um caso de anemia de células falciformes (sickle cell disease)

 

 
Prof. Joaquim Tavares

J.TAVARES, MD, FCCP, FAASM

joaquim.tavares15@gmail.com

17.12.2007

Quero começar por agradecer e distinguir a doutora Jennifer Lising (especialista do último ano de medicina interna) pela recolha de dados clínicos neste caso; também agradeço às enfermeiras da unidade de cuidados intensivos pelo excelente tratamento dado a esta doente. destacando as enfermeiras: Deanie, Maria, Debbie, Peggy, bem como ao pessoal do departamento de terapia respiratória (Lance, Bill, Mohamed, Scott, Nadine...).

 

 Uma jovem  de 23 anos, oriunda da Nigéria apresentou-se no nosso serviço de emergência com queixas de dispneia, tosse não produtiva e dores generalizadas.
 
PMX: anemia de células falciformes
PSH: nenhuma cirurgia
Medicação: ácido fólico, hidroxiureia e motrin
SHx: casada com uma filha de 6 meses; não fuma, não bebe álcool e não consome drogas.
 
Exame físico: pressão arterial:127/67; HR:115/mn; temp:101.5; respiração: 20/mn
geral: orientada no espaço, tempo e pessoa
cardíaco: taquicardia, ritmo regular, nenhum sopro ou galope ou fricção.
pulmões: crackles basilares
abdómen: normal
extremidades: nenhuma cianoses, edema ou clubbing.
 
 
Laboratório (importante): leucócitos (14000) Hemoglobina (4.3); reticulocitos (6.25%); bilirrubina total(11.1) bilirrubina indirecta(0.8)
 
radiografia: infiltrados bilaterais não específicos.
 
Foi admitida com o diagnóstico de crise de anemia de células falciformes (sickle cell crisis).
O tratamento foi iniciado com soro fisiológico (normal saline) =150ml/hr, analgésicos e ordens para fazer transfusão de 2 unidades de PRBC's.
 
Na noite da admissão, depois da transfusão, a paciente começou a ter a respiração muito rapida(35/mn), a saturação=75% e; a equipa de medicina interna fez uma radiografia que mostrou "edema pulmonar agudo") e puseram a paciente 100% a oxigénio e administraram-na 40mg de furosemida.
Nessa altura chamaram o residente de banco na unidade dos cuidados intensivos que me telefonou às 3 da manhã para relatar o caso: a paciente foi transferida para a unidade de cuidados intensivos, onde a entubámos com os seguintes parâmetros: AC 12/tidal volume: 400/peep=5/FIO2=100%; como a pressão estava baixa (70/30), colocamos uma linha venosa central através da veia subclávia para medir a pressão venosa central e ajudar-nos a saber se a doente tinha edema pulmonar ou  outra coisa qualquer; (a pressão venosa era=6); como ela tinha febre e leucocitosis, começámos o protocolo para choque séptico (soro, medição da pressão venosa central, medição da saturação venosa central, ácido láctico, teste da cosyntropina).
 
Como a gasimetria mostrou um oxigénio de 45 e no ventilador, a pressão estática das vias aéreas (plateau pressure) estava a 55, mudámos o ventilador para um ventilador de controle de pressão (pressure control ventilation).
Depois das culturas esputum, sangue e urina, como o paciente esteve recentemente admitido no serviço de hematologia (3 semanas atrás),começámos o tratamento indicado para pneumonia adquirida no hospital (cefipima e vancomicina)
 
A condição da paciente continuou a piorar e 24 horas depois da admissão nos cuidados intensivos, parecia que estávamos a perder a batalha: ainda estava com leucocitosis, a pressão era de 85/55 (mas com 4 vasopressores (norepinefrina, dopamine, neosinefrina e vasopressina), a oxigenação era miserável (50 com o ventilador no máximo) e ela não dava sinais de  despertar.

 

Nessa altura tive uma reunião com a família (tios e um primo que é professor numa das faculdades da Carolina do norte) onde lhes inteirei da gravidade da situação e que a podíamos perder a qualquer momento.
Na altura o pai telefonou da Nigéria e disse-me que estava a caminho de Las Vegas para talvez dizer o último adeus.

 

Reuni-me outra vez com o técnico supervisor do departamento de respiração e a enfermeira encarregue dos cuidados intensivos e resolvi ligar o oscilador de alta frequência para melhorar a oxigenação e adicionamos um antibiótico (aminoglicosido) porque a cultura do esputo e sangue mostrou: staphylococus resistente à meticilina e pseudomonas.
Progressivamente, a doente melhorou e 72 horas depois  a leucocitosis também. Estava só com um vasopressor (vasopressina) e a oxigenação estava definitivamente melhor.
 
Ela foi extubada 10 dias depois da admissão nos cuidados intensivos e foi para casa 2 semanas depois (em Outubro de 2006).

 Hoje, 17 de Dezembro de 2007 falei com uma tia dela que é colega , que me disse que ela está muito bem e a filha também esta de saúde...

 

ALGUMAS CONSIDERAÇÕES

 

1- Um líder tem que tomar decisões que por vezes não são do agrado de muitos mas desde que seja para o bem do próximo, não deve ceder;

 Na altura, recebi muitas críticas de colegas médicos e enfermeiros que olhavam para mim como se eu fosse maluco e dizendo: este é um caso perdido, estás só a perder tempo e o que estas a fazer é só para tentares mostrar que és bom!! Depois da reunião com os familiares (o tio a chorar, o marido a rezar e a mostrar-me a fotografia da filha de 6 meses, a única coisa na minha mente era fazer os impossíveis para que ela visse a filha crescer...

A nossa responsabilidade, nós médicos na diáspora (Brasil, Portugal, Estados Unidos, Franca, Itália, Espanha,etc.) é sermos advogados de defesa dos menos protegidos pelo sistema (pessoas com poucos recursos económicos, na maioria pessoas de cor-negra, amarela, vermelha, etc.), porque é uma realidade e estudos conduzidos por instituições de alto nível concluíram que há diferença no tratamento dos doentes (nem todos são iguais!!!)
 
2-Trabalhar nos cuidados intensivos é como ser um Boina Verde em combate: tem que se ser agressivo e tomar decisões muito rápidas e o mínimo erro pode ser fatal.
 
3- Neste caso clínico, uma das lições a aprender é que nem tudo o que brilha é ouro: na altura a colega de hematologia estava convencida de que o paciente tinha edema agudo dos pulmões, por isso deu furosemida, o que precipitou a queda da pressão; mas a doente tinha ARDS (resultante da combinação de pneumonia e acute chest sindrome).
 
4- Uso de oscilador de alta frequência: devido à escassez de dados clínicos (estudos feitos têm o máximo de 20 doentes), não muitos doutores estão familiarizados com o HFO e o seu uso tem sido muito esparso; na altura tive que adiar as minhas férias porque era o único médico no hospital com familiaridade com o HFO e só fui de férias quando a paciente melhorou e foi mudada para um outro tipo de ventilador.
 
5- A anemia de células falciformes é frequente em indivíduos de raça negra (vivendo em África, tem um aspecto "bom" porque protege contra a malária, mas é uma doença terrível e pode ser muito debilitante (dores, cansaço devido à anemia, etc.).

Infelizmente, pelo que me disse o pai da nossa paciente, na Nigéria, antes do casamento, alguns homens requisitam o teste desta doença para as futuras esposas (se são positivas, recusam-se a casar com elas) por isso a nossa paciente teve de sair da Nigéria.

 
Um pedido e um desafio a qualquer médico trabalhando na Guiné ou alguém ligado às estatísticas: haverá alguns dados estatísticos sobre a anemia de células falciformes na Guiné que me possam enviar ou que possam divulgar?
 
 
Este foi um caso de sucesso, a par de outros casos onde não tivemos a mesma sorte: mas é assim a vida de um médico: um dia pensas que estás no topo do mundo e que sabes tudo; um outro dia pensas que não sabes nada e que és o pior médico do mundo!!!

Ainda tens que te levantar no dia seguinte com a mesma ideia na mente: fazer mais e melhor pelos teus doentes.

 
Não sei como é com  vocês, mas comigo, tenho a impressão de que quanto mais se sabe, mais dúvidas se tem, por isso, é com prazer que relato estes casos clínicos, para auscultar as vossas opiniões e sugestões e fazer mais e melhor para a próxima.

Obrigado!


ESPAÇO PARA COMENTÁRIOS SOBRE A SAÚDE -- PARTICIPE!

PROJECTO GUINÉ-BISSAU: CONTRIBUTO - LOGOTIPO

VAMOS CONTINUAR A TRABALHAR!

Projecto Guiné-Bissau: CONTRIBUTO

www.didinho.org