Quero começar por agradecer e distinguir a doutora Jennifer Lising
(especialista do último ano de medicina interna) pela recolha de dados
clínicos neste caso; também agradeço às enfermeiras da unidade de cuidados
intensivos pelo excelente tratamento dado a esta doente. destacando as
enfermeiras: Deanie, Maria, Debbie
, Peggy, bem como ao pessoal do
departamento de terapia respiratória (Lance, Bill, Mohamed, Scott,
Nadine...).
Uma jovem de 23 anos, oriunda da Nigéria apresentou-se no nosso serviço
de emergência com queixas de dispneia, tosse não produtiva e dores
generalizadas.
PMX: anemia de células
falciformes
PSH: nenhuma cirurgia
Medicação: ácido fólico,
hidroxiureia e motrin
SHx: casada com uma filha de 6
meses; não fuma, não bebe álcool e não consome drogas.
Exame físico: pressão
arterial:127/67; HR:115/mn; temp:101.5; respiração: 20/mn
geral: orientada no espaço,
tempo e pessoa
cardíaco: taquicardia, ritmo
regular, nenhum sopro ou galope ou fricção.
pulmões: crackles basilares
abdómen: normal
extremidades: nenhuma cianoses,
edema ou clubbing.
Laboratório (importante):
leucócitos (14000) Hemoglobina (4.3); reticulocitos (6.25%);
bilirrubina total(11.1) bilirrubina indirecta(0.8)
radiografia: infiltrados
bilaterais não específicos.
Foi admitida com o diagnóstico de crise de anemia de células falciformes
(sickle cell crisis).
O tratamento foi iniciado com soro fisiológico (normal saline) =150ml/hr,
analgésicos e ordens para fazer transfusão de 2 unidades de PRBC's.
Na noite da admissão, depois da transfusão, a paciente começou a ter a
respiração muito rapida(35/mn), a saturação=75% e; a equipa de medicina
interna fez uma radiografia que mostrou "edema pulmonar agudo") e puseram
a paciente 100% a oxigénio e administraram-na 40mg de furosemida.
Nessa altura chamaram o residente de banco na unidade dos cuidados
intensivos que me telefonou às 3 da manhã para relatar o caso: a paciente
foi transferida para a unidade de cuidados intensivos, onde a entubámos
com os seguintes parâmetros: AC 12/tidal volume: 400/peep=5/FIO2=100%;
como a pressão estava baixa (70/30), colocamos uma linha venosa central
através da veia subclávia para medir a pressão venosa central e ajudar-nos
a saber se a doente tinha edema pulmonar ou outra coisa qualquer; (a
pressão venosa era=6); como ela tinha febre e leucocitosis, começámos o
protocolo para choque séptico (soro, medição da pressão venosa central,
medição da saturação venosa central, ácido láctico, teste da
cosyntropina).
Como a gasimetria mostrou um oxigénio de 45 e no ventilador, a pressão
estática das vias aéreas (plateau pressure) estava a 55, mudámos o
ventilador para um ventilador de controle de pressão (pressure control
ventilation).
Depois das culturas esputum, sangue e urina, como o paciente esteve
recentemente admitido no serviço de hematologia (3 semanas
atrás),começámos o tratamento indicado para pneumonia adquirida no
hospital (cefipima e vancomicina)
A condição da paciente continuou a piorar e 24 horas depois da admissão
nos cuidados intensivos, parecia que estávamos a perder a batalha: ainda
estava com leucocitosis, a pressão era de 85/55 (mas com 4
vasopressores (norepinefrina
, dopamine, neosinefrina e vasopressina),
a oxigenação era miserável (50 com o ventilador no máximo) e ela não dava
sinais de despertar.
Nessa altura tive uma reunião com a família (tios e um primo que é
professor numa das faculdades da Carolina do norte) onde lhes inteirei da
gravidade da situação e que a podíamos perder a qualquer momento.
Na altura o pai telefonou da Nigéria e disse-me que estava a caminho de
Las Vegas para talvez dizer o último adeus.
Reuni-me outra vez com o técnico supervisor do departamento de respiração
e a enfermeira encarregue dos cuidados intensivos e resolvi ligar o
oscilador de alta frequência para melhorar a oxigenação e adicionamos um
antibiótico (aminoglicosido) porque a cultura do esputo e sangue mostrou:
staphylococus resistente à meticilina e pseudomonas.
Progressivamente, a doente melhorou e 72 horas depois a leucocitosis
também. Estava só com um vasopressor (vasopressina) e a oxigenação estava
definitivamente melhor.
Ela foi extubada 10 dias depois da admissão nos cuidados intensivos e foi
para casa 2 semanas depois (em Outubro de 2006).
Hoje, 17 de
Dezembro de 2007 falei com uma tia dela que é colega , que me disse que
ela está muito bem e a filha também esta de saúde...
1-
Um líder tem que tomar
decisões que por vezes não são do agrado de muitos mas desde que seja para
o bem do próximo, não deve ceder;
Na altura, recebi muitas
críticas de colegas médicos e enfermeiros que olhavam para mim como se eu
fosse maluco e dizendo: este é um caso perdido, estás só a perder tempo e
o que estas a fazer é só para tentares mostrar que és bom!! Depois da
reunião com os familiares (o tio a chorar, o marido a rezar e a mostrar-me
a fotografia da filha de 6 meses, a única coisa na minha mente era fazer
os impossíveis para que ela visse a filha crescer...
A nossa responsabilidade, nós médicos na diáspora (Brasil, Portugal,
Estados Unidos, Franca, Itália, Espanha,etc.) é sermos advogados de
defesa dos menos protegidos pelo sistema (pessoas com poucos recursos
económicos, na maioria pessoas de cor-negra, amarela, vermelha, etc.),
porque é uma realidade e estudos conduzidos por instituições de alto nível
concluíram que há diferença no tratamento dos doentes (nem todos são
iguais!!!)
2-Trabalhar nos cuidados
intensivos é como ser um Boina Verde em combate: tem que se ser agressivo
e tomar decisões muito rápidas e o mínimo erro pode ser fatal.
3- Neste caso clínico, uma das
lições a aprender é que nem tudo o que brilha é ouro: na altura a colega
de hematologia estava convencida de que o paciente tinha edema agudo dos
pulmões, por isso deu furosemida, o que precipitou a queda da pressão; mas
a doente tinha ARDS (resultante da combinação de pneumonia e acute chest
sindrome).
4- Uso de oscilador de alta
frequência: devido à escassez de dados clínicos (estudos feitos têm o
máximo de 20 doentes), não muitos doutores estão familiarizados com o HFO
e o seu uso tem sido muito esparso; na altura tive que adiar as minhas
férias porque era o único médico no hospital com familiaridade com o HFO e
só fui de férias quando a paciente melhorou e foi mudada para um outro
tipo de ventilador.
5-
A anemia de células
falciformes é frequente em indivíduos de raça negra (vivendo em África,
tem um aspecto "bom" porque protege contra a malária, mas é uma doença
terrível e pode ser muito debilitante (dores, cansaço devido à anemia,
etc.).
Infelizmente, pelo que me disse o
pai da nossa paciente, na Nigéria, antes do casamento, alguns homens
requisitam o teste desta doença para as futuras esposas (se são positivas,
recusam-se a casar com elas) por isso a nossa paciente teve de sair da
Nigéria.
Um pedido e um desafio a qualquer médico trabalhando na Guiné ou alguém
ligado às estatísticas: haverá alguns dados estatísticos sobre a anemia de
células falciformes na Guiné que me possam enviar ou que possam divulgar?
Este foi um caso de sucesso, a par de outros casos onde não tivemos a
mesma sorte: mas é assim a vida de um médico: um dia pensas que estás no
topo do mundo e que sabes tudo; um outro dia pensas que não sabes nada e
que és o pior médico do mundo!!!
Ainda tens que te levantar no dia seguinte com a mesma ideia na mente:
fazer mais e melhor pelos teus doentes.
Não sei como é com vocês, mas comigo, tenho a impressão de que
quanto mais se sabe, mais dúvidas se tem, por isso, é com prazer que
relato estes casos clínicos, para auscultar as vossas opiniões e sugestões
e fazer mais e melhor para a próxima.
Obrigado!