OS REGISTOS COMO SALVAGUARDA DA MEMÓRIA HUMANA
Por: Fernando Casimiro (Didinho)
28.12.2008
Presentemente, tal como em 2005, os guineenses confrontam-se com o exercício de avaliação sobre o conceito de memória numa perspectiva de definição entre 2 aspectos distintos e que à partida parecem simples de ajuizar mas que realmente, continuam a confundir os guineenses e, quiçá, a tornar cada vez mais difícil a percepção sobre o passado, o presente e o futuro.
Dois aspectos distintos que também continuam a confundir os guineenses sobre o principal pilar da Democracia: a Justiça, no seu conceito mais abrangente.
A memória, é a sustentação da nossa sanidade mental ou seja, sentimo-nos bem quando conseguimos exercitar melhor a função da memória; ou, preocupados, quando o exercício da nossa memória começa a falhar, deixando-nos incapazes quer no raciocínio pontual, quer na recordação de factos ou acontecimentos que nos marcaram.
A memória é um bem pessoal ou colectivo, consoante a vertente de análise (somos humanos e cada um de nós é parte e património da humanidade) e, por isso, ao ser assumida como tal, serve para suportar a tese de que cada um deve pensar pela sua própria cabeça, sendo ela (memória), o elemento preponderante no exercício da mente, pois faz a interligação entre o passado e o presente nas mais diversas e complexas solicitações, permitindo assim, projectar o futuro numa perspectiva com argumentações positivas, entre elas a referência para a não repetição dos erros do passado.
Neste trabalho não vou abordar as disfunções da memória por razões naturais como a velhice, por exemplo, ou disfunções causadas por torturas e outros abusos característicos da maldade humana.
A abordagem que faço tem a ver com os jogos de influências que têm descaracterizado o conceito de memória na sua avaliação e definição pela maioria dos guineenses.
A memória não é avaliada em função do estatuto social e os que são contemplados com a preservação das suas memórias pessoais e das memórias colectivas tendem, nos dias que correm, a ser alvos da ira dos déspotas, ditadores e malfeitores, que vêem neles uma ameaça no tocante à recuperação ou recapitulação dos seus actos criminosos no passado.
Em contrapartida, numa postura de valorização e salvaguarda das memórias colectivas, os dotados da memória de "elefante", são sempre de grande utilidade para a elaboração de registos históricos de interesse geral.
Os 2 aspectos distintos a que me refiro são:
1- Esquecer (do Lat. excadescere), V. tr. perder a lembrança de alguém ou de alguma coisa; olvidar; deslembrar; omitir; desprezar; v. int. não vir à memória; perder a sensibilidade de alguma parte do corpo; v. refl. não se lembrar; omitir-se.
2- Perdoar (do Lat. perdonare), V. tr. e int. conceder perdão a; absolver de culpa, ofensa ou dívida; remir; desculpar; poupar.
Perdão (de perdo, verbo), s. m. remissão de pena; absolvição; indulto; desculpa.
Na Guiné-Bissau por conveniência, na maioria das vezes e, por desconhecimento também, interligam-se os conceitos do acto de esquecer e de perdoar como parceiros de uma mesma caminhada rumo à reconciliação nacional.
Políticos demagogos, cidadãos manipulados e comprometidos com os regimes e governos que têm dirigido a Guiné-Bissau apelam com frequência e num oportunismo já de si característico, ao esquecimento do passado e ao perdão entre guineenses.
Na verdade, soa bem apelar ao perdão. Como ser humano crente, sou a favor do perdão, não pelo que soa, mas pelo que motiva.
Ao perdoar, estamos a aliviar, a esvaziar o nosso espírito de cargas negativas em forma de raiva, fomentadora do ódio e da vingança.
Sim, devemo-nos perdoar mutuamente e o perdão é um dos mais consagrados valores da espiritualidade.
Há que ter em conta que o perdão pessoal mútuo ou não, jamais deverá substituir a acção da Justiça para casos de crimes identificados como tal.
Já em relação ao esquecimento do passado, discordo em absoluto, pois não se deve censurar nenhuma consciência e muito menos "mutilar ou transformar" a maior riqueza de um ser humano, a sua memória.
Os que pedem para que se esqueça o passado, o tal passado de crime e de vergonha de suas vidas, sabem muito bem que isso só acontece quando alguém perde naturalmente a memória, mas apelam frequentemente ao esquecimento, como forma de inibir a sociedade em geral, de usar os registos da memória colectiva que, em abono da verdade não são favoráveis à maioria dos políticos e governantes guineenses!
Apela-se ao esquecimento do passado e ao perdão como se fossem garantias ou chaves mestras da hipotética reconciliação nacional, ao invés de se reconhecer que nenhuma reconciliação se faz sem uma análise aos problemas que originaram a ruptura social; sem a discussão e debate sobre esses mesmos problemas e sem a conclusão das causas e a indicação de medidas concertadas em função das conclusões a que se chegou.
Apela-se ao esquecimento do passado e ao perdão, passando por cima do sofrimento dos prejudicados, da Verdade e do principal pilar da democracia, a Justiça.
Apela-se ao esquecimento do passado e ao perdão para que os criminosos continuem impunes e, consequentemente, cada vez mais repetitivos nas suas acções criminosas, quer contra o nosso povo, quer contra a nossa terra.
Apela-se ao esquecimento do passado e ao perdão com uma descarada facilidade, sem se dar oportunidade, voz, palavra; sem ter consideração pelas vítimas (e seus familiares) de tantos crimes ocorridos na Guiné-Bissau.
Apela-se ao esquecimento do passado e ao perdão, para que com os poderes do poder se continue no poder, manipulando consciências e "desactivando" a pouco e pouco, a MEMÓRIA COLECTIVA GUINEENSE.
Apela-se ao esquecimento do passado e ao perdão, mas só do passado que convém e só ao perdão que convém e quando convém.
Não conseguirão apagar a MEMÓRIA COLECTIVA GUINEENSE, pois não permitiremos e é por isso que continuamos e continuaremos a trabalhar, deixando registos das nossas memórias!
Vamos continuar a trabalhar!
Sugestões de leitura
Os fracos reis da Guiné
Por: Xavier de Figueiredo* Artigo publicado na revista moçambicana "Prestígio" Publicação no www.didinho.org autorizada pelo autor em 28.12.2008 Amílcar Cabral, costumava dizer que a Guiné-Bissau poderia vir a ser uma espécie de Suíça de África. O pai e ideólogo da pátria guineense falava do alto da sua sabedoria – que se sabe feita de realismo e idealismo. A Guiné tinha condições palpáveis – a geografia, o factor humano, os recursos e as belezas naturais – para ser a Suíça africana, com cuja versão original, encravada nos Alpes, coincidia até na superfície. O resto era o sonho e a crença de Cabral a darem vazão aos seus impulsos. Ele acreditava sinceramente que seria suíço o futuro da Guiné. No princípio de 1978, quando cheguei à Guiné-Bissau vestindo o fato de correspondente da ANOP, vi coisas que me levaram a acreditar que o tempo talvez viesse a dar razão à promissora profecia de Cabral. Apenas achei desfasada da realidade a ideia da união da Guiné a Cabo Verde. O país tinha grandes e múltiplas carências, mas havia uma enorme vontade de acertar. O ambiente era de seriedade e decoro. E nem faltavam pelo mundo fora governos e organizações dispostos a ajudar o novo país. A Guiné-Bissau dos nossos dias não só está a anos luz de ser uma Suíça africana, como é seguramente um dos piores países do continente. Está mergulhada numa profunda e persistente crise política, social, económica, de valores – de tudo. O Estado é uma entidade ficcional, minado pela corrupção e por poderes paralelos. Vê-se que a integridade e a moral de outrora desapareceram. A economia está desmantelada e não há investimento. Está a desfazer-se a coesão interna que permitiu manter unidas tantas e tão diferentes tribos naquele território tão exíguo. E, corolário de tanta tragédia, a reputação que o país tem no mundo é a de um enorme supermercado de droga. Por mim, acho que a arrastada crise que tem afundado a Guiné-Bissau é especialmente devida a dois homens – que a história, pelo menos ela, porventura não deixará de julgar. Um é Kumba Yalá. O outro Nino Vieira. Foram eles (ainda são eles) os “fracos reis que fizeram fraca a forte gente” de que falava Camões no tom justiceiro que usou para se referir aos maus soberanos daqueles tempos que por isso estragavam a boa gente dos seus reinos. A Kumba Yalá, homem consabidamente destituído de bom senso e dado a excentricidades e devaneios capazes de arrasar tudo aquilo que lhe for confiado – uma empresa, um quartel, um país – a Guiné-Bissau ficou a dever a completa desordem em que entrou quando ele se tornou presidente. A ruptura de equilíbrios étnicos, religiosos e culturais que eram vitais para a sua condição de nação – na esteira do que veio a tribalização do Estado. A destruição da economia. O desprestígio externo total. A Nino Vieira, regressado ao poder em 2005, fica a Guiné-Bissau a dever a desfeita de pouco ou nada ter feito para tentar endireitar as ruindades que vinham dos tempos de Kumba Yalá, dando assim um novo rumo ao país – que também não deu. Tinham afinal razão aqueles que sempre me foram dizendo que Nino Vieira só se aplicou em voltar ao poder movido por ambições e rancores. Ou seja, queria refazer o património perdido em 1999 e ajustar contas com aqueles que o traíram ou foram menos leais. E foi assim que em vez do homem de Estado que se impunha que Nino Vieira fosse para estar à altura de colocar a Guiné-Bissau no bom caminho, o que se passou a ver é alguém que movidos por rancores e jogos malabares, continuou a estragar o país – que é uma maneira de dizer desestabilizar e arruinar. Já escrevi algures e mantenho que Nino Vieira desperdiçou assim uma oportunidade única de vir a figurar na história e na memória colectiva como um presidente que ao regressar ao poder se redimiu de erros passados e o exerceu servindo o bem comum. Como Kérekou, no Benin. O mais grave problema da Guiné-Bissau é a droga – que vai minando a sua alma e corrói o sonho da Suíça africana. Foram elucidativas acusações que Kumba Yalá fez a Nino Vieira na campanha para as últimas eleições. Acusou-o publicamente de estar implicado no narcotráfico. Nino Vieira, comummente identificado como inspirador de um partido novo, o PRID, pejado de indefectíveis seus e na vox populi chamado “o partido da droga”, não respondeu. Mas seria esclarecedor que tivesse respondido – à letra. Perceber-se-ia ainda melhor o nefando papel destes dois homens na destruição do sonho da Suíça africana de Cabral. *Jornalista, Director do África Monitor http://africamonitor.info/index.htm |
TENHAMOS PRESENTE A MEMÓRIA DAS PROMESSAS DE NINO VIEIRA AQUANDO DA SUA TOMADA DE POSSE EM OUTUBRO DE 2005 COMO PRESIDENTE DA GUINÉ-BISSAU... SÓ VIMOS ACTOS DE VINGANÇA...
Nino Vieira foi empossado
01 Out 2005 |
A sina da instabilidade
Com perspectivas promissoras logo após sua independência, país sofre com
golpes e o abandono do projeto que buscava outra concepção de
desenvolvimento, baseada nos interesses de sua população
Por: Tobias Engel A Guiné- Bissau é um país em decomposição política e econômica, e está entre os menos avançados do mundoO golpe de Estado do dia 14 de setembro, na Guiné-Bissau, significa o coroamento de um lento processo de decomposição política e econômica. Com perspectivas de um futuro promissor por ocasião de sua independência, em 1973, o país se encontra atualmente entre os menos avançados do mundo (PMA). O Partido para a Independência da Guiné-Bissau e das Ilhas de Cabo Verde (PAIGC) de Amílcar Cabral marcou profundamente a consciência dos povos daquela sub-região, durante a década de 70. A Guiné-Bissau desafiava as potências estrangeiras e propunha uma outra concepção de desenvolvimento, baseada nos interesses do povo – e não nos das potências neocoloniais. Foi orquestrado um trabalho para sabotar esse projeto, que era um exemplo perigoso para os governantes dos países vizinhos1 . Um dos quadros da guerrilha pela independência, João Bernardo “Nino” Vieira – primeiro-ministro durante o governo de Luís Cabral –, e sua equipe foram os artífices dessa destruição programada. Em 1980, “Nino” Vieira liderou o golpe de Estado que depôs o presidente Luís Cabral (irmão de Amílcar) e tomou o poder, ainda prestigiado por seus antecedentes na guerra de libertação. A descoberta de uma chacina – uma vala com corpos de pessoas assassinadas – atribuída aos cabo-verdianos, permitiu-lhe atiçar o ódio entre seus compatriotas e estabelecer sua autoridade. De militante a golpistaEm nome da estabilização financeira que nunca veio, foram feitos cortes na área social e na educaçãoNa época, “Nino” Vieira já não era o militante da guerrilha de antigamente, mas um militar golpista que impunha sua lei pela força das armas. Um pequeno Bonaparte, com laivos de um Bórgia. Em 1998, “Nino” Vieira chegou ao ponto de desencadear uma guerra civil para escapar ao inquérito, realizado pelo PAIGC, em que era suspeito de envolvimento no fornecimento de armas para os rebeldes de Casamance (região no sul do Senegal) 2 . “Ele construiu seu poder a partir do medo”, conta Antônio, um ex-militante do PAIGC. “É por isso que pouca gente ousa reclamar... Quando você era acusado de qualquer coisa, você nunca sabia se voltaria vivo. Você era preso, torturado, e mesmo que fosse solto não podia provar nada. Muita gente ficou aleijada ou ficou louca pelo resto da vida.” A independência, no entanto, começara de maneira auspiciosa. A diáspora de exilados da Guiné-Bissau voltou maciçamente para o país. Espontaneamente, cirurgiões, professores universitários, engenheiros apresentavam-se para ajudar na construção da nação. Foi criado um sistema de livre acesso à escola. Os livros eram gratuitos. A rede escolar dispunha de um número suficiente de professores. Com 22 anos de idade, Antônio foi diretor de uma escola: “Incentivamos uma participação maior das meninas na escola. Adotamos um calendário escolar que beneficiava os alunos de áreas rurais, enquanto antes era seguido o calendário de Portugal. Quando acabáramos de conseguir criar esse sistema, ‘Nino’ Vieira comandou o golpe de 1980 e tudo passou a andar para trás.” A partir de então, o país se orientou para uma economia liberal, reforçada em 1991 com a revogação do artigo 4 da Constituição, o que retirou do partido a direção da sociedade. Fizeram-se cortes orçamentários na área social e na educação. Foram eliminados todos os esforços já iniciados para desenvolver uma política coerente, com inovações pedagógicas. “Do ponto de vista do Banco Mundial e do FMI [Fundo Monetário Internacional], a educação não podia ser um encargo do Estado”, contam Antônio e Maria (outra ex-militante do PAIGC). “Tudo isso, em nome de uma suposta estabilização financeira que nunca se produziu.” Golpes sucessivosOs autores do último golpe informaram que pretendem organizar eleições livres nos próximos mesesUm fato curioso é revelador da desorganização e do amadorismo das autoridades. Em 1987, uma estranha proposta foi feita pelo Ministério dos Recursos Naturais a geólogos locais: tratava-se de fazer análises de solo. Na verdade, o Ministério já assinara um contrato de 260 milhões de dólares, com uma empresa francesa, para estocar lixo numa das ilhas da Guiné-Bissau. “Se recebemos produtos manufaturados, então é normal que aceitemos uma troca desse tipo”, sustentava “Nino” Vieira. Uma semana mais tarde, todo mundo sabia do caso: um colaborador voluntário francês o revelara. Naquela ocasião, “Nino” Vieira participava de uma reunião da Organização da Unidade Africana (OUA) em Lagos, na Nigéria. Encurralado e ridicularizado, foi obrigado a renunciar ao projeto. Em maio de 1999, “Nino” Vieira foi deposto pelo general Ansumane Mane, exilando-se na Gâmbia. A França e Portugal o protegeram em sua fuga. Ansumane Mane seria assassinado, em novembro de 2000, durante uma tentativa de golpe de Estado. Seu sucessor, Coumba Yala, se mostrou incapaz de dirigir o país, que estava atolado na miséria e na desorganização. Deposto pelo golpe de Estado de 14 de setembro, ele se encontra sob prisão domiciliar. Os golpistas informaram a Comunidade Econômica dos Estados da África Ocidental (Cedeao) que pretendem organizar eleições livres nos próximos meses. Criaram um governo provisório, dirigido por um civil, Artur Sanha, e procuram envolver a sociedade civil no processo de transição. (Trad.: Jô Amado) n tm1 - Ler, de Itsvan Felkai, “Tenir la promesse faite aux
paysans”, Le Monde diplomatique, abril de 1983. |
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