PINDJIGUITI: MEMÓRIAS DE UMA REALIDADE PRESENTE...
JÁ NÃO SE "FAZEM" HOMENS COMO OS DE PINDJIGUITI!
Fernando Casimiro (Didinho)
08.08.2009
Recordar a cada 3 de Agosto o massacre de Pindjiguiti é um gesto simbólico de homenagem aos marinheiros e estivadores, entre outros mártires tombados heroicamente no cais de Pindjiguiti, em defesa dos seus direitos, nesse dia do ano de 1959.
Do simbolismo desta contínua homenagem, devemos ter em conta que, cinquenta anos depois do massacre e a caminho de trinta e seis anos de independência, a realidade presente dos trabalhadores na Guiné-Bissau assemelha-se em quase tudo aos fundamentos e motivações que culminaram com as reivindicações dos marinheiros e estivadores no cais de Pindjiguiti.
Recordar a data, homenageando os mártires de Pindjiguiti, deveria ser, igualmente, uma data de reflexão dos governantes guineenses em relação às motivações de então e que galvanizaram o PAIGC, para a necessidade de se preparar para a luta armada contra a dominação colonial.
Hoje somos um país independente, mas continua-se a explorar os trabalhadores, a negar-lhes os seus direitos. De promessa em promessa, os trabalhadores guineenses, que recebem ordenados de quando em vez, vão assistindo, impotentes, porquanto divididos e manipulados, ao enriquecimento dos políticos, governantes e militares, que vivem em boas casas, com muros altos em volta, com água canalizada, energia eléctrica, climatização, garagens, mobiladas e equipadas com tudo de bom que se vende na Europa ou na América, desde televisores a computadores, passando por jogos de diversão para os filhos, etc.
Nessas casas não falta boa comida, desde o pequeno almoço, almoço, lanche e jantar...
Se alguém da família se queixar de alguma indisposição; se a esposa engravida; há 2 destinos imediatos: Dakar, Senegal, ou Lisboa, Portugal...
Os filhinhos dos papás e das mamãs, frequentam as escolinhas privadas, essencialmente a escola portuguesa, pois têm posses...
Na verdade, já não se "fazem" Homens como os de Pindjiguiti e, por isso, continua-se a permitir a exploração e a negação dos direitos, não ao colonialista português, mas, ao "colonialista" guineense que só pensa nele, na sua família e amigos mais próximos, lembrando-se contudo que, de vez em quando deve dar umas migalhas ao povo trabalhador, para que não morra à fome, pois tem que ser ele a produzir para legitimar o enriquecimento do patrão...
Fala-se em harmonia e em reconciliação, à boca cheia, como se a desigualdade social na Guiné-Bissau não fosse escandalosa...
Uns poucos têm tudo e nada produzem, enquanto que, a maioria do nosso povo, que se farta de trabalhar, continua a não ter alimentação suficiente, água potável, habitação condigna, saneamento básico, escolas para os filhos, hospitais, centros de Saúde, transportes, etc., etc.
Quem se recorda afinal das motivações do 3 de Agosto de 1959?
Claro está que, o PAIGC de então, era o PAIGC de Amilcar Cabral e esse, acabou aquando do golpe de Estado de 14 de Novembro de 1980!
Deixo-vos com os relatos de Luís Cabral, primeiro Presidente da Guiné-Bissau, que registou no seu livro Crónica da Libertação, as suas verdades sobre Pindjiguiti.
Se é verdade que as verdades podem diferir de pessoa para pessoa, tenho em elevada consideração os registos de Luís Cabral sobre o massacre de Pindjiguiti. Convém ressalvar também que, foi durante a sua presidência que foi erigido o Monumento aos Mártires de Pindjiguiti em Bissau.
Honra e Glória aos Mártires de Pindjiguiti!
Viva o Espírito de Pindjiguiti!
"... A situação das equipagens das lanchas e outras embarcações das empresas coloniais era, em 1959, bastante deplorável.
Os salários variavam entre 150 e 300 escudos; o capitão da embarcação ganhava ainda menos do que o motorista, pois este em geral sabia ler e gozava do estatuto de <<civilizado>>. Os restantes membros da tripulação, sendo considerados <<indígenas>>, tinham de contentar-se com um salário de miséria, sem quaisquer regalias.
O transporte de cabotagem era, sem dúvida, o que garantia os maiores lucros às empresas, dado que os seus encargos por tonelada transportada eram de longe os mais baratos. Para cada viagem, o tripulante recebia, para a sua alimentação, uma determinada quantidade de arroz e mais 15$00 por mês para mafé, quer dizer, $50 por dia destinados à compra dos condimentos necessários ao molho para o arroz.
Havia já muitos meses que os marinheiros vinham pedindo uma melhoria da sua situação, sem qualquer resultado. Faziam-lhes promessas, é certo, mas a mesma situação mantinha-se e os trabalhadores não viam, na verdade, nenhumas perspectivas de mudança.
Encorajados com o descontentamento crescente dos trabalhadores das docas, cuja situação também era escandalosamente má, os marinheiros fizeram saber às empresas que estavam decididos a parar o trabalho, se as suas reivindicações não fossem atendidas. As respostas das direcções das empresas, já concertadas quanto à sua acção, continuaram a ser promessas sem quaisquer garantias.
A situação política no meio dos trabalhadores africanos já não era, no entanto, a mesma na Guiné. O trabalho clandestino do Partido tinha avançado bastante e no meio dos marinheiros e dos homens das docas existiam militantes já seguros da justiça da luta.
A nossa zona geográfica vivia com entusiasmo o fenómeno novo da independência da República da Guiné e seguia os preparativos para a independência do Senegal, tudo isso concorrendo para dar mais força às palavras de ordem do Partido e galvanizar o interesse geral na conquista duma vida melhor e mais digna.
Nesta nova conjuntura, os marinheiros e os trabalhadores do porto juntaram as suas forças, concertaram-se e chegaram à conclusão de que a única solução para os seus males só podia vir da luta corajosa contra as empresas exploradoras.
A partir da noite do dia 2 de Agosto de 1959, as embarcações que chegavam ao porto de Bissau eram cuidadosamente arrumadas nas cercanias do velho cais de Pijiguiti. Nos seus espíritos decididos, a interrogação era grande sobre a reacção das autoridades coloniais, à qual iam opor a sua firme decisão de continuarem a greve enquanto não fossem atendidas as suas reivindicações.
Os chefes das empresas, encabeçados pelo subgerente da Casa Gouveia, mandaram um ultimato aos grevistas: ou regressavam às suas embarcações e aos seus postos de trabalho em terra, ou pediam a intervenção do exército e da polícia. Homens como os que se encontravam ali, no Pijiguiti, juntos, unidos e conscientes dos seus direitos, não podiam ceder a um primeiro ultimato, e mantiveram-se por isso firmes na sua decisão de continuar a luta.
As autoridades estavam atónitas diante da maneira como a greve fora organizada. Nenhuma fuga de informação pudera ser detectada e ali estavam eles impotentes para quebrar o bloco homogéneo que não cedia às ameaças, e que às promessas aliciantes que lhes foram apresentadas, poucas palavras tinham para dizer: mais pão, mais justiça.
No fim da manhã, as autoridades reuniram-se com os dirigentes das empresas para decidir das medidas a tomar. A Polícia Internacional e de Defesa do Estado (PIDE), cujos tentáculos criminosos se tinham já estendido aos nossos países, fora surpreendida como toda a gente e teve de reconhecer que havia qualquer coisa de novo na Guiné.
A decisão fatal foi rapidamente tomada: se até à tarde os trabalhadores não retomassem o trabalho, as forças da repressão deviam agir com a maior prontidão e dureza, para servir de exemplo; só uma acção enérgica e pronta das autoridades poderia convencer os grevistas e o povo em geral de que o Governo não estava disposto a ceder à subversão.
Os homens do porto, esses, não estavam dispostos a vergar. Os tambores que no passado tanto tocaram para chamar o povo à resistência até arrebentarem voltaram de novo a recompor-se para apelar à luta contra a dominação estrangeira. Tinham voltado de novo a vibrar, desta vez com mais força e vigor, ao ritmo da nova esperança nascida com o aparecimento do nosso Partido.
A vida em Bissau parecia ter parado para seguir os acontecimentos. Apenas se viam passar nas ruas os carros da polícia, até ao momento em que as forças militares e paramilitares avançaram para o porto.
Os trabalhadores em greve fecharam o portão de acesso ao cais de Pijiguiti, apanharam tudo quanto podia servir para se defenderem e aguardaram. Mas como defender-se com remos, com paus ou pedaços de ferro, quando o inimigo trazia armas automáticas modernas e estava disposto a matar? E isso, infelizmente, os heróicos trabalhadores do porto ainda não sabiam.
Poucos minutos depois ouviam-se os primeiros tiros: os soldados e a polícia tinham acabado de romper a frágil barragem do portão e penetravam no recinto do cais, atirando impiedosamente contra os grevistas, que, a princípio, ainda tentaram defender-se. Cedo, porém, depois de verem cair muitos companheiros, compreenderam que, diante da cruel realidade, a única solução era procurar fugir do cais, para escapar à morte.
À medida que uns caíam mortos ou feridos, outros procuravam por todos os meios alcançar a saída mais livre e a única que parecia segura, tentando, enquanto ainda era tempo, atravessar a estreita passagem que conduzia ao rio Geba, portanto às embarcações que ali estavam ancoradas.
À medida que os homens conseguiam alcançar a ponta do cais iam-se atirando às águas do rio e nadavam desesperadamente para alcançar as embarcações. A horda colonialista com os monstruosos sucessos alcançados, também avançou para a ponta do cais de Pijiguiti. Fazendo dali calmamente a pontaria, conseguiram matar ou ferir muitos homens entre os que se tinham atirado desesperadamente ao rio Geba. E não eram só militares, ou só militares e agentes da polícia, os que atiravam. Também se juntaram a eles elementos civis com as suas armas pessoais, que depois se vangloriavam da sua participação na caça selvagem aos homens do 3 de Agosto.
Saímos cedo do trabalho. Os escritórios da Casa Gouveia ficavam perto do cais de Pijiguiti e não era possível trabalhar com o barulho terrível do tiroteio, tendo às portas tão criminoso espectáculo, sem precedentes nos nossos dias. Ficámos de pé no passeio, mesmo em frente do grande edifício onde trabalhávamos. Além de mim, estavam Carlos Correia, Elysée Turpin e outros colegas. Os polícias que ali passavam, mesmo à nossa frente, estavam muito excitados e queriam mais vítimas, empurrando e provocando as pessoas sem qualquer razão ou talvez com o objectivo premeditado de ver as reacções que se seguiam.
Um dos polícias empurrou pelo peito o Carlos Correia, que protestou pela incorrecção que isso representava. Foi o suficiente para o agente o prender e mandar imediatamente para a esquadra mais próxima. Que podíamos nós, seus companheiros, fazer naquele momento? Unicamente sair dali, procurar abrigar-nos nas nossas casas contra a fúria criminosa desencadeada no porto de Bissau.
Da varanda do meu apartamento, que estava situado frente ao porto, pude presenciar a parte final do monstruoso crime da caça ao homem no rio Geba. O sol desaparecera nessa tarde dos céus de Bissau; a atmosfera pesada e escura parecia gritar com o povo. A tarde sangrenta de 3 de Agosto fizera mais de cinquenta mortos e muitas dezenas de feridos entre marinheiros pacíficos que mais não queriam que viver um pouco melhor.
Saí. Queria andar, tinha necessidade absoluta de me encontrar com camaradas meus. Consegui alcançar as traseiras do banco onde encontrei alguns camaradas que me informaram de que um marinheiro ferido estava escondido no pavilhão dos solteiros. Fui vê-lo. Tinha um ferimento superficial numa perna e teria certamente sido apanhado pelos agentes se não o tivessem escondido. O ferido fora cuidadosamente tratado e, a coberto da noite, pôde voltar para a sua casa.
Na noite de 3 de Agosto, reuni-me com o Aristides e o Fortes. Este, na sua qualidade de chefe da Estação Postal, tinha podido meter no correio que devia partir na manhã seguinte, cópias de um comunicado elaborado rapidamente sobre os acontecimentos, endereçados às principais emissoras escutadas em Bissau. Lembro-me bem que a Rádio Brazzaville, BBC, Rádio Conacry e Rádio Dakar, estavam entre aquelas que receberam e difundiram a notícia que os colonialistas não queriam que saísse da Guiné. Simultaneamente, foi também enviado um primeiro relatório ao Amilcar Cabral que se encontrava nesse momento em Angola.
No dia seguinte de manhã, logo depois da minha chegada aos escritórios da Casa Gouveia, fui ver o subgerente António Carreira e expliquei-lhe como se tinha dado a prisão do camarada Carlos Correia. Telefonou imediatamente à polícia e o Carlos foi posto em liberdade.
Entretanto, o Aristides tinha sido requisitado pela polícia política para estar em permanência ao seu serviço. As conversações telefónicas do governador ou do director da PIDE, com Lisboa, revestiam-se de um carácter altamente secreto e só podiam, por isso, ser controladas por ele, chefe da Estação, como pessoa de toda a confiança.
Naquela mesma tarde, o director da PIDE em Bissau, falou com o seu director-geral em Lisboa. Este queria as últimas notícias; não acreditavam que a greve tivesse sido organizada pelos próprios marinheiros, quase todos analfabetos. Havia certamente alguém com mais conhecimentos e experiência por trás, a dirigir e a orientar a acção; era absolutamente indispensável encontrar essa pessoa. Não se teria distinguido, por acaso, no meio da confusão, nenhum filho da Guiné com habilitações a que se pudesse atribuir tal responsabilidade?
O director-geral da PIDE insistiu para que o seu representante pensasse bem e se informasse junto da Polícia de Segurança Pública; que também pusesse os seus agentes em campo para recolherem todas as informações que conduzissem à identificação dos promotores da greve de 3 de Agosto. O director de Bissau lembrou-se então da prisão de Carlos Correia, no próprio momento da confrontação das autoridades com os grevistas: era africano, filho da Guiné, tinha o Curso Geral dos Liceus e ainda por cima trabalhava na Casa Gouveia, onde havia o maior número de marinheiros. <<Prenda-o de novo - disse o director-geral - e mande-o para cá, para ser interrogado por nós.>>
Toda a gente sabia o que eram os interrogatórios da PIDE, em Lisboa. Quantos não foram os patriotas portugueses e africanos que sucumbiram às torturas e maus tratos da polícia fascista!
O Aristides mandou imediatamente avisar o Carlos, que me devia contactar e fazer tudo para sair do país, antes de ser de novo apanhado pela polícia.
Carlos saiu nesse mesmo instante à minha procura. Foi primeiro à minha casa, embora isso tivesse sido imprudente, pois se alguém o visse a entrar no fim da tarde no prédio de três andares onde eu era o único africano residente, saberia logo que ele só podia dirigir-se à minha casa; procurou-me em seguida em casa da dr.ª Pomba Guerra.
A noite acabava de cair bruscamente quando finalmente me encontrou na Sede do Benfica. Chuviscava um pouco, mas mesmo assim saí à rua para falarmos longe de possíveis ouvidos curiosos. Carlos estava acompanhado de um amigo, quando me pôs ao corrente da situação. Disse-lhe que fosse imediatamente esconder-se e que só se mostrasse quando eu mandasse chamá-lo. Pedi-lhe o seu impermeável, e confirmei que tudo seria tratado de forma que ele pudesse sair do país ainda naquela noite.
Tornava-se indispensável encontrar o Elysée Turpin, o homem do nosso grupo capaz de conseguir um meio de transporte. Com a ajuda do meu irmão Toi, que tinha uma motorizada, saímos à procura do Elysée que sempre considerámos o homem mais difícil de encontrar em Bissau, depois das horas de trabalho.
Encontrámo-lo finalmente e, informando-o da situação, disse-lhe que tinha de conseguir um carro para pôr o Carlos na fronteira naquela mesma noite. O único indivíduo das suas relações que tinha uma camioneta era conhecido notoriamente pelas relações com a polícia, mas não tínhamos outra escolha e não havia tempo para hesitações. Ficou combinado que o Elysée pediria o carro explicando abertamente qual o objectivo da missão. Confiámos assim nas boas relações existentes entre os dois, e também porque o Carlos era um jovem com muita simpatia e respeito, em Bissau, para o que concorria, além da sua idoneidade moral, o facto de ser um excelente praticante de futebol.
Enquanto o Elysée devia garantir o transporte para a fronteira, eu fui por outro lado à procura dos meios para a viagem.
Terminados os preparativos para a saída imediata, precisava encontrar-me com o Carlos e comunicar-lhe os planos estabelecidos. Estava muito escuro e continuava a chuviscar.
Aproximava me da casa da sua mãe, no Chão de Papel. Ia todo envolvido no seu impermeável, quando senti que um carro se aproximava muito devagar atrás de mim. Não parei. Os faróis chegaram tão perto que pareciam queimar-me. O pára-choques do carro quase bateu nas minhas pernas, quando parou.
Voltei-me então e vi que se tratava de um jipe militar cheio de homens fardados; pensei logo que a sua chegada estava relacionada com a prisão do Carlos.
Os militares riam quando arrancaram de novo, continuando a sua ronda em direcção à Central Eléctrica. Confesso que, apesar do fresco da chuva, estava a transpirar dentro do impermeável de borracha. Felizmente, os homens só quiseram divertir-se à minha custa.
Voltei para trás e aproximei-me da casa do Carlos. Tive de pedir ao irmão que o fosse procurar. É que eu tinha-lhe dito que se escondesse bem, mas não ficou estabelecido onde.
O Elysée apareceu confirmando que tinha conseguido o carro. Ele seguiria pela estrada do Aeroporto e o Carlos, na sua motorizada, iria juntar-se-lhe, logo que o víssemos. Ficou ainda assente que o Elysée faria tudo para estar de regresso antes das sete da manhã, para não faltar ao trabalho, não fosse a polícia ligar a sua ausência com a fuga do seu colega de serviço.
Chegou finalmente o Carlos. Via-se que estava preocupado, apesar da sua calma aparente. Dei-lhe o dinheiro e o impermeável, abraçamo-nos, tomou a motorizada e partiu. Eram mais ou menos dez horas da noite. O seu irmão mais novo devia passar pela Gouveia à hora da abertura dos escritórios para dizer que o Carlos estava doente.
Foi só depois da partida do Carlos, quando regressava a casa na pequena motorizada conduzida pelo meu irmão, que me apercebi dos erros e imprudências que foram cometidos: ele andou à minha procura em minha casa e noutros lugares e era muito natural que nos tivessem visto juntos conversando à porta do Benfica; entretanto, na manhã seguinte, nada se sabia do Carlos em Bissau. Convenci-me de que a PIDE, a famigerada PIDE que acabava sempre por saber tudo, facilmente me identificaria como sendo uma das pessoas que intervieram na fuga do Carlos.
O meu estado de excitação era, pois, bastante grande no dia seguinte. Tentava imaginar como seria interrogado pela polícia e ia formando mentalmente as respostas que daria às suas perguntas. Recorri à dr.ª Sofia e ela aconselhou-me a tomar um calmante que me ajudaria a controlar. Arranjou-me um medicamento a que chamou a <<pastilha da felicidade>>. Eu precisava de facto de muita calma, no caso de ser interpelado pela PIDE...
À nossa chegada ao trabalho, no dia seguinte, às 7.30 h, o Elysée informou-me que conduzira o Carlos até à jangada de Barro, continuando ele, a partir dali, na sua motorizada a caminho da fronteira senegalesa. Via-se bem que não tinha dormido a noite toda.
Antes das oito horas, já o irmão do Carlos aparecia para dizer que ele estava doente e não podia apresentar-se na Gouveia.
Alguns minutos depois, chegavam os homens da PIDE. Contactaram a direcção e perguntaram pelo Carlos. Saíram imediatamente e foram à casa da sua mãe, mas o Carlos tinha desaparecido sem deixar rastos.
O Elysée, entretanto, pedira licença para sair. Ia dormir...
Logo que recebeu a comunicação sobre o massacre de Pijiguiti, o Amilcar fez-nos saber que passaria por Bissau o mais breve possível, para fazermos o balanço dos acontecimentos e definir o caminho a seguir.
O AMILCAR EM BISSAU: AS LIÇÕES DO MASSACRE
Em meados de Setembro chegava o Amilcar a Bissau, vindo directamente de Angola. Era necessário que fossem tomadas precauções particulares: a PIDE tinha reforçado a sua acção desde a greve de 3 de Agosto.
O Amilcar acabava de fazer a sua última estada em Angola e não pensava ter outra oportunidade para voltar a Bissau antes do fim da luta. Depois de se ter reunido connosco, uma das suas primeiras preocupações foi encontrar-se com Rafael Barbosa para a discussão sobre as relações do seu grupo com o nosso Partido.
A cada instante da sua estada em Bissau sentíamos mais a necessidade de reforçar a vigilância, de maneira a fugir a qualquer elemento que estivesse na sua pista.
O encontro do Amilcar com o Rafael teve lugar no meu Austin. Era por volta das sete e meia da tarde. O Aristides montava a guarda na rua tangente à parte lateral da Catedral de Bissau, sob as árvores que seguem o passeio; eu, instalara-me dentro do jardim dos Serviços de Administração Civil. O Amilcar devia descer a rua aonde estava o Aristides, cortar à Avenida da República e seguir ao longo do mercado municipal.
Ali, estavam as paredes de um prédio em construção, de onde sairia Rafael Barbosa logo que as luzes do carro lhe dessem o sinal combinado, isto +e, fossem acesas e apagadas três vezes. Ele devia então cortar a rua em direcção ao mercado e entrar no carro que, entretanto, teria parado.
Tudo se passou como fora planeado. O Amilcar, tendo já o Rafael no carro, devia seguir em direcção ao porto e subir a Avenida da República. A minha presença na esquina do edifício da Administração Civil, e a do Aristides diante da Catedral, deviam assegurar-lhe que o trânsito estava livre. Se lá não estivéssemos, o Amilcar devia desembaraçar-se do Rafael e desaparecer por qualquer lado. O trânsito estava livre.
O Amilcar apreciou imenso o trabalho que estava sendo feito pelo Rafael e a sua perfeita compreensão da necessidade de união e do papel que o Partido aí devia desempenhar. Do seu encontro e das discussões que tiveram lugar, resultou a criação de uma Frente de luta - a Frente de Libertação da Guiné e Cabo Verde (FLGC). O Rafael e os seus companheiros continuariam, portanto, com o seu grupo, agindo em coordenação e sob a direcção do Partido. Deste grupo, deviam sair mais tarde, alguns militantes de grande valor para o trabalho clandestino que ia entrar na sua fase adulta.
O massacre de 3 de Agosto, com todo o seu terrível conteúdo de horror e desespero, servira para acordar a consciência de muitos nacionalistas hesitantes. Veio provar a necessidade de lutar por todos os meios para destruir o colonialismo, o que exigia um trabalho longo e duro, pleno de sacrifícios.
Na reunião com o Amilcar (19/9/959), depois do nosso relatório sobre os trágicos acontecimentos de 3 de Agosto, ele referiu-se longamente às lições que o Partido devia tirar desses acontecimentos, de maneira que não ficassem vãos os sacrifícios dos mártires de Pijiguiti.
Não podíamos brincar com um inimigo que provara mais uma vez ser de uma crueldade sem limites. Quando tivéssemos de agir contra ele, tínhamos de estar preparados para todas as eventualidades e ser capazes de não nos deixarmos matar impunemente.
Não restavam dúvidas que a repressão à greve de 3 de Agosto, e a maneira pronta como ela pôde ser organizada, provaram-nos que, na capital, o inimigo era e seria sempre mais forte do que nós. Tinha o seu exército, a sua polícia, os seus carros, o seu dinheiro para comprar a consciência de muitos dos nossos compatriotas. Quase toda a população urbana dependia das autoridades e das empresas coloniais para viverem; tudo isto colocava o grupo de patriotas nacionalistas numa situação de inferioridade manifesta.
Ao contrário, nas imensas zonas rurais onde vivia a maioria esmagadora do nosso povo, o homem não dependia dos colonialistas para viver: era, ao contrário, o homem do campo que alimentava a gente da cidade e fazia prosperar o colonialista. Era do campo que vinham o arroz, a mancarra, o coconote, as hortaliças, e grande parte do dinheiro dos impostos. A população ali, não só não dependia dos colonialistas, como ainda não se identificava com eles, o homem do campo conseguiu, através dos séculos, do tempo de escravatura ao dos trabalhos forçados e dos impostos arbitrários, encouraçar-se na sua própria personalidade cultural e era ali que encontrava as forças para resistir à poderosa influência do inimigo.
A lição mais importante tirada do massacre de Pijiguiti, dizia-nos, portanto, que seria junto da população camponesa do nosso país que teríamos de procurar as forças necessárias para combater e vencer o colonialismo. Não devíamos sacrificar os nossos homens, o capital mais precioso da nossa vida, numa confrontação desigual na cidade. Devíamos, sim, organizar a nossa gente cada vez melhor, prepará-la cuidadosamente para a grande batalha que seria desencadeada, primeiro, no campo, onde acumularia as forças necessárias para se alastrar às cidades.
Impunha-se, desde então, começar a seleccionar os jovens mais capazes que teriam de sair do país, para receberem no estrangeiro uma preparação especial com vista à realização da grande tarefa que tínhamos à nossa frente. Depois da criminosa e sangrenta repressão aos corajosos grevistas de 3 de Agosto - mártires da gloriosa libertação do nosso povo - íamo-nos preparar cuidadosamente para entrar com força irreversível numa nova fase de luta.
Foi num fim de tarde, alguns dias depois da chegada do Amilcar, que o Victor Maria me acompanhou à casa da sua mãe, para o conhecer. A sala estava cheia de visitas e, por isso, entrei só; trouxe o Amilcar para junto da porta onde ficara o Victor e fiz as apresentações, explicando que se tratava de um dos jovens que vinham mostrando um interesse sério pelo futuro do nosso país. O Amilcar manifestou o seu contentamento em encontrá-lo, felicitou-o pelo esforço que fazia para estudar e terminou dizendo ao Victor que continuasse sempre ligado a mim; que tudo quanto eu lhe dissesse seria como se tivesse sido dito por ele próprio.
Mussa Fati, em tempos jovem trabalhador da Granja de Pessubé, procurou o Amilcar para lhe dizer que pensava seguir imediatamente para Conakry em companhia do amigo e colega que o acompanhava. O Amilcar fez-lhe ver a sua preocupação em não querer que os nossos jovens saíssem do país, sem estarem criadas as estruturas para o seu acolhimento e sem terem sido definidas as suas tarefas no exterior. Era preciso ter em conta que o problema do emprego era tão difícil nos outros países como em Bissau.
Mussa era alfaiate e o amigo também andava a aprender a profissão, embora o desejo deste fosse de conseguir meios para estudar. O Amilcar insistiu no seu ponto de vista e disse ao Mussa que lhe oferecia uma máquina de costura para eles se irem aguentando, até poderem sair do país num quadro já organizado. O jovem Mussa respondeu que ia pensar no assunto.
No entanto, na tarde do mesmo dia, este mesmo jovem foi-me ver no meu local de trabalho, para arrumar determinados problemas que tínhamos em comum; pedia-me também que lhe comprasse uma faca de mato na loja Gouveia, onde os trabalhadores da empresa tinham descontos nos preços das mercadorias.
Insistiu em dar-me logo o dinheiro da faca, embora eu não estivesse interessado nisso. Falávamos à porta do escritório, que dava para um largo vão que começava no pátio e ia até à avenida.
Encostado à parede do edifício e olhando para nós, encontrava-se no passeio um outro jovem. Parecia mais novo que o Mussa, de estatura média, tinha olhos grandes e brilhantes e o seu todo irradiava simpatia e inteligência. Tinha ar de alguém decidido, embora nesse momento parecesse desconfiado.
Mussa explicou-me que o jovem em questão era seu amigo e colega. Chamava-se Chico Mendes; viria a ser, com o desenrolar da nossa gloriosa luta, um dos mais brilhantes dirigentes do Partido.
Quando falei ao Amilcar da visita do Mussa e do seu interesse em comprar uma faca do mato, mandou imediatamente procurá-lo, mas ninguém da família soube ou quis dizer para onde tinha ido. Quando nos reencontrámos na luta, explicou-me que ele bem queria ficar, embora tivesse já tudo pronto para partir naquele dia. Porém, o seu amigo, que não conhecia o Amilcar, não se sentira seguro por o <<senhor engenheiro ter insistido tanto>> para não saírem do país.
O Amilcar não prolongou muito a sua estada em Bissau, e partiu, também desta vez via Dakar, onde queria prosseguir os contactos tidos anteriormente com os nossos compatriotas. Juntamente com Henry Labery, Vicente Có e vários outros guineenses e cabo-verdianos, realizou uma reunião no quintal da residência dos meus sogros, Rua Fleurus, nº 20.
Nessa reunião, o Amilcar expôs a situação na Guiné depois do massacre de 3 de Agosto, falou da unidade da Guiné e Cabo Verde como condição indispensável para o sucesso da luta nos dois países, e fez um apelo para que os nossos compatriotas emigrantes se organizassem em movimentos de libertação da Guiné e Cabo Verde, para estarem em condições de apoiar eficazmente a acção que seria desenvolvida no interior dos nossos países.
Relatos de Luís Cabral, primeiro Presidente da Guiné-Bissau, no seu livro Crónica da Libertação - 1ª edição, Julho de 1984. Edições <<O Jornal>>, págs. 65 a 78.
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