Há
uma questão que me feriu muito a inteligência, durante a sua prevalência. Não
participei na luta de Libertação Nacional, nem fui militar colonial, porque não
tinha idade legal para incorporação. No entanto nasci e cresci, no Norte do
País, mais concretamente, em Olossato. Vivi e vivenciei a guerra, de forma
inimaginável para a grande maioria dos meus contemporâneos, que longe dos
cenários de guerra, viviam e residiam, tranquilamente, em Bissau. Muito cedo se
começou a falar da unidade GUINÉ e CABO-VERDE. Era uma estratégia, político –
partidária ou era uma realidade viável? Mas como? Nas obras de um dos maiores
conceptualizadores da nossa Libertação, Amílcar Cabral, esta questão era muito
séria, constituindo-se mesmo num tabu, de que nenhum guerrilheiro ou político
ousava questionar. Seria um suicídio, uma aventura dessa natureza! Com a
independência, quase todos, em uníssono, declamávamos, VIVA A UNIDADE GUINÉ e
CABO-VERDE! A emoção da independência entupia-nos o cérebro! Estávamos
empenhados nesse grande desígnio épico da LUTA. A Formação Militante, ora
leccionada nas nossas escolas, era uma “BÍBLIA”, que todos comungávamos e
sabíamos de cor e salteado. Não gosto de falar em nomes, mas em 1977, numa
reunião Magna da JAAC, coloquei a seguinte questão a um alto dirigente do PAIGC,
“Partido de todos os Guineenses e Cabo-Verdianos”, quando se concretizasse
essa Unidade, onde ficaria a Capital? Depois de um silêncio quase
fúnebre, respondeu-me que a Capital, resultante da Unidade não ficaria, de
certeza, no Oceano Atlântico. Alguns colegas, que me tinha advertido para não
fazer essa pergunta, pensavam que” tinha chegado o meu dia”, porque era uma
pergunta proibitiva, na altura. Sim, eramos “todos do PAIGC”, quer se pensasse
assim ou não, convictamente. Indagava-me, constantemente, porquê que alguns que
em consciência, tinham dúvidas e reservas, não se podiam manifestar? Cabral
disse, publicamente, em momentos históricos, em vida, que “ nem toda a gente é
do Partido”. Apurei que durante a LUTA todos os anti - Unidade Guiné e
Cabo-Verde eram abatidos, impiedosamente, pura e simplesmente, ou considerados
“inimigos” e relegados para o segundo plano! E depois, na independência, a
situação continuava, exactamente igual! As Secretas estavam, sempre atentas aos
que, mesmo entre as quatro paredes, sussurravam: “a mim es kussa de Unidade, nka
sibi nunde que é ba buskal nel”. Ainda em 1977, na qualidade do Sub-Director do
Centro de Formação de Professores Combatentes (militares) Máximo Gorki, em CÓ,
chefiei uma delegação com talvez 35 homens e alguns docentes, a Cabo- Verde,
mais concretamente à cidade capital, a Praia. Fomos bem recebidos e tratados!
Presumo que a nossa missão traduzia-se em, sinal para a “consolidação da
Unidade”, consubstanciada em troca de experiências, no terreno. Depois de alguns
dias de alojamento numa Escola Secundária local, fomos realojados a poucos
quilómetros, em S. Jorge dos Órgãos. Essa localidade tinha uma quinta/ponta
hortofrutícola que abastecia os Dirigentes, da República irmã. Era o local onde
prestávamos “trabalho produtivo” em parceria com os nossos irmãos
Cabo-Verdianos, membros da JAAC Nacional. Foi uma experiência muito
interessante! Fui entrevistado, uma ou duas vezes, pela única rádio e nacional,
então existente. As nossas viagens foram, largamente, facilitadas (gratuitas),
pela Força Aérea Portuguesa, que na altura em resultado da excelente Cooperação
ora existente, e de vento em popa, realizava voos periódicos entre Bissau e
Lisboa, com trânsito no aeroporto da Ilha de Sal. Foi uma aprendizagem
importante e beliscante, porque apercebi-me, que o entusiasmo pela Unidade que
existia na Guiné-Bissau, estava longe do seu alcance na população não militante
do Partido único, PAIGC no Arquipélago. A vida decorria, com a total
normalidade, em Cabo-Verde e havia uma tolerada liberdade de expressão. Quando
chegamos a Bissau tive momentos pessoais de reflexão profunda e dúvidas sobre a
dita Unidade. A minha convicção era a seguinte: a UNIDADE GUINÉ – Cabo Verde era
o maior EMBUSTE da LUTA e História de LIBERTAÇÂO NACIONAL! Amílcar Cabral, nunca
escreveu, claramente, sobre a materialização dessa propalada UNIDADE. Só ele
sabia o que isso significativa! Todos lemos e ouvimos as suas entrevistas de
que, quando nos libertássemos, haveria lugar, numa primeira fase, Unidade na
Guiné, Unidade em Cabo Verde, e na seguinte os respectivos órgãos soberanos
decidiriam a modalidade dessa UNIDADE. Portanto supõe-se que essa questão tinha
sido relegada para a fase pós independência. Até hoje, volvidos mais de 39 anos,
nenhum dirigente intelectual do PAIGC, que se tivesse privado com Cabral, foi
capaz de explicar o significado e as modalidades de concretização desse desígnio
do Partido, PAIGC. Há sensivelmente 3 anos recebi, para corrigir e opinar, uma
reflexão/ trabalho, de um conceituado intelectual, nosso conterrâneo, que
apreciei muito, como excelente, a quem sugeri que melhorasse alguns aspectos que
me pareciam menos conseguidos, podia publicá-la e talvez ajudasse a compreensão
do assunto. Esse mesmo trabalho denotava a natureza irrealista (posição crítica
dele) da Unidade que ceifara vida a tantos guineenses, antes e durante os
primeiros anos da nossa independência e soberania identitárias nacionais. Sobre
esta questão os guineenses temiam, e com razão, tecer posições/observações
pessoais contrárias e públicas. Até as paredes falavam, na GB, portanto todo o
cuidado era pouco!
A
Guiné-Bissau, País dotado e equipado de um mosaico cultural invejável,
ninguém, ainda hoje, questiona, quem é quem em termos tribais. Todos os
nascidos na GB, são Guineenses, independentemente, da sua confissão
religiosa, tribo, cor da pele, etc. Ao invés do que alguns possam pensar
constatam-se intensas trocas comerciais entre a GB e Cabo-Verde. Essa
sim parece-me ser a Unidade que prevalece, material e
realisticamente, até porque também é um dos princípios fundamentais da
própria União Africana. Mas como defendia o PAIGC, deixava-me muitas
dúvidas, por falta de explicações convincentes e realisticamente
suportáveis, por falta de fundamentos credíveis! Talvez Cabral tivesse
pensado numa futura “República Federativa da Guiné-Bissau – Cabo –
Verde” ou, provavelmente, num modelo de “ Estados Unidos da Guiné –
Bissau – Cabo-Verde”. É uma especulação minha! Quem sabe? Talvez só ele
podia clarificar o assunto, mas infelizmente não teve tempo para
explicitar esse princípio e conceito! Seja como for, hoje, esse
princípio faz parte da História, porque não consta do Programa do PAIGC.
Nós partilhamos fronteiras terrestres e marítimas, com duas Repúblicas
irmãs: Senegal e Guiné – Conacri, ambos com um número significativo dos
nossos concidadãos, com uma identidade cultural muito próxima, donde
transitam pessoas e bens, com a total liberdade. Assim como praticamos
intensas trocas comerciais e políticas.
Felizmente, hoje ninguém fala da Unidade Guiné – Cabo Verde, mas na
prática os dois Países, cooperam quase em todos os domínios, sem
sobressaltos, a nível bilateral e multilateral, no âmbito da CPLP e da
CEDEAO. A GB e CV, dois Países totalmente independentes, trabalham,
afincadamente, para a cooperação e progresso dos seus respectivos países
e povos. Os actuais dirigentes Cabo-Verdianos, nomeadamente, os que
participaram na Luta de Libertação têm, tenho a certeza, um enorme
afecto pela Guiné-Bissau. Ninguém esquece os momentos épicos da mesma e
dos seus Camaradas! De mãos dadas, podemos contribuir e muito para uma
nova imagem da nossa tão sacrificada e subalternizada África.
Filipe Sanhá
Filipe
Sanhá
Criança
*
Psicólogo, Mestre e
Doutorando pela Universidade de Coimbra (Portugal)