ABDULAI SECK, UM DESTINO INGRATO

 

Abdulai Seck

Abdulai Seck

 

 

 

Por: Norberto Tavares de Carvalho, « O Cote»

 

 

14.11.2007

 

Sempre pensei prosseguir o relato intitulado « Abdulai Seck, o caminho da Cruz » [1], incluindo outros elementos, não menos interessantes, que outrora não pude tratar. Faço-o agora, reforçado pelos encorajamentos e comentários que me chegaram depois do primeiro extracto. Mas antes, quero partilhar convosco e agradecer as palavras de alguém que me escreveu nos termos que resumo aqui :

 

« FAÇO QUESTÃO DE TE FAZER CHEGAR, POR MAIÚSCULAS, ALGUNS DIZERES QUE JAMAIS
CONSEGUIRÃO TRADUZIR O MEU ESTADO DE ALMA, APÔS A LEITURA DESTA DÁDIVA DE
VERDADE, DE CORAGEM E DE PATRIOTISMO QUE A NÓS E VINDOUROS TE DIGNASTE OFERECER.
NA PESSOA DO NOSSO INOLVIDÁVEL LAI. (…)  TE DIZEMOS OBRIGADO. »

 

Lay Seck morreu efectivamente em Bissau, como prisioneiro, no dia 26 de Setembro de 1981, na cela 15 da ex-Segunda Esquadra, rebaptizada Comando Operacional n° 2 (COP 2), após a tomada de posse dos guerrilheiros do PAIGC. Quando os seus olhos vacilaram e permaneceram abertos ao mesmo tempo que o seu corpo era atravessado por uma espécie de corrente eléctrica, a maioria dos prisioneiros estavam à volta dele. Arafã Mané, « N’Djamba », 1° Comandante das Forças Armadas Revolucionárias do Povo (FARP) e ex-Chefe da Casa Militar da Presidência, avançou em direcção do corpo, baixou-se e num gesto carinhoso, fechou-lhe os olhos. O mesmo Arafã Mané foi então solicitar a presença do Bacar Cassamá, « Tio Bacar », Chefe da Casa Civil da Presidência, que se encontrava do outro lado do pavilhão e, através do muro que separava os dois corredores, anunciou-lhe assim o irreparável: « Caramó afatalé ! » [2].

 

Quem veio da Presidência nesse dia trazer as chaves foi o N’Fon Tchudá, [3] guarda-costa do Presidente João Bernardo Vieira. Quando soube do que acabara de acontecer, o N’Fon encaixou a notícia com um ligeiro estremecimento que foi visível aos meus olhos. Entrou no pavilhão e foi constatar que efectivamente no lugar do Abdulai Seck, estava um cadaver!  Obrigou-nos então a regressar às respectivas celas que mandou fechar trancando as portinholas que nos permitiam vislumbrar o corredor. Pouco mais tarde, o portão abriu-se de novo e ouvimos muitos passos e sussuros que se dirigiam para o fundo do pavilhão, onde se encontravam os restos mortais do Lay Seck.  Pelos reflexos de flash’s apercebi-me que tiravam fotos. Sairam e mais tarde voltou mais gente para ver o corpo e, desta vez, pela lentidão dos passos atravessando o corredor em direcção ao portão de saída, deduzi que transportavam o corpo. Diz-se que quando a notícia chegou ao então Ministro do Interior, Manuel Saturnino da Costa, este foi aos arames ! Mas já era tarde demais. Manuel Saturnino da Costa devia portanto conhecer de sobra as medidas rigorosas impostas aos prisioneiros do 14 de Novembro pelo então autoproclamado « Conselho da Revolução » de que aliás fazia parte.

 

Quando o corpo foi transportado para fora do pavilhão, dir-se-ia que até o portão compreendera a gravidade do momento: fechou-se sobre nós quase sem nenhum estalido, como que para se desculpar de ter-se aberto para deixar passar a morte quando deveria ter-se aberto para salvar uma vida. E foi assim que, aquele que durante mais de dois meses não parou de se queixar de dores dizendo sempre aos guardas e aos polícias que se o deixassem aí iria morrer, conseguira, enfim, que o transportassem para fora do pavilhão !

 

Dias depois, na sua necrologia, o jornal « Nô Pintcha » anunciava aos seus leitores que Abdulai Seck falecera… no Hospital !

 

Mas apesar das circunstâncias inexplicáveis da sua morte o « Conselho da Revolução » não tomou nenhuma medida para, pelo menos, abrandar o regime carcerário em que os prisioneiros eram submetidos. Meses depois, um outro prisioneiro morria, quase nas mesmas condições ! Mesmo indo nuzinho de todo, ninguém ousava dizer que « o rei ia nú ». Todos, tirando o Bota Na N’Batcha, que defendia  a libertação dos camaradas detidos no decorrer do golpe de Estado, fingiam assobiar para o lado a dar a entender que nada se passava. Mas se existem seres que não podem, nem devem, nunca ser esquecidos, Abdulai Seck é um deles.

 

Como muitos outros jovens da sua geração, cedo ingressou nas fileiras do Partido Africano para a Independência da Guiné e das Ilhas de Cabo-Verde, o PAIGC. Lutou em várias frentes, destacando-se no comando de unidades de guerrilha no Sul. Pelo sucesso das acções empreendidas sob o seu comando, mereceu a patente de Comandante. Mas as suas acções tiveram também notas negativas, como foi o caso do ataque ao quartel de Quitáfine, no Sul, onde depois de ter brindado as tropas coloniais com um fogo esparso e cadenciado, retirou-se com os seus homens e depois duma intensa marcha fez escala na tabanca de Marela, perto da fronteira, onde deixou os feridos, continuando ele a evoluir, à cabeça dos seus homens, visando novas vitórias. Só que o exército colonial português veio mais tarde a ser informado da estrategia utilizada pelo grupo do Lay Seck. A fúria colonial abateu-se sobre a  população de Marela. O massacre foi terrível ! Lay Seck prometeu a si que nunca daria tréguas ao inimigo e a amarga lição servir-lhe-ia nas suas estratégias futuras.

 

Mais tarde o Abdulai Seck, segundo uma fonte credível e identificada,  ver-se-ia embrulhado numa intriga no seio do PAIGC. Preso pela segurança do Partido, foi conduzido à prisão da «  Montagne » em Conacri. Até à hora da sua morte, guardou um contencioso com o Lourenço Gomes « Tonton », membro do Comité Executivo de Luta e Comandante Divisionário da Segurança Nacional do Estado, e outros membros da segurança. E até depois da independência, o Lourenço Gomes não parou de provocar o Lay Seck. - Lembro-me que o « Tonton » dispensava o seu Land Rover a certos de entre nós, dizendo-lhes que fossem « passear » a Gabú, para impedir o Lay de pregar olho. - Na « Montagne », encontravam-se também os prisioneiros de guerra do PAIGC. Entre esses homens destacava-se o piloto Lobato, cuja libertação fazia parte dos objectivos da Operação « Mar Verde », de 22 de Novembro de 1970, [4] no decurso da qual um importante destacamento do exército colonial português dirigido pelo Capitão-Tenente Alpoim Calvão, invadiu Conacri a capital da República da Guiné. O grupo que fora libertar o Lobato e os seus companheiros conseguira dinamitar a prisão libertando os prisioneiros. Lay Seck, que também aí se encontrava prisioneiro, segundo a fonte que me relatou este episódio, foi convidado pelos assaltantes, a reunir-se a eles e seguir para o barco que os aguardava algures na costa guineense. Abdulai Seck recusou o convite… Acho que poucas pessoas seriam capazes de assumir tais atitudes em tais condições. Por isso considero que alguém como o Lay Seck deveria ter sido tratado como um ser excepcional. Infelizmente não lhe dispensaram esse tratamento.

 

Seria libertado depois e mais tarde nomeado membro do Conselho Superior de Luta do PAIGC, provavelmente no 2° Congresso do PAIGC em Março de 1973. , Abdulai Seck mostrou definitivamente a sua lealdade aos princípios que norteavam o Partido de Amilcar Cabral. Após o 25 de Abril participou juntamente com os camaradas Constantino Teixeira, José Araújo, Júlio de Carvalho, Juvêncio Gomes e Mário Cabral numa série de quatro encontros que tiveram lugar em Cantanhez, Sul da Guiné, com uma delegação portuguesa dirigida pelo Brigadeiro Carlos Fabião, onde as duas delegações trataram “as condições de realização de um modus vivendi tendo como base a retracção e evacuação das tropas de ocupação portuguesa”.[5] Depois da libertação do país, foi nomeado Presidente do Comité de Estado da Região de Gabú, uma das maiores do país, no Leste da Guiné-Bissau.

 

No domínio sociocultural, Abdulai Seck, tinha a fama de ser um indivíduo bem humorado que entremecia as suas afirmações com constantes anedotas satiricas e irónicas. Dotado de um talento ímpar em narrativas e divertidas tiradas, tinha uma facilidade de expressão e um brilho de raciocínio fora de série. Quando o livro de Alex Alley, «  Raízes », conseguiu atravessar a « cortina de ferro » que envolvia a prisão, todos os prisioneiros o leram. Mas quando o Lay contava a história do « Kunta Kinte », esse jovem escravo que foi acorrentado e levado às Américas, dava-me a impressão de que a história do livro que eu lera não era o mesmo que ele contava. Tinha ingredientes que davam desses aromas deliciosos ao contar, que só ele conhecia o segredo...

 

Contou-nos várias peripécias a que assistiu, ouviu ou … inventou simplesmente. Lembro-me dalgumas que transcrevo aqui, claro, sem aqueles toques que o caracterizavam como contador nato:

 

Durante a luta, ele e cerca de meia dúzia de jovens militantes do Partido, entre os quais o José Pereira que praticava o karaté, costumavam ir às praças de Conacri beber cerveja e provocar encrencas. Quando os nánias (autóctones) respondiam às suas provocações, diziam ao “”, “Puxa-lhe! ». José Pereira não se fazia de rogado e destribuia golpes de karaté a torto e a direito. Rindo, comentando e gabando-se, regressavam à sede do Partido. Até que a notícia chegou aos ouvidos do Amilcar Cabral que os convocou e deu-lhes uma terrível raspanete, tratando-os de selvagens que queriam estragar o seu trabalho !

 

Devem lembrar-se do Pina, esse internacionalista cubano que lutou nas fileiras do Partido e que veio a ser Embaixador de Cuba na Guiné… Pois, o Lay conta que o Pina gabava-se de que o crioulo já não tinha segredos para ele. Lay, logo que ouviu a notícia considerou que o cubano exagerava e então procurou-o e num círculo de conversas amenas, a dada altura, « limpou a garganta » provocando um silêncio súbito que o cubano não captou. Acto contínuo este vira-se para o autor do sonido e pergunta-lhe: « O que é que disseste? ». Uma sequência de risos engraçados deu lugar à estupefacção do Pina que ficou confuso…

 

Esta então do Luís Correia, então Director-Geral da segurança, que tinha afinal velhas contas a resolver com o Empresário Chico Correia. Este encontrava-se preso em Cumeré (1975 ?). Luís Correia lá foi um dia, completamente tocado. Mandou chamar o prisioneiro e disse-lhe, à frente de todos, que ouvira dizer que ele era um grande brigão e que queria ver do que ele era capaz. Desafiou portanto o Chico Correia à porrada tendo o cuidado de dizer aos guardas que não interviessem na contenda. O Chico Correia, rijo e felino, que devia estar farto daquelas partes gagas, reagiu como um relâmpago e num jogo de pernas digno de um Cassius Clay, esmurrou de maneira contundente o seu inesperado adversário de tal maneira que este só teve tempo de tapar a cara com as mãos gritando que cessassem o combate ! Chico Correia, filho do legendário Benjamin Correia, comerciante do seu tempo, diria mais tarde que foi pena que o seu improvisado adversário tivesse desistido do combate assim tão cedo, pois ele tão só estava na fase de aquecimento !

 

E o caso do António Borges, então Presidente do Comité de Estado da Região de Cacheu, que depois de os Presidentes dos Comités de Estado das regiões terem encaixado duras críticas da parte do Luís Cabral, por terem delapidado os seus orçamentos sem que as suas respectivas regiões tivessem conhecido qualquer progresso ou crescimento económico, no ano seguinte, na mesma reunião de balanço com o Presidente Luís Cabral o António Borges, antecipando-se às críticas, tirou o envelope do orçamento que recebera para o seu exercício anual, mostrou-o a todos os presentes dizendo assim: « Aqui está o dinheiro que recebi, podem contar, não comi nenhum tostão! »

 

Garanto-vos que, contada pelo Lay, a história é outra. E ele gostava de ser visto e tratado como o mais sisudo, o sábio dotado de retóricas simples mas fulgurantes. Quando conta que o Presidente Sekou Touré, durante a visita oficial que fez ao seu homólogo David Daco, então Presidente da República Centro Africana dos finais dos anos 60 e inicos de 70, no seu discurso frente às massas perguntou aos militares o que é que esperavam para derrubar o seu anfitrião e que logo depois do seu regresso a Conacri, consumar-se-ia o golpe de Estado que efectivamente derrubara David Daco em Bangui, dava mesmo para acreditar…

 

Lay foi o fruto de um pai Wolof do Senegal que aí pelos anos 30, emigrou para a Ilha de Bubaque onde conheceu a Nha Bédja, da etnia bijagó que mais tarde daria luz ao nosso herói. O pai do Lay Seck morreu cedo e este embora tivesse sido educado por um dos seus tios, esteve sempre muito ligado à sua mãe, quem no fim de contas o modulava ensinando-o os bons princípios da sociedade bijagó. Sabe-se que os bijagós dominam o crioulo de uma forma extraordinária. E talvez fosse este feliz enquadramento que o deu um largo conhecimento das literaturas linguísticas do oeste africano e da do  crioulo em particular. Lay não só dominava o crioulo como conhecia as suas raízes.

 

Era capaz, por exemplo, de explicar pormenorizadamente as metamorfoses da farôba [6] que de uma simples semente transforma-se no polémico netótó.[7]

 

Com tudo isto, não pensem que estou aqui a querer dizer que o Lay Seck não tinha nenhum defeito. Quem é que o não tem ? Mas entre defeitos e qualidades, creio que este homem pendia mais para cá do que para lá. Por exemplo, quando o Tony Schwarz, irmão do José Carlos, cogitava entre ficar na Guiné ou partir e como?, foi o Lay Seck  quem lhe estendeu a mão pondo à sua disposição viatura e condutor que o levou para Dakar donde partiria para encarar o seu destino sob outros céus que julgou mais propícios para ele.

 

Mas Lay, embora não tivesse tido acesso prolongado no domínio do ensino, também mostrou ser um administrador eficaz. A Região de Gabú, na altura dos acontecimentos do 14 de Novembro, considerou-se, se bem me lembro, a mais desenvolvida do país, do ponto de vista social, económico e cultural. E foi exactamente pelo seu empenho na promoção da multiculturalidade guineense que o grupo musical « N’Kassa Kobra » dedicar-lhe-ia uma das suas mais belas canções, imortalizando-o num álbum hoje convertido em compact disc.

 

Como não mostrava nenhum complexo frente aos elementos da segurança, também Lay Seck demonstrou não ter medo de agir contra a acção dos militares, quando se tratava de repor a justiça e evitar abusos.

 

Assim, uma vez, o Comandante Militar de Bafatá, o Irénio Nascimento Lopes, que afinal não digerira o assalto do 22 de Novembro de 1970 a Conacri em que fora dos primeiros combatentes do PAIGC a reagir contra a invasão, mandou prender um dos protagonistas dessa operação, o ex-comando africano Demba Thiam. Ao saber do caso e conhecendo bem os métodos do Comandante Irénio, Lay alertou logo o Presidente Luís Cabral que diligenciou perto da  cúpula das FARP, dirigida pelo João Bernardo Vieira e o ex-comando acabou por ser libertado. Só que o Irénio não se desarmara e quando menos se fez esperar, mandou de novo prender o homem e desta vez não deu azo a polémicas: executou o ex-comando em Bafatá!

 

Como é que eu soube disto ? Simples. Tive o doloroso privilégio (não a honra) de ter partilhado cerca de 25 meses de prisão com altas patentes da instituição castrense da altura: Umaro Djaló, Julião Lopes, Agostinho Cabral de Almada « Gazela », Arafã Mané, o próprio Lay Seck, Morgado Tavares, etc., etc. A única coisa que o Conselho da Revolução não podia impedir-nos era de falarmos uns com os outros...

 

Hoje, o golpe de Estado de 14 de Novembro de 1980, em nome da justiça,  faz 27 anos. João Bernardo Vieira, que na altura discursou cobras e lagartos para explicar « as razões do 14 de Novembro » e que conhecia o caso Demba Thiam de cor e salteado, não só não pediu contas ao Irénio como deixou apodrecer o Lay na prisão, Lay que foi quem velou pela justiça e foi capaz de denunciar abusos. [8] Que destino ingrato!

 

Que a terra tenha sido leve para ele.

 


[1] Pode ser consultado no www.didinho.org -Nô djunta mon

[2] « Caramó morreu! », em dialecto mandinga.

[3] Sentenciado com 1 ano de trabalhos forçados, N’Fon Tchudá morreria mais tarde na sequência do “Caso 17 de Outubro”.

[4] Ver « Operação Mar verde-um documento para a história », António Luís Marinho, Edição Círculo de leitores, 2005.

[5] José Vicente Lopes, Cabo-Verde, Os bastidores da Independência, Spleen edições, 2002, p. 357.

[6] Árvore tropical em forma de punhal que contém frutos amarelos comestíveis que no fim depositam carroços.

[7] « Netótó, mafé di garandis ! », ingrediente adorado por uns e contestado por outros pelo seu cheiro relativamente estranho.

 [8] Comentários de um leitor ao 1° extracto sobre o Lay : « Ironicamente, segundo contava-me o meu pai, foram as accões de Lay que salvaram centenas de antigos combatentes de Portugal (aqueles que lutaram ao lado de regime colonial, incluindo o meu pai). Que a alma de ambos descansem em paz. E que haja justiça! »

 

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