SEM
TÍTULO
Ana Cristina Ferro Marques
anymarques@hotmail.com
Um
belo dia recebemos um ser nas nossas mãos. Preparado para nos
seduzir, por ele velaremos enquanto nos for possível. O sorriso
contagiante, o sentar desengonçado, o fofo gatinhar, os primeiros
passos encheram-nos de satisfação. De orgulho, as primeiras
palavras.
E para o amor despertamos no convívio com este ser
que nos comove. Um amor que se tornou cego face aos primeiros sinais de um ser
que não é perfeito. Divididos entre este amor que nos cega e a evidência que nos
salta à vista, escolhemos fechar os olhos. Porque nos custa aceitar que este ser
que recebemos não é aquele que idealizamos. Com o tempo, com a idade, tudo
passará. Mas os sinais, cada vez mais óbvios, crescem. Impotentes, pedimos a
Deus que o proteja, quando uma ajuda especializada poderia também ter sido uma
solução.
Um ser que nos foi entregue para dele cuidarmos, é
certo, mas, sobretudo, para lapidarmos. E, fugimos assustados perante tamanha
responsabilidade e sacrifício que nos são impostos. Dar-lhe prioridade embora
outros sonhos e desejos nos estejam a chamar. Sermos coerentes com os valores
que defendemos, para que a dúvida não se instale e, decepcionado, procure outras
referências. Dizer um não firme às exigências de um pequeno tirano quando o
jeito dele nos comove e a vontade de o abraçar nos sufoca o peito. Impor-lhe
limites quando a nossa vontade é oferecer-lhe o mundo. E cortar pela raiz os
descontrolos deste pequeno prepotente que ainda assim se acha o dono do mundo.
Não, este ser que nos foi entregue e nos comove não é perfeito.
Um ser que nos foi entregue para cuidarmos e
lapidarmos.
Um ser que desafiou os nossos limites e nos fez
crescer.
Um ser que um dia entregaremos ao mundo.
Que Deus nos dê sabedoria para mudar o que pode ser
mudado. E coragem para aceitar o que não pudemos mudar *.
Porque este ser que nos foi entregue é também filho
do mundo.
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*Adaptado da Oração da Serenidade, de Reinhold
Niebuhr
Ana
Cristina Ferro Marques