Saciar sedeS nas relações entre a África e o Brasil: nova era diplomática?
Ricardino Jacinto Dumas Teixeira * ricardino_teixeira@hotmail.com 05.06.2011 Se existe alguma crença em que uma parte da diplomacia brasileira ainda acredita, essa crença é a de que o Brasil precisa “ajudar” a África. Quer dizer: “A África tem sede de Brasil”. Esse é o título do artigo de opinião do Celso Amorim, ex-ministro das Relações Exteriores do Brasil (2003-2010), publicado em 31 de maio de 2011 na Revista Carta Capital online (http://www.fpabramo.org.br/artigos-e-boletins/artigos/af) e disponibilizado no espaço Guiné-Bissau Contributo. Celso Amorim escreveu o artigo em celebração ao dia de África (25 de maio) onde demonstrou satisfação em relação à continuidade da política externa brasileira na África sob comando do atual ministro António Patriota. Celso Amorim foi convidado para prestigiar a cerimônia no Itamaraty, depois que ele deixou o ministério em 2010. Ministro da “face do governo” de Luís Inácio Lula da Silva, Celso Amorim lembra sua passagem pela África:
Na primeira viagem que fiz à África durante o governo Lula, visitei sete países, seguindo orientação do presidente, mas instigado também por uma cobrança de minha mulher, que, ao me ouvir relatar iniciativas quanto à Venezuela, Mercosul etc; me interpelou: “E pela África vocês não estão fazendo nada?”. Isso foi em abril de 2003, quando decidimos as prioridades do nosso governo. A fala, acima, remete-nos a impressão de que a África é um Continente de pobreza e de coitadinhos sofridos e devorados pelos predadores. Isso tem aumentado nossas sedes. Somos um Continente de sedes, e a boa plataforma diplomática da diplomacia brasileira, a que Celso Amorim ajudou a idealizar e a propagar, seria saciar várias sedes que afeta a maioria da população dos países africanos: ajudar o Continente a saciar a sua sede física, intelectual e tecnológico. Quando Celso Amorim afirma que “A África tem sede de Brasil”, se pensarmos bem, por exemplo, na sede material, vemos as crianças desnutridas e mal cuidadas morrendo de fome. Essa seria a primeira impressão. Se pensarmos na sede intelectual, vemos africanos desprovidos de conhecimento científico e tecnológico, morrendo de sedes. Daí o papel estratégico do Brasil em saciar sedes africanas e tentar pagar a sua dívida moral e histórica. De Moçambique a Namíbia, de Gana a São Tomé e Príncipe, cada um a sua maneira, vêem no Brasil um modelo a ser seguido....Para cada problema africano existe uma solução brasileira....Isso sem falar no enorme benefício que a maior relação com o Brasil traria para África... Lula revelou-se o mais africano dos presidentes. Pediu perdão pelos crimes da escravidão. Talvez seja verdade que a África encontre no Brasil um modelo a ser seguido para o seu desenvolvimento, no entanto Celso Amorim não nos diz que tipo de modelo o Brasil teria o prazer em oferecer aos países africanos como Moçambique, Namíbia, Gana e São Tomé Príncipe etc. Também não mencionou a importância de África para o Brasil, muito pelo contrário. Limitou-se em mencionar as vantagens comparativas do Brasil para saciar sedes. Mas não vamos esquecer-nos dos desafios para saciar várias sedes do próprio povo brasileiro. Para sermos felizes na diplomacia de “saciar sedes”, precisamos ter a certeza de que conseguimos saciar sedes das nossas próprias populações. O dever de um governo é de saciar sedes da sua própria população. Isso deveria ser a preocupação fundamental de qualquer governante tanto no Brasil quanto na África: cuidar do seu povo. Lutar para que todos terem aquilo de que precisam para que sua vida não se reduza a simples lógica do mercado predador. A África precisa saciar suas próprias sedes e o Brasil também. Isso não é uma questão de capricho nacionalista dos africanos e nem dos brasileiros. A África não precisa da “caridade” do Brasil e nem o Brasil precisa da “compaixão” dos governos e povos africanos para ser aceite como parceiro estratégico na exploração de matérias primas e demais recursos existentes na África frente aos interesses dos países como China, Estados Unidos, França e Alemanha. É quase um consenso no quadro das Relações Internacionais (RI) que dificilmente haverá uma cooperação econômica, política, social e cultural que seja universalmente equitativa entre Estados, e nem tão pouco um conceito universalmente aceito, mas a ética, a justiça e a troca de experiências entre a África e o Brasil pode ser um começo inteligente nessas relações. São essas sedes que a África tem de Brasil sem desviar o olhar das realidades sociais existentes. Outro equívoco de Celso Amorim foi o de tentar culpabilizar o Brasil pelo aquilo que herdou e não conseguiu modificar. Sabemos que o Brasil (à semelhança dos países africanos, especialmente os de fala portuguesa) também foi uma colônia, cuja população sofreu a privação dos seus direitos pelo colonialismo. Dizer que Lula mostrou-se o mais africano dos presidentes por ter pedido perdão ao povo africano pela escravização, é no mínimo populismo e demasiadamente retórico. Tanto o Brasil quanto os países africanos, cada um a sua maneira, sofreu a colonização e a exploração em massa dos seus recursos pelo colonialismo português. As relações entre a África e o Brasil remontam ao período do regime militar. Embora os regimes militares apoiassem a manutenção da colonização portuguesa na África nos fóruns internacionais (ONU), não podemos esquecer que foi na época do regime militar que o Brasil foi um dos primeiros países a reconhecer as independências dos países africanos de expressão portuguesa na década de 1970. O ex-presidente João Figueiredo, quando se deslocou a diversos países africanos na década de 1980, já havia defendido que seria melhor que o Brasil fosse o primeiro de “terceiro mundo” do que o último de “primeiro mundo”. Teria sido esse o modelo do governo de Luís Inácio Lula da Silva sob comando de Celso Amorim? O falecido ex-embaixador José Aparecido de Oliveira, quando se percebeu da importância da ampliação das relações afro-luso-brasileira, convocou os governos desses países para em conjunto articularem a criação da Comunidade dos Países de Língua Portuguesa (CPLP) em 1996. Com o governo de José Inácio Lula da Silva, porém, a aproximação com os países africanos foi ampliada e o resultado foi bem-sucedido frente às ameaças da Área de Livre Comércio das Américas (ALCA), e, com, isso, o Brasil passou-se acreditar nas potencialidades africanas, se é que existe de fato essa potencialidade, para Celso Amorim, além dos interesses de mercado. A relação entre os países africanos e o Brasil não deve restringir-se aos interesses mercantis. Não me parece que as empresas brasileiras e suas agências de cooperação desejam exclusivamente fazer o mesmo que os europeus fizeram a continuam a fazer na África: a exploração em massa de recursos naturais para saciar suas sedes expansionistas. Se assim o Brasil desejar, a África fará de tudo para escapar-se do jeitinho da diplomacia brasileira tal como o Brasil escapou-se da tentação da lógica instrumental e expansionista dos Estados Unidos em torno da tentativa de criação da Área de Livre Comércio das Américas (ALCA).
* Ricardino Jacinto Dumas Teixeira nasceu em Bissau. Graduou-se em Ciências Sociais na UFPE, onde também desenvolve o seu doutoramento em Sociologia Política. É professor na FAJOLCA e autor de artigos " Construção democrática na Guiné-Bissau: limites e possibilidades" (CODESRIA, 2008); "Consciência nacional, democratização e conflito político: semelhanças e diferenças e n t r e G u i n é - B i s s a u e Moçambique" (CIEA 7, 2010) e "O conceito de sociedade civil: uma análise a partir do contexto da Guiné-Bissau" (Estudos de Sociologia, 2009). Atualmente, desenvolve pesquisa de doutorado sobre a relação entre sociedade civil e Estado na transição democrática na Guiné-Bissau e Cabo Verde.ESPAÇO PARA COMENTÁRIOS AOS DIVERSOS ARTIGOS DO NÔ DJUNTA MON
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