QUO VADIS PAIGC

 

João António Galvão dos Reis Borges *

jgalborges@yahoo.fr

 04.07.2009

   

THE IMPORTANCE OF CABRAL

  Basil Davidson

  << The moral and political influence of Amílcar Cabral (1924-73) continues to widen among all those engaged in democratic campaigns and agitations up and down the world, and to cross even the most difficult of frontiers. Still more impressively, perhaps, is the fact that this widening influence continues to be reflected on the academic scene. Jock McCulloch's offering is a delightfully modest but very competent measurement by an Australian analyst of Cabral's political thought. With a resonance that is authentic as well as attractive, McCulloch seeks to place Cabral's 'theory' (although perhaps, with that word, overstating any claim that Cabral himself would have wished to make) in the context of the turmoil of its times; and if there are some (including myself) who will think that he exaggerates the influence of Fanon in Africa, his book can be recommended to everyone concerned with this particular debate. And this continuing importance of Cabral has many connotations: as, for example, in an interesting new book by one of Italy's leading Africanists, Professor Giuseppe Morosini (Il Mozambico Indipendente, Angelo, Turin 1984), as well as in the continuously fruitful research of Sweden's Lars Rudebeck whose studies of Cabral and Cabral's country have become indispensable points of reference.   (Notably, e.g. his Problèmes de pouvoir populaire: Transition difficile en Guinée-Bissau, Scandinavian Institute of African Affairs, Uppsala, 1982). And now we have a contribution even from Professor Dunn's Cambridge stable: the product of a doctoral thesis of 1980, by Patrick Chabal, based on capacious library research and some field study.>>

* Basil Davidson, African Affairs, The Journal of The Royal African Society, Volume 83, Number 330, p.117, January 1984.

  

O excerto transcrito e os acréscimos feitos com a leitura de < In The Twilight of Revolution: The Political Theory of Amilcar Cabral>, de Jock McCulloch e de <Amilcar Cabral: Revolutionary Leadership and People's War> de Patrick Chabal não podem senão fortalecer o enaltecimento e a exaltação desse grande filho do continente Africano.

Portanto, tornar-se-ia eventualmente   desnecessária muita tinta para dar ao Homem Amílcar Cabral a dimensão que é a sua: Combatente da Liberdade, Nacionalista e Internacionalista. Um Patriota Africano, um intelectual que se afirmou numa época extremamente conturbada pelas ideias e pelas forças em oposição.

Contudo, nunca será demais situá-lo e  julgá-lo na época que é a dele.  Na perspectiva que é a dele também. Só assim, poder-se-á procurar compreender o que terá gerado alguma polémica à sua volta. Igualmente penso ser justo reconhecer e dar alguma dimensão à sua criação, à sua obra, ao seu instrumento de tantas e reconhecidas vitórias: o glorioso PAIGC.

As mulheres e os homens, Guineenses e Cabo-verdianos, que abnegadamente deram as  suas vidas, aceitaram em todas as frentes sacrifícios ímpares para consumarem o Projecto Libertador que conduziu esses países à Independência Nacional, naturalmente  que a História da Guiné-Bissau e a História de Cabo-Verde, não ousarão e nem poderão  ofuscar ou mesmo apagar esse feito. Julgo, no entanto conveniente lamentar os seus períodos de manifesta violência gratuita. Não obstante compreender que  essa violência é, ao que parece, inerente e endógena a qualquer revolução.

As guerras ditas "santas" e muitas outras revoluções que a História registou confirmam esse "fatalismo" ou essa "fatalidade" inerentes à mudança de um statu quo pela violência das armas. A este propósito que me seja permitido referir, entre outros, Camille Desmoulin e Georg Foster e que sejam lembrados sem cronologia, Robespierre, Fouchet, Danton, Stalin, Fidel, Mao.

Se houver no passado outros Partidos ou Movimentos reclamando a independência de ambos os países, essas mesmas formações políticas nunca deixaram o crepúsculo, nunca tiveram  audiência nem auditório para se afirmarem e muito menos passar à acção. Portanto, toda tentativa de comparar essas formações "políticas" ao glorioso PAIGC não é mais do que retórica estéril, uma negação sem escrúpulos dos factos.

E creio também que só um observador desatento e desinformado não concordará que, no contexto actual da Guiné-Bissau − e se respeitada a postura democrática num estado de direito, um PAIGC da têmpera do glorioso PAIGC de então, o PAIGC dos "históricos" com Homens da têmpera de um Oswaldo Vieira e de muitos outros que poderia mencionar − os desmandos da actual classe político-militar encontrariam seguramente uma conveniente e radical "medicação".  

Por um lado se se reconhece ou se é tido que o 25 de Abril de 1974 é a consequência das brilhantes Lutas de Libertação Nacional das ex-colónias portuguesas e da resistência e acção das forças democráticas e antifascistas portuguesas, por outro ouso corrigir e que me falte modéstia, que a causa primeira da queda do regime colonial-fascista a 25 de Abril de 1974 foi, sem equívocos, a derrota militar sem apelo nem agravo, infligida pelo PAIGC ao exército colonial.

Segundo Basil Davidson, os mísseis terra-ar SAM-7 recebidos pelo PAIGC em fins de 1972, "não reduziram seriamente" a eficiência e a efectividade da Força Aérea Portuguesa; na realidade os SAM-7 e a perícia dos militares do PAIGC aniquilaram com brilhantismo, irreversível, irremediável e definitivamente a Força Aérea Portuguesa. Os "Pastro garandi (bîm) ku si óbus di fûgu (bombas), Pastro garandi (bîm) ku si óbus di matança (bombas)"   como cantou o nosso saudoso e malogrado José Carlos Schwarz, perderam as asas e não voaram mais! Os militares do PAIGC libertaram também os "céus" da Guiné-Bissau.  

Não foi portanto a "perspectiva" de uma derrota militar em África que permitiu o derrube da ditadura colonial-fascista de Salazar-Caetano. Foi sim a derrota (real) infligida e, repito, sem apelo nem agravo, pelo PAIGC ao exército colonial.    

E o reconhecimento tácito dessa derrota militar vem da voz de um antigo Comandante em Chefe das Forças Armadas Portuguesas na Guiné que, numa conferência de imprensa proferida em meados de 1975, declarou que as suas tropas tinham alcançado os limites da exaustão psiconeurológica, do que se infere que a dado momento o exército colonial na Guiné-Bissau não tinha energias (força anímica) e, muito menos, lucidez para continuar a resistir. Portanto!...

E esse PAIGC vitorioso, de que tanto necessita a Guiné-Bissau de hoje, não pode ser substituído por um PAIGC sem inércia, sem que os Princípios de então sejam convertidos, sejam reciclados para se adaptarem, para se ajustarem aos novos tempos e às novas realidades. Porém, esse desejado PAIGC não poderá tampouco permitir que a avaliação dos "melhores filhos da nossa terra" continue sendo aferida com base na  antiguidade dos seus militantes por mais valorosos que sejam ou que tenham sido. Essa avaliação deve sobretudo basear-se na qualidade, na competência, na abnegação e na honestidade dos seus actuais e dos seus futuros militantes, como sempre quis Amílcar Cabral, e como deve  querer qualquer lúcido dirigente.  

Sem questionar que uma estátua seja um irrefutável símbolo de Homenagem --- como a que recentemente teve lugar no Aeroporto Oswaldo Vieira em Bissau --- creio entretanto que Amílcar Cabral se sentiria bem mais homenageado e bem mais feliz (!) se soubesse implementados os Princípios que lhe eram caros: a honestidade, a competência, a seriedade, a lealdade e a abnegação dos seus compatriotas para que as suas tão queridas terras, Guiné-Bissau e Cabo-Verde, alcancem a verdadeira Liberdade, a verdadeira Paz e finalmente os almejados Progresso e Felicidade dos seus respectivos Povos. E aqui creio que não pairam dúvidas!   

Tomada do Poder pela Pequena Burguesia  

               “....Devemos ter em consideração todos esses condicionalismos no momento em que a nossa burguesia tomar o poder  (…)  ignoro em nome de quem, mas o facto é que o tomará.” (Obras escolhidas de Amílcar Cabral, A Arma da Teoria, Unidade e Luta, volume 1, 2a edição, Seara Nova 1978, textos coordenados por Mário de Andrade - Amílcar Cabral p. 104) 

Gostaria apenas de manifestar a opinião que, contrariamente ao vaticinado por A. Cabral, não estou convencido, ou melhor, que estou longe de estar convencido, de que foi a burguesia guineense que tomou o poder na Guiné-Bissau.

E a minha primeira tentativa de justificação repousa no facto de que, mesmo reconhecendo tratar-se de uma classe com arrojadas formas de "mimetismo" e que terá (por isso) tentado, (ou) sido tentada a "partilhar" o poder ou servi-lo no intuito de colher benefícios e dividendos, duvido que essa mesma classe estivesse, na altura da tomada do poder, suficientemente apta para se furtar à vigilância e ao controle da classe dominante, a classe que "assumiu" Bissau em Setembro de 1974. Classe esta ainda profundamente marcada pelas suas origens. Tratava-se de uma  grande massa de camponeses e outras componentes do povo guineense "formatadas" pelas legítimas aspirações de classe que então se julgavam consentâneas com os  justos desígnios da Luta de Libertação Nacional.

Daí que a escolha de responsáveis para os diferentes níveis da administração do Estado  ainda numa fase embrionária, e  para outros postos de gestão do seu aparelho, de empresas estatais e paraestatais, da função publica e de outros, não estava em sintonia com as aspirações da burguesia nacional.

De facto essas escolhas não eram, nem pela qualidade nem pelo perfil, do agrado dessa burguesia. No mesmo passo julgo conveniente registar que a chamada burguesia era detentora de comportamentos de postura diferente, de um outro "modus vivendi". Alias, diferente de tudo quanto me foi dado ver...

A segunda tentativa de justificação repousa no facto de que, tivesse a burguesia guineense tomado o poder, ela não renunciaria certamente, não "trairia" um dos princípios que é caro a qualquer burguesia enquanto classe social, ou seja que para qualquer posto de trabalho,   se opte pelo mais capaz e mais competente.   E isto porque a capacidade e a competência são as únicas armas que julga dispor para assegurar a sua "hegemonia" e se contrapor às outras classes sociais que com ela competem pela conquista do poder.

Reitero pela parte que me cabe, não ter sido a burguesia guineense quem assumiu o poder em Setembro de 1974. Contudo, não afasto a ideia de que esse desejo tenha estado sempre latente e que ela (a burguesia) estivesse à espera de um "clima" mais favorável para se afirmar, muito embora ela nunca tivesse encontrado, no pós-independência, "espaço político" para materializar as suas intenções e as suas aspirações. Mesmo no que se refere aos militantes e quadros do Partido, de origem pequeno-burguesa, fiquei com a impressão, para a qual não procurarei justificações, de que nem todos de entre esses mereceram o mesmo tratamento ou a mesma confiança do Poder instalado em Bissau em Setembro de 1974. E não pretendo, por compreensíveis razões, dar corpo a esse meu sentimento.

Mas sabendo eu, onde e como se "conscientizaram" os detentores do Poder na Guiné-Bissau, é minha convicção de que a burguesia guineense ainda tem muito que esperar. É esta a opinião que defendo!

Talvez o liberalismo económico venha a proporcionar a essa burguesia a possibilidade de se afirmar.

Antes de passar a outra "rubrica" permitam-me que abra um pequeno parêntesis para sugerir a todos quantos queiram ter informações mais aferidas e cuidadas sobre a Guiné-Bissau, sobre o PAIGC e sobre Amílcar Cabral, que leiam (e podem fazê-lo através do NET) “PROBLEMES DE POUVOIR POPULAIRE ET DEVELOPPEMENT; Transition difficile en Guinée-Bissau, de Lars Rudebeck, NORDISKA AFRKAINSTITUTET, UPPSALA, Research Report n° 63 “.

A leitura da obra ora sugerida permitirá aos interessados, terem acesso a uma informação mais detalhada e precisa, o que irá certamente "compensar" as insuficiências e imprecisões deste meu modesto artigo de opinião.

De igual modo aproveito para afirmar que me sentirei, em todas e quaisquer circunstâncias, beneficiado com qualquer opinião contrária ainda que seja firmemente discordante, desde que sustentada por válidos e credíveis argumentos. Porém, sempre vou dizendo que por mais válidos e credíveis que sejam os argumentos, as vozes discordantes  terão de saber respeitar a ética e deverão dar provas de transparente decoro.

 

Partir da Realidade da Nossa Terra. Ser Realistas

 

               Amílcar Cabral, sempre Amílcar Cabral!

               “...A nossa opinião é a seguinte: O homem é parte da realidade, a realidade existe independentemente da vontade do homem, e o homem, na medida em que adquire consciência da realidade, na medida em que a realidade influencia a sua consciência, cria a sua consciência, ele pode adquirir a possibilidade de transformar a realidade pouco a pouco. Esta é que é a nossa opinião, digamos o princípio do nosso Partido, sobre as relações entre o homem e a realidade. Amílcar Cabral p.130 “.

  Creio que é neste extracto da análise que Amílcar Cabral faz da dualidade,  da interdependência do homem com a  realidade que o envolve, que podem ser descortinadas as razões ou as causas do "declínio", da manifesta perda de eficiência e de "brilho" do PAIGC, pós-independências.

O PAIGC do pós-independências, desprovido dos recursos e do concurso de Amílcar Cabral, não quis e/ou não soube (pelo menos na Guiné-Bissau) fazer seus aliados, o tempo e a "sapiência" do tempo. E também não quis e/ou não soube (pelo menos na Guiné-Bissau) respeitar, interpretar e compreender o sábio ditado africano: “Se quiseres ir depressa, vai só; Se quiseres ir longe, vai acompanhado “. E foi pena que assim não tivesse sido! 

A implementação da Luta Armada de Libertação Nacional conheceu avanços e recuos, acabando entretanto por ser vitoriosa. Mas esses avanços e esses recuos não poderiam ser compreendidos se não tivessem sido interpretados. E o factor Amílcar Cabral, uma vez mais, terá naturalmente contribuído de forma inequívoca na interpretação das causas que permitiram os avanços e das causas que dificultavam esses mesmos avanços.  

E no contexto da luta armada, esse processo de ajustamento e reajustamentos sucessivos teve que se processar à luz de uma cuidada observação do meio rural, o teatro das operações, e das suas particularidades (a realidade em face). E são seguramente essas particularidades que explicam, por exemplo,  a maior ou menor adesão à Luta Armada de Libertação Nacional, deste ou daquele grupo étnico. 

Na medida em que essas particularidades eram descodificadas, interpretadas, compreendidas e interiorizadas, melhor armados, mais aptos se tornavam os militantes do PAIGC para progredirem na boa direcção. 

Não me considerando um perito, creio também ser pela correcta interpretação dessas particularidades que a estratégia de luta ou para a luta, foi definida. Digamos ser necessário um incessante fluxo de "informações" entre o homem, o agente transformador com as suas aspirações e com os seus projectos e a realidade que ele pretende transformar. 

Na realidade esse fluxo e a qualidade das "informações" nele contidas geraram uma nova sinergia e determinaram como consequência, o ritmo e a qualidade das transformações a operar ou já operadas. Breve, se o homem não investir correctamente para analisar e finalmente compreender a natureza e as particularidades de cada realidade (o ADN da realidade!), ele corre sérios riscos de desfigurar a realidade em vez de, como deve ser seu objectivo, a transformar para seu benefício. 

Qualquer imposição gera uma resistência que tende a transformar-se em rejeição. Ora foi pela escamoteação dessa realidade que o PAIGC pós-independências se tornou inoperante! Ao pretender que os seus princípios corriam riscos de serem traídos se aplicados diferentemente, o Partido comete um erro de "lesa-majestade". Ele renuncia à dinâmica que lhe assegurou os êxitos alcançados durante a Luta Armada de Libertação Nacional − a interdependência do homem e da  realidade que o cerca. 

A realidade dos centros urbanos não tem as mesmas vestes que as da realidade do meio rural. Daí que e por respeito a essa verdade de La Palice , os princípios deveriam ter sido "doseados" em função da receptividade com que as populações dos centros urbanos "estariam dispostas ou aptas" a acolhê-los (os princípios). 

Um médico, uma vez diagnosticado o mal do seu paciente, doseia a medicação em função de certos parâmetros. Os meus parcos conhecimentos permitem-me reconhecer pelo menos três: o peso, a idade do enfermo e naturalmente a gravidade do mal (espero que nenhum médico comente o meu artigo!...). Porém ao dosear a medicação em função desses parâmetros, o médico não "adultera" a ou as moléculas activas do medicamento!

Inferindo, se o Partido aplicasse os Princípios em função dos parâmetros determinados por cada realidade, ele, (o Partido), não adulteraria em circunstância nenhuma a sua natureza. Mas essa imposição dos princípios sem a observância das realidades, particularmente nos centros urbanos, gerou a resistência, a rejeição e finalmente uma quase ruptura.  Mas as razões ou causas do "declínio" do PAIGC pós-independências, não ficam por aí.    

Mais tarde a situação económica e social deteriora-se ainda mais e em Junho de 1980 o Conselho Superior da Luta, órgão supremo entre dois congressos do PAIGC, reúne-se em Bissau. O resumo dos seus trabalhos foi publicado no jornal “Nô Pintcha” sob o título: “Alerta Contra os Desvios à Linha de Cabral”. 

O relatório apresentado nessa ocasião pelo então Secretário Geral do PAIGC Aristides Pereira, tomava a forma de uma peremptória e verdadeira condenação a todas as formas de desvios à linha de A. Cabral. E a resolução final alertava os militantes e quadros do Partido contra todos os desvios ideológicos e particularmente contra os que resultavam da passividade e da falta de rigor ideológico tais como a irresponsabilidade, a tolerância aos erros, a negligência no trabalho, o pragmatismo excessivo que não tome em conta os elementos políticos do problema a solucionar, a atitude tecnocrata e a burocracia erigida em forma de governação, a improvisação como método de trabalho, a tendência a se esquivar às orientações e ao controlo do Partido, o favoritismo (amiguismo), o nepotismo, a ostentação e a ambição pessoal. 

O conteúdo da resolução final do Conselho Superior de Luta de Junho foi portanto duro e sem equívocos...O grande PAIGC estava enfermo! E quando adicionarmos a este quadro pouco animador uma mais que sentida falta de produtos de base que não só o arroz, tanto em Bissau como no interior do país, compreende-se então porque se havia esgotado a paciência popular.

E assim se criaram as condições que deram à luz o 14 de Novembro que é do conhecimento de todos.

 

<< A Pequena Burguesia e o Suicídio de Classe >> 

 “... Em suma, que exigimos da pequena burguesia? Que se suicide. Com efeito, a revolução elimina-a do poder, submete-a ao controlo dos operários e dos camponeses e põe cobro ao seu regresso para a etapa da burguesia propriamente dita.” (Amílcar Cabral p. 105). 

A minha experiência vivida leva-me a discordar, respeitando obviamente a convicção (?) de Amílcar Cabral, de que à pequena burguesia não restava alternativa outra, que o suicídio de classe − o haraquiri. Suicídio de classe, haraquiri, ditadura do proletariado, são expressões, são termos que não me são alheios por terem estado muito em voga nos anos 60 ou provavelmente bem antes. Conheço esse "catecismo"! 

Porém os tempos fizeram-me "constatar" que essa dita burguesia é avessa ao suicídio. Ela transforma-se. Ela pode "prestar-se" a mutações, ela procura o viés e, com muita habilidade, adapta-se a realidades que lhe não são favoráveis ou que lhe são mesmo adversas. Ela consegue "mandar hibernar" as suas verdadeiras convicções e os seus verdadeiros anseios. E, porque hábil e subtil, ela até consegue, se necessário, "anestesiar" essas convicções e esses anseios para melhor responder às exigências, às palavras de ordem do poder vigente; “a matter of either deferred or postponed gratification “, em suma, a arte da sobrevivência. 

E, como confirmação, asseguro-vos ter tido a oportunidade de presenciar ridículas, penosas, quiçá "dolorosas" tentativas de "suicídio de classe". Certo, uma estranha forma de suicídio. Um suicídio sem contorções, sem convulsões, um suicídio todo sublime...Em plena hasta pública, em altos e flagrantes berros de deflagrantes decibéis: “Abaixo môm móli ”; “Abaixo barriga largo ”; “Abaixo oportunistas”, e tudo num "élan" de enorme fervor patriótico. Chegavam a atingir a exaustão! E constou-me que, do outro lado da paliçada, nas Ilhas, então irmãs (!), os berros chegaram a ser de outra génese: “ Abaixo os intelectuais ”.

Mas se esses "mártires da revolução" chegaram a consumar o "suicídio", esse "suicídio" foi de pouca dura pois não tardaram a ressuscitar, alguns antes do terceiro dia!... E hoje, os ressuscitados, vigorosos e resplandecentes, estão confessos às delícias do neoliberalismo. Portanto, meia basta!

 

O Calcanhar de Aquiles

Este modesto artigo de opinião "obriga-me" por uma questão de ética a não mencionar a Guiné-Bissau sem mencionar Cabo-Verde, a não mencionar igualmente o Povo da Guiné-Bissau sem mencionar o Povo de Cabo-Verde. Como pronunciar-se sobre Amílcar Cabral sem que se respeite a antecedente premissa?!

Porém e guardando um merecido respeito a Amílcar Cabral, procurei argumentos que desacreditem a ideia de que Amílcar Cabral pretendesse uma Guiné-Bissau e um Cabo-Verde constituídos num Estado unitário no pós-independência, sem que me saiba, entretanto, convincente. 

Continuo  esta rubrica com vários extractos de um proeminente especialista/analista (se não o maior) da Guiné-Bissau, do PAIGC e de Amílcar Cabral, o sueco Lars Rudebeck.

" Le projet d'unité entre la Guinée-Bissau et le Cap-Vert"  

               « L'idée et le but d'unité politique entre la Guinée-Bissau et le Cap-Vert étaient inscrits dans le programme du PAIGC depuis les origines du mouvement, bien que de manière assez vague et générale. Le programme original du PAIGC, du temps de la lutte de libération nationale, se contente de parler "d'union" dans le cadre d'une "patrie africaine forte et progressiste" et de constater que "la forme d'union entre les deux peuples sera établie par leurs représentants légitimes, librement élus". Des formulations plus fortes, comme "état unitaire" ou "unification dans un seul état", ont aussi été utilisées dans des textes officiels. Mais après l'établissement de la république souveraine et indépendante du Cap-Vert en 1975, il n'a jamais été sérieusement question d'unité au niveau étatique, sinon à très long terme.  

               Deux facteurs importants unissent pourtant les deux pays: leur histoire commune sous la colonisation portugaise et leur lutte commune contre cette colonisation dans le cadre du PAIGC. Mais ces deux facteurs, fondamentalement unificateurs, ont à la fois divisé et uni la Guinée et le Cap-Vert.  

               Le projet d'unité continuait donc à vivre au niveau symbolique et idéologique. Mais en réalité la Guinée et le Cap-Vert marchaient côte à côte plutôt qu'ensemble en tant que pays indépendants.  

               La facilité et la rapidité avec lesquelles les dirigeants des deux pays se sont adaptés à la scission du PAIGC après le 14 de Novembre 1980 montre clairement que la volonté politique d'unité était déjà profondément sapée longtemps avant le coup d'état. »

Escuso-me de comentários e deixo a cada um as ilações que lhe aprouver tirar.

Efectivamente,  nunca houve algo escrito, referendado, referenciado e com peso de lei, que fizesse aceitar a expressão unidade como sinónimo de unicidade. Portanto, porque duvidar ou negar que para Amílcar Cabral unidade significava, ou  melhor, era apenas a conjugação de esforços (condição sine qua non) para a gigantesca tarefa que se impunha para a independência dos dois países, a Guiné-Bissau e Cabo-Verde?! 

A genialidade de Amílcar Cabral foi a de convencer a opinião pública internacional, na altura extremamente sensível às manifestações emancipadoras e independentistas, que o PAIGC de que ele era líder, tinha o aval do Povo da Guiné-Bissau e o aval  do Povo de Cabo-Verde. Convenhamos que, ser-se aceite em instâncias internacionais como "representante" de dois Povos e líder de um partido para dois países sem continuidade territorial, terá requerido muito "engenho e arte...". Muito conhecimento de causa e muita habilidade.  O contexto foi naturalmente favorável para que Amílcar Cabral não corresse o risco de "ficar no cais" e não "apanhar" o comboio dos emancipadoras.

No contexto da "guerra fria" em que se vivia na altura, a "indexação" de Cabo-Verde à Luta Armada de Libertação Nacional em solo guineense justificava-se, não viesse  Cabo-Verde a vincular-se mais tarde a outras vertentes que não as norteadas pelo espírito de Bandung. O espectro do Pacto do Atlântico Norte (OTAN) pesou sobremaneira na decisão de mobilizar as forças vivas de Cabo-Verde para aderirem ao projecto Libertador, então embrionário na Guiné-Bissau. E no contexto da conjuntura internacional dessa época, essa decisão foi, em todos os ângulos de análise, (a meu ver) judiciosa.

Mas se  foi o PAIGC de Amílcar Cabral a institucionalizar, a "legislar" e a fazer princípio inalienável, essa "anexação-indexação" de reconhecida magnitude não só para a independência de Cabo-Verde como também para os países africanos limítrofes em particular e para a África no mais lato senso. Também é facto que essa decisão, bem apadrinhada e massivamente suportada pela "nossa margem da guerra-fria..." "tornou convincentes" todos os supramencionados argumentos de Amílcar Cabral. Repito, o contexto foi crucial na e para a aceitação desses argumentos.

Não esqueçamos que Cabo-Verde foi, desde sempre, ainda que hipoteticamente, tido em termos de geopolítica e de geoestratégia, de um valor e de uma importância inestimáveis. Muitos argumentos, plausíveis e menos plausíveis, terão sido utilizados para que a futura independência de Cabo-Verde não escapasse ao espírito de Bandung (não-alinhamento).  

Porém, a impossibilidade e/ou inviabilidade de uma Luta Armada de Libertação Nacional em Cabo-Verde força Amílcar Cabral a encontrar uma solução para a questão cabo-verdiana. E é face a esse sério problema que o génio de Amílcar Cabral ganha toda a sua dimensão e toda a sua amplitude. Amílcar Cabral consegue mobilizar os nacionalistas cabo-verdianos em Cabo-Verde e na diáspora, convencendo-os a aderirem à Luta Armada de Libertação Nacional em solo guineense. E com a adesão dos nacionalistas cabo-verdianos à causa do PAIGC, estavam assim criadas as premissas para que a Guiné-Bissau e Cabo-Verde, no quadro de uma luta comum, acedessem à independência nacional.  Amílcar Cabral materializa assim o seu sonho de Africano!

A Unidade para Amílcar Cabral era uma estratégia: a conjugação de todos os recursos, esforços, e sacrifícios, em toda a acepção da palavra, para que a Guiné-Bissau e Cabo-Verde acedessem às suas independências políticas. E a futura relação entre os dois países seria  determinada e definida pela vontade, livremente expressa, dos dois povos.

E o seu sonho foi realizado!

Entretanto creio que seria menosprezar ou subestimar a inteligência de Amílcar Cabral, acreditar que ele tivesse alguma vez pensado ser possível, depois das independências, a unidade político-administrativa de dois países com:


a)  Descontinuidade territorial e "configurações geográficas" pouco similares − um arquipélago em pleno Atlântico e um país incrustado na costa ocidental do continente africano.


b)  Características etnológicas e etnográficas pouco conciliáveis e/ou conciliantes.


c)  Estruturas socio-económicas pouco convergentes.


d)  Marcantes diferenças culturais: quer entre as ilhas de Cabo-Verde, Barlavento e Sotavento, quer na matiz étnica da Guiné-Bissau e, mais acentuadas, entre os dois países.

Múltiplos e demasiadamente complexos, factores e variáveis, para que “esse suposto” objectivo pudesse ser viabilizado! ... E a lista não é exaustiva!

Se a memoria não me trai pude ler:

UNIDADE na Guiné-Bissau, UNIDADE em Cabo-Verde e... mais tarde uma consulta à Assembleia Popular de cada um desses países soberanos para definir o quadro da futura relação entre a Guiné-Bissau e Cabo-Verde. E perco-me ao procurar compreender tanto pragmatismo do PAIGC pós-independência em continuar querendo fazer como "raison d'être" a unidade político-administrativa da Guiné e de Cabo-Verde independentes. Como continuar querendo materializar um projecto sujeito ao escrutínio de uma premissa de capital importância: “... uma consulta à Assembleia Popular de cada um dos Países soberanos para definir o quadro da futura relação entre a Guiné-Bissau e Cabo-Verde. Nessas condições qual seria o futuro do PAIGC se esse escrutínio lhe fosse desfavorável?!

E por Unidade entendo uma coesão sem interstícios. Uma ampla e transparente concórdia nacional que sirva de alicerce, de fundação e que seja a premissa PRIMEIRA para o desenvolvimento socio-económico e o progresso da Guiné-Bissau e de Cabo-Verde.  

Se foi possível ao PAIGC de então encontrar os melhores filhos da nossa terra para levar a cabo e com êxito exemplar o seu Programa Mínimo, terá faltado ao PAIGC do pós-Amílcar Cabral a vontade politica para descobrir (com o intuito de aceitar...) outros bons filhos da nossa terra e da mesma têmpera (pois que os havia e os há), para se associarem ao cumprimento do Programa Maior do PAIGC, bem mais complexo e de difícil execução no dizer de Amílcar Cabral... e provas não faltam. E eles, esses bons filhos estavam à mão de semear e não mereciam e nem merecem a adjectivação de oportunistas (como amiúde se ouvia...) por aderirem à causa nacional, que é direito e obrigação de TODOS os Guineenses e Cabo-verdianos. Como considerar "oportunista" um Guineense ou um Cabo-verdiano que quisesse dar a sua contribuição às tarefas de reconstrução nacional dos seus respectivos países?!


Certo que era naturalmente anseio de Amílcar Cabral (mas como não ser?) que a Guiné-Bissau e Cabo-Verde tivessem um "porvir risonho" e sobretudo, que viessem a ser países amigos. Porém, essa tarefa de construir duas pátrias felizes e progressistas não cabia só a ele e o fulcral simbolismo de Ensalmá o atesta! Essa tarefa caberia às gerações vindouras de ambos países. Ele disse:

"Jurei a mim mesmo que tenho que dar a minha vida, toda a minha energia, toda a minha coragem, toda a capacidade que posso ter como homem até ao dia em que morrer, ao serviço do meu povo... ao serviço da causa da humanidade para dar a minha contribuição, na medida do possível, para a vida do homem se tornar melhor no mundo. Este é que é o meu trabalho”.

Amílcar Cabral – Seminário de Quadros, 1969 

Não sou tampouco o único a não acreditar que os seus indeléveis laços afectivos à Guiné-Bissau e a Cabo-Verde pudessem condicionar a lucidez de Amílcar Cabral e levá-lo a crer ser possível a unidade político-administrativa da Guiné-Bissau e de Cabo-Verde uma vez as independências adquiridas.
O conceito de UNIDADE de Amílcar Cabral não tem  (a meu ver e não sou o único a partilhar essa convicção...) nada de FUSIONISTA, de fazer a "simbiose" de dois Países!  Incluir essa ideia no "sonho" de Amílcar Cabral é pôr em causa a sua lucidez e a sua inteligência. E lamentável é, como teve oportunidade de dizer um grande amigo meu, não se ter assim entendido e/ou compreendido ab initio

E convenhamos que esse "quasireligioso" conceito de unidade fusionista veio inviabilizar qualquer tipo de projecto mútuo, ainda que modesto fosse... E creio também ser tempo de se reconhecer que o 14 de Novembro de 1980 não é mais do que a consequência das implementações desse "quasireligioso" conceito de Unidade Fusionista e não a causa da ruptura entre os dois países!  A verdadeira causa, essa, vem de bem mais longe e tem outras raízes... Os anteprojectos das constituições, a pena de morte na Guiné-Bissau e outras eventuais medidas que terão escapado ao meu conhecimento, velhos ressentimentos por exemplo, foram a gota que fez transvazar o vaso. Porém darei especial ênfase às disparidades nos anteprojectos de Constituição. Essas disparidades mutilaram o EGO dos Guineenses. Mais acrescento: se as "motivações" para um 14 de Novembro são guineenses, se a "execução" de um 14 de Novembro cabia aos guineenses, o Projecto, esse, é bem cabo-verdiano! Mas quem são e onde estão os "Pilatos"?

 É entretanto insípido ou de muito mau gosto, concluir ou afirmar que o POVO guineense "detesta" o POVO cabo-verdiano e/ou vice-versa! Uma hedionda e baixa forma de apreciação do Povo da Guiné-Bissau, do Povo de Cabo-Verde e da relação entre ambos. Um lugar comum, um juízo apressado e de contornos nativistas, incoerente e inconsistente com a realidade. Que se libertem os Povos da Guiné-Bissau e de Cabo-Verde de sentimentos gerados por diferentes formas de nacionalismo estreito, de ambas as partes, esses Povos compreenderão que têm muito em comum para serem povos amigos. Certo, os conflitos e os interesses de classe entre as classes de guineenses e de cabo-verdianos que  reclamaram o direito aos postos de direcção em ambos os Países, efectivamente contrariam (sem negar) esse meu sentimento e não me furto a essa constatação. Porém, se se ajuizar a minha convicção à luz da essência e do conceito de POVO, então continuarei a acreditar que o meu sentimento prevalece. Entretanto para compreensão de tudo quanto possa ainda contrariá-lo, é preciso recuar no tempo. A História colonial comum a ambos os Povos é portadora de respostas. 

Mas é tempo de sermos honestos!

Como conduzir, implementar um projecto de unificação sem uma consulta popular livre, transparente e isenta de todas as formas de doutrinamento ou determinismos?!  

E eis a questão jamais respondida: Porquê e para quê a Unificação da Guiné-Bissau e Cabo-Verde para o pós-independências?! Creio existirem tratados, acordos e outras formas de convergência de interesses mútuos...

O 14 de Novembro de 1980 se "mérito" teve, foi o de ter posto termo ao período de dormência de uma velada resistência a essa unidade fusionista, de ter lancetado esse "abcesso". De ter posto fim a esse "pesadelo". Não foi “Um alívio", foi “O alívio"! Facto irrefutável! Ouso mesmo reconhecer algum "mérito" aos que conduziram o 14 de Novembro! Estive presente e sei o quanto esse levantamento militar poderia ter sido desastroso (...). Só um ingénuo não sabe o quanto podem fazer as "massas", com a adrenalina ao rubro, quando podem quebrar a inércia do repouso!... Bom entendedor, meia basta! Mas devo também reconhecer que o "Movimento Reajustador" pouco reajustou. Foi sol de pouca dura! O "Movimento Reajustador" perdeu infelizmente a oportunidade de ser o dealbar, o amanhecer de tantas esperanças, sempre sufocadas.   

E nunca passou também despercebido que essa velada resistência era  sigilosamente gerida nas cúpulas e sempre vivida em surdina nas bases. Quem não sabe, ou finge não saber, que o 14 de Novembro de 1980 foi amplamente vitoriado pelas massas populares na Guiné-Bissau e em Cabo-Verde?!

Contradizer-me, é querer tapar o céu com uma peneira...

A aplicação do verdadeiro conceito de unidade de Amílcar Cabral (luta comum para a conquista das independências)  não poderia, em circunstância nenhuma, constituir razão para um conflito entre o Povo da Guiné-Bissau e o Povo de Cabo-Verde. Porém, o conceito fusionista de unidade do pós-independências (de fazer da Guiné-Bissau e de Cabo-Verde um Estado único), esse,  esteve ab initio em conflito permanente com o Povo da Guiné-Bissau e com o Povo de Cabo-Verde. E é de  lamentar que nunca se tivesse compreendido, em tempo devido, essa transparente realidade!

A UNIDADE concebida por Amílcar Cabral foi uma genial estratégia para levar a Luta Armada de Libertação Nacional a bom porto. Para assegurar as independências da Guiné-Bissau e de Cabo-Verde. Foi um meio, um instrumento e NUNCA um FIM!

E é nessa vertente de Unidade que continuo acreditando,  estando certo não ser o único!... 

 

« PAIGC, Para Onde Vais; Para Onde nos Levas »

Os últimos acontecimentos na Guiné-Bissau provam que a direcção do actual PAIGC, o Partido no Poder, hoje guineense na sua plenitude, não tem a situação em mão. E também não tem, não sabe, ou não pode, ao que parece,  encontrar adequadas soluções.  

Um partido politico não se define pelas suas siglas. Estas servem apenas para que o eleitorado o identifique durante as eleições ou durante outras formas de escrutínio. Um partido político não pode tampouco quedar-se num simples instrumento eleitoral; num trampolim para o Poder. Um partido político deve ser  bem mais que isso. 

Um partido político define-se pelo seu conteúdo político-ideológico e pela observância dos seus Princípios. Nessa perspectiva, qual então a linha político-ideológica do PAIGC hoje no poder? Qual o seu Programa? Quais as suas estruturas? Quais os seus Princípios? Quem responde hoje pelo PAIGC? O vazio é enorme, é trágico.  

Se o porte de uma súmbia pode ser um "sinal" de identificação com Amílcar Cabral, ele não pode ser, e de forma alguma, prova de COERÊNCIA com os seus Princípios.    

Amilcar Cabral está hoje, lamentavelmente, reduzido à condição de "catchu na môm de meninu". O ignóbil Inocêncio Kani faz o Povo da Guiné-Bissau injustamente pagar um elevado tributo por esse não menos ignóbil crime: o assassinato de Amílcar Cabral. E as provas estão patentes, à vista desarmada!

O PAIGC que conduziu vitoriosamente a Luta Armada de Libertação Nacional, era conduzido à luz dos seus Princípios, tinha um conteúdo politico-ideológico bem claro e bem definido, tinha um Programa Mínimo e um Programa Máximo e era dotado de múltiplas estruturas para o cumprimento desses Programas. 

Malgrado as suas fraquezas e um percurso pouco brilhante, sobretudo no pós-independência, esse PAIGC de então conseguiu cumprir vitoriosamente o seu Programa Mínimo: a independência da Guiné-Bissau e a independência de Cabo-Verde.

Entretanto esse mesmo PAIGC deixou transparecer ao longo do pós-independência, evidentes provas de carência em recursos humanos para levar a bom termo, e de forma eficiente, o seu Programa Máximo. E o apelo de Amílcar Cabral, na fase final da Luta Armada de Libertação Nacional, para o almejado Encontro de Ensalma, demonstra que essa carência era do seu conhecimento e constituía uma premente preocupação.  

Mas quero de forma clara, fazer a distinção entre o glorioso PAIGC que conduziu vitoriosamente a Luta Armada de Libertação Nacional e o actual PAIGC e sobretudo entre as gloriosas Forças Armadas Revolucionárias do Povo, que corajosa e abnegadamente construíram essa vitoria e as actuais Forças Armadas da Guiné-Bissau. E as razões são evidentes. E de permeio, seria desonesto não mencionar os militantes e quadros do PAIGC que, também e de forma abnegada, participaram nessa epopeia. Essa distinção é um dever e um acto de justiça. 

Entretanto, este modesto artigo estaria e ficaria desprovido de fundamento se não fosse portador de um apelo às Forças Armadas.

 

Creio ser bem evidente que é nas actuais Forças Armadas guineenses que repousam as causas da incompreensível e absurda situação que vivemos na Guiné-Bissau. Essas causas são complexas e difusas. E não me sinto, infelizmente, portador de uma  solução.

 

Porém, quando se preconiza como solução à já citada crise, a intervenção de uma força estrangeira a coberto de uma ou de diferentes siglas como: Nações Unidas (ONU), OUA, CEDEAO, CPLP ou outra, sinto-me na quase obrigação de manifestar a minha firme oposição ao recurso dessa  força estrangeira como pretensa  solução para a crise existente.

 

Não dispondo de uma "bola de cristal" para prever as consequências dessa preconizada intervenção,  penso entretanto que ela seria mais um problema do que propriamente a solução.

 

Guardam-se registos da firme reacção do Povo Guineense à ocupação estrangeira. Do conhecido "Desastre de Bolol" em 1879 em Djarfungo no norte do  país, em que os felupes infligiram o que se considera a mais pesada derrota sofrida pelo ocupante português, passando pela luta armada de libertação nacional e chegando-se à recente e veemente resposta dada aos estrangeiros (desta vez africanos) no igualmente  recente conflito de  7 de Junho de 1998. Estes exemplos muito significativos, não podem ser negligenciados no equacionamento do problema e  convidam, seguramente,   a uma séria reflexão antes da tomada de posição sobre a possível intervenção de uma força estrangeira como  solução do problema.

 

O que é urgente e imperioso, diria mesmo, incontornável, é que as nossas Forças Armadas se ponham definitivamente ao serviço do Povo. Que se demarquem intransigentemente do poder politico e saibam e aceitem, com inequívoca e transparente firmeza, respeitar o Estado de direito democrático e a ordem constitucional. Só assim  recuperarão a honra e a glória que vêm desbaratando e que muito sangue e suor lhes custaram nos duros e árduos anos da luta armada e reconquistarão a confiança e a gratidão do povo.  

Mas voltando à situação actual na Guiné-Bissau, dificilmente se compreende o que pode levar o actual PAIGC no Poder a se constituir e a se reclamar garante dos Princípios de Amílcar Cabral.

Com um quadro tão alarmante ou tão terrificante como o actual, proclamar-se garante dos Princípios de Amílcar Cabral é um Senhor Sacrilégio!

Os Princípios de Amílcar Cabral não podem reduzir-se a palavras e discursos em comícios! Só uma prática transparente dos verdadeiros Princípios de Amílcar Cabral pode autorizar o PAIGC de hoje a  proclamar-se garante da sua herança.

A Guiné-Bissau possui, na diáspora,  um sem número de brilhantes quadros que, por sobejas e patentes razões receiam regressar. Essa enorme massa de "know how" expatriada, exportada diria eu,  digladia-se para não se enraizar definitivamente em terra alheia e pelas mesmas razões se digladia para não se desenraizar definitivamente do torrão natal. O regresso desses brilhantes quadros daria indubitavelmente à Guiné-Bissau o "brilho" de que tanto necessita...

Duro e penoso dilema imposto por uma plêiade de nativistas de nomenclatura não definida, ditos guineenses de péssima e de paupérrima qualidade, regurgitados de ADN(s) alérgicos a valores universalmente aceites, a mencionar: integridade cívica e moral, honestidade, dignidade, competência, abnegação e postura consentânea com esses valores. O POVO da Guiné-Bissau, o VERDADEIRO, tem no seu ADN todos esses atributos e todas essas qualidades! O Povo da Guiné-Bissau é Digno!

É portanto necessário, imperioso e urgente encontrar solução. E é também necessário imperioso e urgente que sejam criadas as condições para que esse doloroso dilema não subsista, que esse dilema não mais mutile o já traumatizado EGO de tantos e valorosos Guineenses. Pâ nha mamé, i djustaaaa!

E uma das formas de definitivamente "aniquilar" esse dilema, seria permitir o regresso e a integração de todos os cidadãos guineenses, quadros e não quadros, que queiram abnegadamente participar na já tão protelada reconstrução nacional, assegurando-lhes PLENA LIBERDADE DE DIREITOS E DEVERES, assegurando-lhes a necessária protecção (as nossas memórias guardam bem vivos os exemplos do Dr. Honório Sanches Vaz e do malogrado Dr. Viriato Pâm...), o que seria uma transparente demonstração do que é um estado de direito democrático. 

E a satisfação destas proposições provaria inequivocamente que, os Princípios de Amílcar Cabral não são e nem nunca serão "folhas mortas". 

Mas a Guiné-Bissau e o Povo da Guiné-Bissau estão cansados de viajar para destinos incertos. A Guiné-Bissau e o Povo da Guiné-Bissau reclamam um TIMONEIRO íntegro, esclarecido e competente que os leve aos seguintes portos: ao da Paz Definitiva; ao da Liberdade Real e Responsável; ao do Progresso Sem Exclusão; e ao do Estado de Direito Democrático. 

E não creio que a Guiné-Bissau e o Povo da Guiné-Bissau estejam pedindo demasiado! 

A Guiné-Bissau e o Povo da Guiné-Bissau querem de novo sorrir e rir. A Guiné-Bissau e o Povo da Guiné-Bissau estão cansados de verter lágrimas de SANGUE. A Guiné-Bissau e o Povo da Guiné-Bissau estão cansados de sonhar debalde ou de sonhar pesadelos.  

É tempo de sonhar com a esperança.  E é mais do que  tempo que essa esperança se transforme, e para sempre, em REALIDADE.

Sim, após trinta e cinco longos e penosos anos de espera, é justo querer-se tudo isso agora, já!

Antes de terminar, permitam-me fazer uso de três parágrafos de um oportuno artigo "Requiescat in Pace", recentemente redigido e publicado pelo meu amigo A. Ferreira. E faço uso desses parágrafos porque eles são plenos de bom senso e constituem um sóbrio, elegante, e também oportuno, apelo à concórdia nacional e à Paz na Guiné-Bissau.

« Sim, basta! É preciso fechar definitivamente o ciclo. É preciso dar lugar a uma nova geração de políticos, totalmente descomprometidos e libertos das síndromes da Luta pela Independência. Uma geração cujos direitos e deveres se equilibram e se igualam aos de qualquer outro cidadão. Uma geração cujo mérito está no saber, na sua dedicação, na sua honestidade, na sua real inserção nos novos paradigmas e não no seu passado de combatente por mais glorioso que tenha sido. Uma geração que saiba o que é, e respeite, o estado de direito democrático. Os tempos de há muito que são outros. E é preciso compreender, interpretar e materializar os seus sinais.»

« É preciso que a diáspora guineense formada por tantos e tão brilhantes (jovens) quadros volte a sentir orgulho de ser guineense e tenha espaço para contribuir de forma abnegada para o progresso do País. »  

« Estão, pois criadas as condições para que o almejado Encontro de Ensalmá - síntese do sonho de A. Cabral - sempre adiado pela ganância de poder e mesquinhez dos mais altos dirigentes do velho PAIGC, finalmente se concretize. Desfazer-se-ia o nó górdio de todo um longo e penoso processo

A. Cabral sobre o "Encontro de Ensalma disse (em crioulo): "A luta que levamos a cabo com a arma na mão para tirar os tugas do nosso chão, para a nossa independência, é o programa mínimo que estamos a cumprir. Não pensem que vamos todos mandar em Bissau. Para aquele que era mecânico, electricista, pescador, agricultor quando entrou na Luta, irão ser criadas condições para ele continuar a sua actividade e viver o seu estatuto de combatente da liberdade da Pátria. A nossa independência termina em Ensalma. Ela vai ser entregue à gente que virá ao nosso encontro para a assumir. Essa gente é que  irá começar a cumprir o Programa Maior que é compor a terra, tarefa maior e mais complicada."    

Espero que o tempo reponha a verdade e que o faça na serenidade e no interesse do Povo da Guiné-Bissau e do Povo de Cabo-Verde, livres e independentes.  

E seja qual for o caminho que cada um desses Povos decidir livremente percorrer, que não esqueça o passado que lhes é comum e a luta que travaram de mãos dadas para alcançarem a liberdade.

Então, Amílcar Cabral poderá, finalmente, repousar em Paz. E  que se lhe deixe, que se lhe permita, com missa ou sem missa, definitivamente, repousar em Paz! 

 

* Licenciado em economia agrícola e sociologia rural, pela The Pennsylvania State University, State College, Pennsylvania, USA, em 1989

 

ESPAÇO PARA COMENTÁRIOS AOS DIVERSOS ARTIGOS DO NÔ DJUNTA MON -- PARTICIPE!


A TER SEMPRE EM CONTA: Objectivos do Milénio

PROJECTO GUINÉ-BISSAU: CONTRIBUTO - LOGOTIPO

VAMOS CONTINUAR A TRABALHAR!

Projecto Guiné-Bissau: CONTRIBUTO

www.didinho.org