobras foram aniquiladas completamente.

Recordo-me das palavras de um “cansado” e desanimado enfermeiro, quando depois das consultas, sem comer nada, me pus a capinar, podar as plantas, caiar pela primeira vez as paredes descoloradas do Hospital: Ah, médico recém-formado, estás ainda com muitas forças. Em breve desistirás, isto é que é a Guiné-Bissau.


Mas não desisti. Foi nessa altura que conheci uma pessoa, que até à data em que escrevo estas linhas é um dos grandes e fiéis amigos (pois muitos pseudo amigos me abandonaram nas várias «travessias do deserto» que fiz ao longo deste meio século da minha existência).
Ele se apresentou da seguinte forma: “boa tarde, é o nosso novo médico? Chamo-me Bucar Dafé, sou piloto-aviador, posso ajudar-te?”.

E como me ajudou! Nessa mesma tarde foi agredido verbal e fisicamente por alguns colegas, por estar a «adular» um “burmédjo”, que está à procura de galões.
Essa amizade da qual muito me orgulho, com o eterno major, tal como eu, Bucar Dafé perdura até aos dias de hoje.


HMP - 94


As melhorias no Hospital eram já visíveis e comentadas em diversos círculos da nossa sociedade.
Nada de especial, estava-se apenas a concretizar na prática os ensinamentos de um velho cirurgião russo, do século XIX, de nome N.I. Piragov, que adaptado à nossa realidade podia significar o seguinte: «É uma boa organização que resolve os problemas».
Até hoje me oriento por estas sábias palavras na minha vida.

Foi também nesse ambiente de trabalho físico duro, que finalmente conheci uma maravilhosa pessoa, que teve e continua a ter uma grande influência na minha vida em todos os sentidos, pessoal e profissionalmente. A própria Responsável da Saúde Militar, a Sra. Ten/Cel. Arlette Cabral, sobre a qual falarei mais adiante.

O sucesso do Hospital espicaçou a noção de responsabilidade do desaparecido Director do Hospital, que finalmente se dignou a aparecer.

Esse sítio que eu, mais tarde, no meu pedido de demissão dirigido ao CEMGFA, Brigadeiro Ansumane Mané  descrevia como um antro escuro de sujidade, com cobras e outros repteis como pacientes na maioria do tempo, estava transformado no lugar aprazível, bem iluminado (parecido inicialmente com um estádio de Futebol e depois com o Aeroporto de Bissau, palavras do antigo comandante da Base Aérea, na época prisioneiro em Carache, Lamine Cissé).

 

O Sr. Director do Hospital resolvido a mostrar quem mandava, mandou-me desocupar imediatamente o meu gabinete-casa, pois entendia que eu estava a sujá-lo com potes de flores (munidos dos respectivos reservatórios para a recolha da água que escorria pelos orifícios no fundo dos potes).
Vejam só, vasos de flores a sujar.
As cortinas nas janelas estavam a tapar a luz do sol, etc., etc.



Eu não abandonei apenas o meu gabinete-residência.
Saí simplesmente do Hospital e fui viver com a família finalmente reunida, para o Bº de Ajuda, num quarto gentilmente cedido pela Sra. D. Inácia Spencer, paciente do Hospital que ao recuperar de uma grave enfermidade, reparou que eu estava sempre presente, ao lado dela, nas mais variadas horas do dia e da noite.
Perguntou porque estava sempre no Hospital e eu respondi simplesmente que vivia mesmo lá.
Então a Sra. Inácia Spencer ordenou que me fosse cedido um quarto em sua casa no Bº de Ajuda, onde viviam as suas irmãs D. Libânia e a falecida grande amiga minha, Helena Spencer.

Eis que tenho finalmente uma residência, um quarto, onde toda a família passou a viver.

De modo quando o Sr. Director me expulsou do meu gabinete/residência, tive para onde ir viver.
Nessa altura, a casa do meu pai, entretanto com toda a família emigrada em Portugal, estava entregue a um senhor, dito seu amigo, que a mantinha sub-alugada a empregados (cooperantes) europeus da sua empresa.

Era um bom negócio, pois a renda era então paga em moeda estrangeira (escudos, dólares, etc.). Dava bons lucros!
Não sei como foi feito esse acordo com o meu pai. A única certeza que tenho, é que passado cerca de um ano após o meu regresso ao país, isto é, em 1989, aconselhado pela tia Balbina, minha madrinha e irmã mais velha do meu pai, enderecei-lhe uma carta reconciliadora, reconhecendo que talvez tivesse exagerado na decisão de romper com ele em 1980.
De pronto me respondeu, sem quaisquer ressentimentos (ele era bom, mas tinha medo de me manifestar o seu amor), enviando-me ajuda financeira e uma carta para reclamar a posse da casa de família, no Bº de Ajuda, 1ª fase.


Eis que abro mais uma outra frente de luta.
Depois de múltiplas tentativas de resolver pacificamente o assunto, tive que apresentar queixa junto às autoridades judiciais militares.
Esse senhor foi convocado à Amura, onde disse que havia um acordo com o meu pai, que o autorizava a ficar com a casa por mais 15 anos, e que de nada valia a carta paterna que me proclamava como novo proprietário.
Perante o Promotor de Justiça Militar, pu-lo ao corrente da minha miserável situação, ao que respondeu que não lhe importava nada.
Perguntei a esse venerável velhote, de barbas e cabelos brancos, o que faria, caso fosse o seu filho (por sinal, meu colega de infância, nosso guarda-redes) a estar na minha situação? A resposta foi igualmente dura, que isso não era da sua conta, o seu filho estava muito bem instalado.
Esse tal senhor na altura era director de uma empresa pública e, ao mesmo tempo, Conselheiro Regional.
Era portanto uma importante figura pública, podia fazer e desfazer conforme entendesse (suas expressões ameaçadoras, caíram em «saco roto». Por sinal, não me assustou).

Tentei inutilmente durante muitas semanas, conseguir uma audiência junto ao Ministro da Defesa, Iafai Camará para pedir ajuda.
Punha-me de manhã e à tarde, junto ao seu gabinete, vendo entretanto outras pessoas, inclusive civis, a serem recebidas.
Às vezes fazia-me acompanhar do Promotor do Tribunal Militar, outras vezes, lá estava eu, sozinho à porta do Ministro, que nem uma sentinela, sempre desprezado.
Em cena, entrou então uma pessoa que muito influenciou a minha carreira e vida, sempre com bons conselhos, tornando-se até hoje, num dos oficiais que me merece a mais alta consideração e respeito.
Não era apenas o meu superior hierárquico, mas também um irmão mais velho e um amigo. Falo do Coronel Afonso Té, actualmente num injusto e mesquinho exílio (que contribuição não poderia dar às nossas FARP?!).


Ele, lá do outro lado da parada da Amura, onde ficava a sua Direcção de Pessoal e Quadros, acompanhava as minhas idas e vindas diárias.
Então um dia mandou-me chamar à sua presença, saudando-me efusivamente, como mais um novo quadro militar e quis saber a razão da constante presença no EMGFA.
Expliquei-lhe o assunto, e quis saber quem ocupava a casa nessa altura.
Dei-lhe a conhecer que os cooperantes portugueses, que lá viviam, tinham ido de férias ao seu país.
Eu sabia disso, porque rondava diariamente a casa, grande, confortável (eu a conhecia muito bem) e sonhava, pois é, sonhava com o dia em que ela se tornaria minha por direito.

Então, o Coronel Afonso Té, ordenou-me que arrombasse as portas e entrasse na casa.
Eu respondi-lhe que já tinha considerado essa hipótese, tal era o meu desespero, mas fui ameaçado pelo Procurador-Geral da República, o falecido Dr. Medina, de que seria imediatamente preso caso actuasse dessa forma.
Outra solução? Não fazia ideia.
Também falei com o Sr. Director da PJ na época, Morgado Tavares, que foi muito mais simpático comigo, afirmando que não tinha nada a ver com os militares.

Eu estava decidido: ou a casa seria minha, ou de mais ninguém.
Eu a queimaria.

Incentivado pelo Coronel Afonso Té, apoiado pelo nosso saudoso Comandante da Marinha de Guerra Nacional, Capitão de Mar e Guerra Feliciano Gomes e também por muitos colegas, simples soldados e antigos amigos de infância do Bairro, entre os quais destaco o falecido Rucas Sanches, organizamos a «invasão».

Não foi necessário esse «ataque à militar».
O Rucas que estava sempre de vigia à casa, num belo dia, descobriu que um pedreiro de nome Carlos Cubúmba possuía as chaves da casa, onde estava a fazer algumas reparações.
Espiámos o tio Carlos, homem já de certa idade, e assim que meteu as chaves na fechadura, e foi à casa vizinha tomar o seu copinho de «cana» (aguardente), avancei e tomei-as.
Quando o tio Carlos se aproximou, assustado por me ver fardado, informei-lhe com todo o respeito, que eu era o filho do proprietário e que a partir desse momento a casa era minha.
Ele disse que já tinha ouvido lá na Empresa rumores sobre o assunto, pediu-me autorização, de pronto concedida, para retirar as suas coisas, e aproveitou para telefonar ao Sr. usurpador de bens alheios com informações sobre a situação.

Da Marinha, de pronto veio um camião militar com soldados, que ajudaram na mudança para a minha nova residência.
Por volta das 16:00 horas, como a notícia bombástica já circulava por Bissau, o PGR, Dr. Medina, passou por lá e me viu sentado  no muro.
Disse-lhe: Dr. já tomei a minha casa.
Abanou tristemente a cabeça, ele que era até um familiar indirecto e afastou-se.

Quem era eu, para ser ajudado? Eles se ajudavam entre si, eles os tubarões que destruíram e destroem tudo e todos.
Os inimigos adoptaram nova técnica de abordagem: queixa ao CEMGFA, na época o querido e saudoso Tchútcho Bchútandé.


Dois dias depois da «invasão», à hora do almoço, o meu amigo e irmão Bucar Dafé telefonou-me avisando que era exigida a minha presença na Amura às 15:00.
Cheio de medo na hora indicada, lá estava eu no Quartel.
Por coincidência mesmo no portão principal, deparei-me com o CEMGFA, a fazer seu passeio de digestão que me disse: “Dr. espere-me lá em cima”.
O meu medo aumentou, pois naquela época, ser chamado à presença do CEMGFA, significava coisa séria.
Eu cogitava sobre os possíveis motivos dessa convocatória.



Meia-hora depois, o CEMGFA, lá se aproximou, eu quase a tremer, saudou-me admirado por não ter entrado e sentado lá dentro do seu gabinete.
Não tinha autorização para tal, foi a minha resposta.
Convidou-me a entrar, e sem rodeios, quis saber qual o conflito entre mim e o Sr. Usurpador da casa.
Muito rapidamente lhe expliquei tudo, e ele então disse:


“Ah, esse homem! Eu já lhe tinha avisado de que estava a «comer» rapidamente, e ainda por cima, com as 2 mãos. Ele é um burro, ladrão, quer pôr-me contra os meus soldados. Onde é que já se viu isso, eu estar contra um soldado meu? Vai lá rapaz, vá em paz”.

Houve mais um acto desse senhor, desta vez, numa Reunião dos Conselheiros Regionais, tentando recuperar a casa perdida a meu favor.
Mas foi prontamente silenciado pelo falecido Dr. Fidélis Cabral D`Almada, marido da Ten/Cor D. Arlette Cabral, minha superiora hierárquica directo.
Que alívio! Foi assim que fiquei na posse da casa familiar, sendo eu o único que resta no país.

Portanto, à minha expulsão do gabinete/residência, passei a residir no meu quartinho com a mulher e 2 filhos. A casa de banho era comum.
Fui muito bem tratado e respeitado durante a minha estadia nessa casa.

Passados alguns dias, recebi a visita do Coronel Malan Camará que lamentou o sucedido, a minha expulsão, da seguinte forma:
“ Não ligues, ele não tem noção de beleza”.
Porque recordo que o pretexto para a minha expulsão, era que estava a sujar o gabinete com os potes de flores.
E mais, a partir desse dia, eu era designado o novo Director do ainda Hospital Central das FARP. Hospital! Nem de longe!




 


Formação do HMP - Hospital Militar Principal

Conforme tinha dito anteriormente, o Hospital, o pessoal médico, os enfermeiros, os cozinheiros, serventes, lavadeiras, os géneros alimentícios, o dinheiro do fundo de maneio, tudo estava sob controlo do Chefe da Secretaria, o ex-jogador de futebol, colocado pelo PR como pessoal civil nas FARP.
Existiam e ainda existem muitos trabalhadores civis nas Forças Armadas, o que é perfeitamente normal.


Mas um Hospital, a meu ver, pode ser dirigido de um lado, por um Administrador ou Gestor, conhecedor da matéria de saúde, dos assuntos hospitalares, resumindo, uma pessoa capaz de sentir o «pulsar» da instituição, o que não era o caso. Mas a parte clínica (relacionada com os doentes) de um hospital deve ser dirigida, orientada por um médico.

Um hospital, quanto mais o chamado Hospital Central das FARP, é um lugar, diria eu, quase que sagrado, onde o objecto de trabalho é o ser humano, a vida humana, que deve ser respeitada, amada.
Os doentes devem ser encarados com muita responsabilidade. Deve-se lutar por um doente até o fim.
Não se deve condenar antecipadamente um doente. Um hospital, não é um matadouro.


Iniciei timidamente as minhas funções como Director, inexperiente que era, mas com sólida formação médica, da qual me orgulho.
E o meu lugar de trabalho, era um Hospital.
Seria como um peixe ainda novo (um tubarãozinho) na água, com grande margem de progressão, que poderia vir a transformar-se num feroz tubarão, como aliás se concretizou. Não detinha na realidade, poderes nenhuns.

Foi nessa altura que o Coronel Afonso Té esteve internado no Hospital.
Uma vez restabelecido, quis saber das minhas actividades.
Expus-lhe toda a situação vigente, ao que me disse o seguinte: “ Elísio, és tu o chefe, tens de assumir corajosamente as tuas responsabilidades. Imagina só um dia, se o PR vos visitar, mesmo não tendo culpas nenhumas do estado das coisas neste estabelecimento hospitalar, serás apontado como um incompetente”.

O Afonso Té, bravo que era, passou das palavras à acção, responsabilizando os «Caciques» da indecência existente, e foi nesse mesmo dia que houve um grande trabalho de limpeza do Hospital.
Era engraçado ver algumas pessoas a fingirem que contribuíam no trabalho, a esfregarem portas e janelas, as paredes, etc.

Depois desse dia tudo mudou. Foi o «empurrão» de que eu necessitava.

Nunca mais voltei a ter medo de quem quer que fosse.
Exigi que o pessoal afecto à Administração (note-se bem) do Serviço de Saúde, abandonasse o Hospital.
Lá devia ficar apenas a Secretaria do Hospital.


Depois de muitas lutas, consegui que o Hospital tomasse a sua autonomia administrativa e financeira.
Assumi o controlo administrativo, financeiro e logístico do Hospital e iniciámos a fase de afirmação da nossa unidade de saúde.

Fiz uma remodelação profunda da estrutura administrativa do hospital, por exemplo substituindo a eterna Enfermeira-Chefe, e diga-se de passagem, uma excelente profissional, com o curso geral de enfermagem (a única com esse nível de escolaridade entre todo pessoal), mas hesitante, acomodada, como os demais.

No seu lugar nomeei o recém-chegado do Batalhão de Gabú, já falecido, Sargento-Enfermeiro Auxiliar Iáia Bodjan, homem corajoso e decidido, que viria a transformar-se num curto espaço de tempo, no meu poderoso braço direito, o executor resoluto, implacável, das minhas decisões e ordens.
Pessoa formidável, militar, aliás, Combatente de Liberdade da Pátria, honesto, leal, e penso mesmo que insubstituível, jamais encontrarei um colaborador como o Iáia Bodjan.

Não obstante ser muito mais velho do que eu, ele obedecia e executava cegamente as minhas ordens.
Eu o considero como o «motor», a «máquina» incansável em todo o processo de afirmação do hospital.
Um hospital militar em qualquer parte do mundo é sempre uma referência no sistema de saúde, mas isso não se verificava e nem se verifica na Guiné.
Talvez agora, com a construção  de um Hospital Militar pelos chineses, o cenário mude. O futuro dirá.

Recordo aqui, a primeira e única vez, que o meu ajudante Iaia se recusou categoricamente a cumprir uma ordem minha.
Foi numa missão na fronteira norte, aquando de um curto, mas intenso conflito com o Senegal, país vizinho.
Como tínhamos planeado várias opções de evacuação dos prováveis feridos, sempre inevitáveis em combate, a Marinha de Guerra Nacional cedeu-nos uma vedeta inimiga capturada  nas águas de Varela.
Decidi ensaiar uma viagem de reconhecimento de São Domingos a Cacheu com a respectiva autorização do Chefe das operações no sector, o Coronel Sandji Fati.
Chegou a altura de escolher a tripulação, ou melhor, aqueles que participariam nessa viagem.
O critério era simples: só iria quem soubesse nadar.

Como o meu amigo Iáia não sabia nadar, informei-o, num tom sério, que ele ficava em terra.
Então, olhos nos olhos me disse: “ O quê? Doutor, um passo teu e logo a seguir, o meu passo”, quer dizer, ele nunca me deixaria sozinho em situação nenhuma.


Aliás era ele, franzino, quem carregava o meu armamento: as cartucheiras, a AK-M 47, e mesmo a pistola, porque muito rapidamente me cansei de trazer o cinturão.
Não estava habituado! Era pesado.
Eu só aguentava o peso do cantil e de um Kit de 1º socorros, levezinhos por sinal.
Ele, o Iáia, a par do seu equipamento regulamentar de combate, também carregava o meu.
Então tivemos de pedir ao Cabo-Mar de S. Domingos um colete salva-vidas para o meu inseparável companheiro.
Foi uma viagem inesquecível, de ida e volta, enfrentando uma forte tempestade, que silenciou a viagem a dada altura. Mas tudo correu bem.


Outra pessoa a quem presto aqui a minha homenagem é o falecido Abdú Sane, o escolhido por mim para ser o Chefe dos Serventes. Trabalhador incansável.

Também fiz mudança nos comandos da cozinha, da secretaria, em suma, criei uma forte e dinâmica EQUIPE, que realmente levantou bem alto o nome do «HOSPITAL MILITAR PRINCIPAL».


Esta nova designação foi proposta pelo Cor. Afonso Té, que já acreditava no nosso projecto de desenvolvimento do hospital, embora eu, pessoalmente pensasse que ainda faltava muita coisa, para poder «carregar» esse novo nome. Estávamos longe demais para se considerar que já tínhamos um hospital de verdade.
Enfermarias semi-vazias de pacientes, sem quaisquer meios técnicos (aparelhos), um laboratório para determinar apenas a gota espessa e hemoglobina, sem capacidade para realizar análises bioquímicas por exemplo, e uma pequena cirurgia.


Possuíamos 2 Blocos operatórios, que chegaram ao ponto de trabalhar em simultâneo.
Uma sala de partos, unidade de cuidados intensivos.
O Centro de Esterilização, então?!
Como foi tudo isso conseguido?
Graças a inúmeros apoios de muitos civis, das mais diversas franjas da sociedade.


Mas lá chegaremos.
Esse período áureo em que graças ao esforço árduo da nossa equipe de trabalho, e em que o Hospital Militar Principal ocupou um lugar de destaque no panorama médico nacional, durou apenas mais ou menos de 1989-1995, apenas uns escassos 6 anos, após o qual, eu, a minha equipe de trabalho, os meus amigos apoiantes (em termos de trabalho, é claro) fomos «bombardeados», de todos os lados.

Fomos honrados com o internamento do Sr. 1º Ministro nessa altura, o Eng. Carlos Correia.
O internamento do 1º Ministro suscitou o desagrado do Embaixador da China-Taiwan, que queria que ele fosse para o Hospital de Canchungo, que possuía instalações próprias para as altas chefias do país.
Mas o 1º Ministro agradeceu e ficou no nosso hospital.


O próprio Ministro da Defesa, o Cor. Arafam Mané, «N`Djamba» também se dignou a ser internado no HMP.
Era um sinal de confiança.

Eis então o nosso HMP, com muita fama, mas com nada em termos de equipamentos.


Depois de inúmeras reuniões, algumas com durações de até 2 dias, duras de conteúdo traiçoeiro, ouvindo todo o tipo de calúnias, intrigas, lá conseguimos que os funcionários afectos à Direcção Central da Saúde das FARP, fossem para a Amura e deixassem que o HMP funcionasse com a sua Administração.
Porquê tanta resistência por parte do chefe da secretaria?
Simples, deixava de ter controlo, sobretudo, da folha de salários dos enfermeiros, quer os vivos, quer os já falecidos, etc.
Deixaria de ter controlo sobre os géneros alimentícios, etc.
Na Amura, isso seria difícil, pois a Direcção da Saúde Militar, pertencia, era controlada pelo Departamento da Logística.


E nas funções de Director, nesta altura, assumi o controlo total do Hospital e pusemos mãos à obra. Reorganização total!

Aumentamos o número de camas para mais de 50, com o objectivo (atingido aquando da minha saída) de chegar às 100 camas.

Criámos as seguintes estruturas:

2 Blocos Operatórios;

Sala de Urgências;

Serviço de Radiologia, que durante muito tempo aguentou todo o país, pois não havia aparelho em parte nenhuma, estavam todos avariados;

Unidade dos Cuidados Intensivos, com monitores, desfribiladores, ventiladores, etc;


Maternidade, efusivamente saudada pela população dos bairros adjacentes com um dia de festa (com tambores, danças, etc.); Serviço de ambulância para as parturientes em caso de necessidade;

Fisioterapia;

Centro de Esterilização de materiais;

Estomatologia;

Lavandaria;

Núcleo para atendimento de doentes com Tuberculose, moradores dos bairros situados entre Safim e Brá.

Agora passo à descrição da maneira como tudo foi conseguido, sem qualquer ajuda material das FARP.

Mas antes quero deixar aqui o meu grande obrigado aos amigos da EAGB, (Electricidade e Águas da Guiné-Bissau).
Começo por prestar homenagem póstuma aos Eng. Alberto da Costa (Beto) e Faustino de Carvalho pelos serviços prestados em prol do desenvolvimento do HMP, tudo apenas em nome de amizade, em solidariedade a um colega e amigo da Ex-Escola Técnica de Bissau.


Não podia esquecer dentre o pessoal da EAGB, os ilustres Engenheiros Félix Diouf, Pedro Baptista (actual Director da empresa), o meu querido colega de infância Luís Teixeira, electricista formado na Escola Técnica, o electricista Celestino, o meu tio José Semedo, da Central Eléctrica de Bissau.
Peço desculpas se omiti algum nome.
Estas pessoas acima citadas, contribuíram para firmar o HMP. Resolveram o problema energético do hospital, recuperando as infra-estruturas eléctricas coloniais.


Grande foi a contribuição do meu amigo, irmão e conselheiro Amidu Silá, co-proprietário da Empresa SITEC, que dispensou os seus especialistas e meios técnicos para a resolução dos problemas relacionados com o equipamento electrónico.
O Amidu Silá ofereceu-me 2 aparelhos de vídeo «Philips», um projector «Sony», 2 UPS com baterias suplementares.
Estes equipamentos foram utilizados na projecção de filmes para os moradores dos arredores da Base Aérea, com o intuito de arranjar «fundos» para o Hospital.


Foi nessa senda de angariação de fundos que igualmente vendíamos «gelados» de cabaceira, veludo, etc., em dois termos adquiridos, nos estádios de futebol e nas paragens dos transportes públicos.

Destaco o contributo do meu tio Eugénio Semedo, vulgo «Djenco» conhecido e reconhecido mecânico de Bissau e da sua esposa Luísa Barbosa, que confeccionou as roupas para os nossos pacientes internados (2 pares de pijamas para os homens e 2 pares de robes para as mulheres).

O meu amigo mecânico Manuel Carvalho, morador da Estrada de Bôr também deixou as suas marcas no HMP. Foi ele que pôs a trabalhar o 1º gerador (grupo electrogénico) no nosso Hospital.

Eu soube do paradeiro desse gerador de fabrico russo, apropriado por um oficial através do meu amigo Silvério Soares, conhecido guitarrista (músico) guineense.

Obtivemos a devida autorização pelo CEMGFA, o falecido Saco Soares Cassamá, para a sua recuperação em prol do HMP.
Isso suscitou forte reacção por parte do oficial que se tinha apropriado do gerador durante muitos anos, deixando-o meio soterrado na sua casa em Cuntum.


Foi um amigo camaronês Adolfo Eboumé, quem disponibilizou a sua viatura «Land-Rover» para o reboque do gerador até o HMP.

Acabamos com a dependência energética da EAGB, que executava cortes, ou tinha avarias no decorrer de certas actividades críticas, por exemplo, em plena cirurgia, durante um parto.

Seria exaustivo escrever sobre todas as pessoas, civis que deram a sua colaboração para o HMP.

A todos aqueles anónimos civis, e voluntários amigos militares que igualmente contribuíram para a criação do HMP o meu grande obrigado.

O que foi feito, em abono da verdade, foi apenas a recuperação de infra-estruturas na maior parte do tempo.
Não inventamos, nem descobrimos nada.


Aqui também agradeço postumamente o grande Cirurgião Ortopédico Dr. Ernesto Moreira que foi o «motor de arranque» da Cirurgia no HMP.

O Dr. Ernesto morreu frustrado, desanimado, à semelhança do grande cirurgião Dr. Kókana, o homem que, a meu ver, revolucionou a cirurgia na Guiné, que acabou com o mito dos cirurgiões coloniais.

Nem vou reproduzir aqui as palavras deste eminente cirurgião num belo dia, em plena rua quando me viu cansado a regressar a casa depois de mais um dia de trabalho.
Ele me incentivou a lutar, a continuar a sua luta e me recomendou a frequentar o bloco operatório do HNSM, em que era ele o chefe.


Conheci o Dr. Ernesto, ao atravessar o HNSM, em direcção à Amura.
Ele, lá do seu 1º andar (para quem conhece o HNSM: andar em cima do Banco dos Socorros) gritou-me:
“Dr., Dr.”, mas nem sequer levantei a cabeça, pois pensava que não era eu o visado.
Algumas pessoas me chamaram atenção, e brinquei com ele: “Você é que é um verdadeiro Dr., e não eu”.
Disse-me: “ O que tem de especial no vosso hospital, de que as pessoas estão a falar assim tanto? Quero ir visitá-lo!”.
Respondi-lhe que não tínhamos nada de especial e que podia aparecer quando bem entendesse.
Como era muito brincalhão, disse que merecia um convite oficial, por escrito.
Assim que cheguei ao hospital, pedi que dactilografassem um convite ao Dr. Ernesto, e uma vez assinado, fi-lo chegar às suas mãos, pedindo-lhe que indicasse o dia e a hora da sua visita.
Que surpresa! Sem qualquer aviso prévio, eis o Dr. Ernesto no HMP.


Mas o doutor não me mandou avisar da sua visita, eis a minha reacção: “Tu irias preparar-te, vá lá mostre-me o hospital” - respondeu.

Visto tudo, ele se prontificou a nos ajudar a criar um serviço de Cirurgia.

Eu devia a partir desse dia frequentar diariamente os Serviços da Ortopedia.
Os testes, autênticos exames, eram diários.
Mas fui aprovado pelo Dr. Ernesto


Os meus enfermeiros também frequentaram estágios nos Serviços de Ortopedia do Hospital Nacional Simão Mendes (HNSM) e no Hospital «3 de Agosto».

A actual Enfermeira-Chefe do HMP, Fatú Indjai foi indicada para aprender os segredos da Anestesia com o grande Anestesista Marcelino N`Tunda, o mesmo que foi desprezado pelo ex-presidente Luís Cabral aquando de um parto da sua esposa D. Lucette Cabral, contratando um especialista estrangeiro, que nem conseguiu anestesiar a parturiente.
Foi o Marcelino N`Tunda, chamado à pressa, quem resolveu o problema.

Gratidão também para a enfermeira Domingas da Silva, da Ortopedia, que muito contribuiu para a formação dos instrumentistas militares.

Obrigado ao enfermeiro Malan, no Hospital «3 de Agosto» que adestrou os meus enfermeiros no tratamento das grandes, e muitas vezes infectadas feridas pós-operatórias.


Foi o Dr. Ernesto quem me apresentou à equipa do famoso cirurgião-ortopédico português de renome internacional, o Dr. Canha.
A equipa chefiada pelo eminente cirurgião-ortopédico, o Dr. Leão, e composta pelo Dr. Pato e o Anestesista Dr. Gildásio, todos quadros da Ortopedia dos Hospitais Universitários de Coimbra, muito contribui para o desenvolvimento da cirurgia no HMP, com importantes doações em medicamentos e materiais.
E como brincava, o Dr. Ernesto: “Elísio, és um sortudo, eu te apresentei aos médicos portugueses e eles agora gostam mais de ti”.

 

Confraternização com a Equipa médica de Coimbra


Como tinha carro (ambulância) disponível, sob recomendação dos médicos portugueses, o Dr. Ernesto nomeou-me Responsável pela Enfermaria de Ortopedia no HNSM.

As roupas do Bloco Ortopédico do HNSM, (as batas, os lençóis, etc.), passaram a ser lavadas no HMP, pois amontoavam-se, sujas, e nem sempre havia ao menos, sabão, e foram muitas as intervenções que eram adiadas por falta de roupas limpas.
Passaram a ser lavadas e esterilizadas algumas no HMP. Era a nossa forma de retribuir o apoio recebido.

Os nossos blocos operatórios chegaram a ser alugados por famílias que preferiam que os seus doentes fossem operados por cirurgiões civis, nas nossas instalações.
Que o diga o Dr. Brandão Có, cirurgião, ex-ministro de Saúde.

O nosso hospital foi escolhido pela equipa do Dr. Leão, como o local adequado para cirurgias mais complexas, para tratamento pós-operatório de certos casos mais complicados, pois garantíamos uma coisa fundamental na medicina em geral, e na cirurgia em particular: a Higiene.
Só isso.


Tive o privilégio de assistir a uma intervenção cirúrgica num dos blocos operatórios dos HUC (Hospitais Universitários de Coimbra), convidado pelo Dr. Leão, digo graças à influência do Dr. Ernesto, e também em reconhecimento do nível do nosso hospital, bem conhecido pelos meus professores portugueses.
 

Bloco de ortopedia


Esta é, resumidamente, a história da cirurgia no hospital militar, o agora HMP, na era pós-independência.

Posteriormente eminentes cirurgiões nacionais como o Dr. Camilo Simões Pereira e o Dr. Lássana N`Tchasso deram a sua grande contribuição no HMP.

Também quero destacar o enorme contributo das enfermeiras-instrumentistas, a Sra. Domingas da Silva e D. Joana Saiegh na capacitação do nosso pessoal militar no domínio da cirurgia.

Igualmente muito contribuíram para o desenvolvimento do HMP, as analistas do Banco de Sangue do Hospital Nacional Simão Mendes, Gravelina da Silva e Filomena Gomes Mateus.

De salientar que todos os especialistas aqui referenciados são civis, funcionários do HNSM.


Antes disso, a cirurgia num estabelecimento militar era exercida com a ajuda de médicos cubanos, apenas em Kundará e Boké, na Guinée Conakry, durante a gloriosa luta de libertação nacional.

De 1974 a 1989, conforme escrevi no meu pedido de demissão do cargo de Director do HMP em Junho de 1995, nada de especial, mas nada mesmo foi feito nele.

Não existia um Hospital, apenas um aglomerado de casernas.


E os partos na nossa Maternidade, preferida por muitas mulheres europeias. Pois mantínhamos a higiene.

Eu falei em 2 blocos operatórios:

Depois de muita luta e apoiado pelo próprio CEMGFA na altura, o saudoso falecido Saco Soares Cassamá, pelos Ten/Cel Afonso Té e Malan Camará, Major Mamadu Saliu Balde, conseguimos com que um edifício robusto, abandonado, antigo Serviço de Criptografia do exército colonial, que servia de dormitório, «refúgio» a alguns elementos das Transmissões, fosse anexado ao nosso Hospital.


Que insultos não recebi por parte desses elementos das Transmissões por lhes ter retirado do seu «refúgio».

Mas é de saudar o reconhecimento de muito deles, inclusive, do próprio chefe das Transmissões da FAN (Força Aérea Nacional), o Coronel, ainda vivo, o meu grande amigo N`Bunhe Nancútcha, quando viu o seu antigo edifício, completamente recuperado, remodelado.

Nesse edifício funcionaram o Bloco Operatório nº 2, a Maternidade, a Fisioterapia, a Secretaria do HMP, a Estomatologia, o Centro de esterilização e a Lavandaria.

Para a nossa capacitação, minha e dos enfermeiros, sem a participação dos meus 3 colegas médicos eu convidava vários médicos especialistas civis a realizarem palestras no nosso Hospital.


Foi assim que o Dr. Miguel Camará, especialista em Pneumologia, dirigiu várias palestras sobre a Tuberculose, a interpretação das radiografias, etc.

Surgiu então a ideia de criar no nosso Hospital, um posto de atendimento a pacientes com tuberculose, tanto militares como civis que residiam entre Brá e Safim, aliviando assim e de que maneira, o Hospital «Raul Follerau».

O referido posto de atendimento foi equipado totalmente pelo Hospital «Raul Follerau», que também fornecia os medicamentos necessários, assim como destacava um médico especialista para a supervisão das actividades.

Foram destacados para treino no domínio da tuberculose, 2 enfermeiros militares, a experiente Victória Sanca e o concentrado Albino Gomes.

Interessantes foram as palestras (gratuitamente) dirigidas por médicos especialistas cubanos, tais como os Professores Silva (medicina interna) e Luís (gineco-obstetrícia).

Foi nesse âmbito que conheci o médico cubano especialista em Radiologia, o Prof. Salazar, homem que veio a influenciar, e muito, o meu futuro.

Foi ele que me informou que havia na Diocese de Bissau uma máquina de ecografia.


Pedi ao conhecido Eng. João Fernandes, com fortes ligações à Igreja Católica e à saudosa Irmã Helena (de Bula) que me levassem até junto do Venerado Bispo D. Septímio Ferrazeta.

Irmã Helena, grande amigaIrmã Helena


Conduzido pelos dois, fui recebido pelo Sr. Bispo, a quem apresentei o meu pedido.
O Bispo ficou surpreendido com o meu interesse pela máquina, que aliás se encontrava na Guiné há quase 7 anos.
Quis oferecê-la ao Ministério da Saúde, que nunca mostrou interesse, apesar de inúmeras cartas de oferta do equipamento, da parte do Sr. Bispo.
Foram interessantes as minhas conversas com o Sr. Bispo, que ao que parece testava a minha persistência, o meu interesse pelo aparelho.
Foram quase 2 semanas de vai-vem à residência do Sr. Bispo, que me recebia, e repetia incansavelmente, toda a história relacionada com a vinda do aparelho à Guiné, o desinteresse manifestado pelas autoridades sanitárias da época.
Até que num belo dia, o Sr. Bispo exclamou sorridente: “credo não te cansas, não desistes?”

Vá lá buscar o ecografo a Cumura, a Irmã-Responsável de Cumura está à tua espera”.
Foi assim que consegui não só o aparelho de ecografia, mas ainda muitos equipamentos e materiais interessantes, que de pronto, foram levados para o HMP.

Quem fazia exames ecográficos no HMP, era um médico russo de nome Alexandre Erchicov.

Este colega médico que chegou à Guiné, através de um seu compatriota, empresário, de nome Mikhaíl, ainda presente em Bissau, foi-me apresentado pelo Dr. Lássana N`Tchassó.


O médico russo e o seu empresário queriam conhecer o HMP, pois necessitavam de um lugar organizado onde exercer a medicina, na especialidade de Urologia.

Sem perder tempo fui com o Dr. N`tchasso até a sua residência na estrada dos Coqueiros (Sta Luzia), onde conversei com os russos.
Eles tinham um pequeno ecógrafo, tendo inclusive o médico feito um exame ecográfico de demonstração à esposa do Sr. Mikhaíl, grávida na altura.


O meu entusiasmo foi enorme, eu queria aquele «reforço» para o nosso hospital.

No HNSM, já se realizavam exames de ecografia, por um médico da Cooperação francesa que possuía um aparelho, ainda mais pequeno que o dos russos.

Foi na companhia do Dr. Lássana, que nessa mesma manhã, visitaram o HMP, e ficaram contentes com o panorama observado, eles que já tinha visitado várias instituições médicas do país.
O médico russo queria trabalhar no nosso hospital.
Pôs-se a questão da sua residência, pois com o parto em breve da esposa do Sr. empresário, não caberiam todos na casa de Sta. Luzia.

 

A CONTINUAR...

DR. ELÍSIO BENTO DE CARVALHO  - Biografia 04.07.2010


 

 

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Dr. Boris e esposa

 

Director do HMP 1989 - 1995

Com o Conselheiro Dr. Boris

 

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PROJECTO GUINÉ-BISSAU: CONTRIBUTO - LOGOTIPO

VAMOS CONTINUAR A TRABALHAR!

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