A Guiné-Bissau ainda é um Estado?

Na sua edição de Domingo, 17 de Outubro, o jornal português Público apresentou na sua secção "Espaço Público" um artigo de opinião de J. A. Azeredo Lopes, professor de Direito Internacional da Universidade Católica, Porto e intitulado: " A Guiné-Bissau ainda é um Estado ?", que aqui transcrevo para de seguida, fazer a minha contra-resposta ao referido artigo de opinião.

 

A Guiné-Bissau Ainda É Um Estado?
Por J. A. AZEREDO LOPES

 

[ A recente sublevação militar na Guiné-Bissau, pelos vistos ainda não contida, confirma que ali se vive uma situação de instabilidade permanente, no plano político como militar. Naturalmente, na conjuntura, são importantes todos os esforços e empenho para que, ao menos, se restabeleça uma ordem formal. Louve-se, por isso, a preocupação do Presidente da República e da diplomacia portuguesa, porque não fingiram que tudo estava bem e no melhor dos mundos.

Para um retrato cru da Guiné-Bissau, aconselho a leitura do relatório de 2004 das Nações Unidas sobre o Desenvolvimento Humano. Quando nasce, um bebé guineense tem uma esperança de vida de 45 anos e alguns meses; só quatro em cada dez guineenses sabem ler; só pouco mais de um em cada três vai à escola; e o PNB per capita pouco ultrapassa os 700 dólares. No ranking dos países do mundo, a Guiné-Bissau ocupa a 172ª posição, tendo apenas atrás de si o Burundi, o Mali, o Burkina Faso, o Níger e a Serra Leoa. Ou seja: é o sexto a contar do fim.

Tragam-se depois à colação mais elementos, alçados a um plano de objectividade que já não depende de opiniões ou perspectivas. Em destaque, a fragilidade do aparelho de poder guineense, do Parlamento à corajosa presidência interina de Henrique Rosa, a quem se pede o impossível: que realize as funções típicas do Estado sem quaisquer meios e num quadro de degenerescência endémica do sistema político e do sistema económico. Junte-se a esta impotência, que até poderia ser de curto prazo, não existirem ou serem ineficientes instituições que garantam as dimensões essenciais da vida quotidiana: a segurança, a administração da justiça, a saúde, a protecção social, etc.

O terceiro ponto não é menos importante. A Guiné-Bissau tem a sorte de não ter Darfur, de não conhecer a violência brutal do Congo ou a tentação separatista; mas tem "azar" porque não há nada de muito "espectacular" que chame a atenção. Assim, de certa maneira, é muito mais deixada à sua sorte, literalmente ignorada por todos e por toda a comunidade internacional. Quase tudo está muito mal, mas nada estará tão péssimo que justifique um olhar mais atento, como sucedeu quando do conflito armado de 1998 e da subsequente queda de Nino Vieira.

A Guiné-Bissau tornou-se irrelevante.

Posto isto, e mais se poderia invocar, é dever de todos enfrentar a pergunta: a Guiné-Bissau ainda é um Estado?

A interrogação parecerá menos descabida se tivermos presente que a doutrina e prática internacionais elaboram desde há anos em torno do conceito de Estado falhado. Em termos simples, a expressão descreve aqueles casos - o mais deles no continente africano - em que um Estado em sentido "formal" não é no terreno mais do que uma ficção (o aparelho estadual só existe no papel), pelo que a violência, declarada ou larvar, se torna "normal".

Por muito que a afirmação pareça dura, a Guiné-Bissau cabe na descrição. É hoje um Estado falhado e como tal tem, doravante, de ser tratada.

Note-se que não tenho a conclusão por pejorativa mas como diagnóstico, e dele não deverão extrair-se quaisquer ideias de "domínio" ou ambição neocolonial, de que me considero saudavelmente imune.

A razão de ser destas considerações tem a ver com a necessidade absoluta de alterar o tipo de relação com aquele país. Muito mais do que o auxílio económico tradicional nas relações Estado a Estado, muitas vezes sem consequências positivas palpáveis porque não há quem o possa aplicar em circunstâncias de eficiência mínima, a estratégia fundamental terá de passar pela reconstrução - que vai ser muito lenta - do aparelho institucional, a começar pelos órgãos de soberania. No entanto, os mecanismos dessa reconstrução nunca poderão ser accionados só a partir de fora, mesmo que com um training e formação onde já algo tem sido feito. Terá de ser promovida a partir de dentro, tanto quanto possível envolvendo, logo à partida, os guineenses. É, não tenho dúvidas, uma solução cara e de resultados pouco visíveis. Mas, de entre escassos exemplos, olhe-se à cooperação entre a Faculdade de Direito de Lisboa e a sua congénere de Bissau e perceba-se como os projectos sérios, empenhados e baseados na competência acabam sempre por dar os frutos mais saborosos. Mais do que isso, são os únicos que plantam as árvores que ficam. Professor de Direito Internacional da Universidade Católica, Porto ]

 

 

 

A Guiné-Bissau ainda é um Estado?

Por:  Fernando Casimiro (Didinho)

21. 10. 2004

Caro professor Azeredo Lopes, li com muita atenção o seu artigo referente à Guiné-Bissau.

Agradeço e valorizo o seu interesse e preocupação em abordar o assunto. Entretanto, pese o facto do seu estatuto académico afastar à partida qualquer "ousadia" em contrariar a sua abordagem, atrevo-me a fazê-lo, porquanto ter uma visão diferente da sua e que gostaria de lhe dar a conhecer também, através deste artigo.

Se por um lado a questão é pertinente, por outro, os argumentos justificados e exemplificados pelo professor não respondem à própria questão por si levantada, ainda que transmitam uma certa lógica de análise com influência de leitura e interpretação, dado o seu estatuto de professor de Direito Internacional.

Este meu artigo, não visa confrontar conhecimentos em matérias específicas, como por exemplo o Direito Internacional de que o professor é um especialista. Este artigo, visa tão somente uma chamada de atenção para uma análise mais ampla e racional da questão colocada, tendo em conta que os pontos apresentados no seu artigo não constituem referência de Facto  para se equacionar a existência ou não de um Estado.

O aconselhamento à leitura do relatório de 2004, das Nações Unidas sobre o desenvolvimento Humano que o senhor professor refere como um retrato cru da Guiné-Bissau, não serve de avaliação para a questão que se coloca, isto porque esses dados são constatações criteriosas mas não pormenorizadas.

O senhor professor sabe que 31 anos de independência de um país são só 31 anos de independência! É verdade que a Guiné-Bissau podia estar melhor, mas a herança negativa de cinco séculos de dominação colonial portuguesa não constitui também referência ao atraso do país forjado na luta pela sua independência?

De há 31 anos a esta parte, fez-se a nível de desenvolvimento Humano na Guiné-Bissau, o que em cinco séculos de colonialismo não se fez! Dou-lhe exemplos concretos: Se a nível de esperança de vida os valores rondam os 45 anos, também não é menos verdade que a nossa população quase que duplicou nestes 31 anos.

Se só quatro em cada dez guineenses sabem ler e escrever, estamos muito melhor do que nos cinco séculos de colonização, onde o analfabetismo rondava os 99,7%... Aqui também deixo à consideração do senhor professor, o número de quadros superiores, técnicos e profissionais que foram formados ao longo destes 31 anos de independência e muitos deles a trabalhar em Universidades, Hospitais e empresas portuguesas, por exemplo.

A Guiné-Bissau é um pequeno país a que têm sido impostas linhas de orientação que não se adaptam às suas realidades e condições, o que tem proporcionado desequilíbrios de vária ordem. 

Não temos complexos do posicionamento onde nos colocam. Podemos subir na escala, apesar das turbulências constantes. Estamos confiantes num futuro melhor para o país e sentimos orgulho no povo que somos.

No segundo ponto do seu artigo, o professor fala da fragilidade do poder guineense, do parlamento e da corajosa presidência interina de Henrique Rosa, a quem se pede o impossível...(?!) Não concordo consigo. Não se pede, nem se cobra nada a um presidente interino! Henrique Rosa não fez campanha, não apresentou programa. Está só de "passagem". É fácil ser-se presidente nesta situação, pese embora reconhecer a importância da acção desenvolvida por Henrique Rosa sobretudo na captação de apoios e solidariedade da Comunidade Internacional para com a Guiné-Bissau.

Os órgãos de soberania, entre eles a Assembleia Nacional Popular, obviamente que estão condicionados ao período de transição, que terminará com a realização de eleições presidenciais e, encontrado um novo presidente legitimado pelo escrutínio. De seguida, deveria ser proposto com carácter de urgência a revisão ou mesmo a elaboração de uma Nova Constituição para a Guiné-Bissau.

Quanto ao terceiro ponto do seu artigo, o professor diz que : "A Guiné-Bissau tem a sorte de não ter Darfur, de não conhecer a violência brutal do Congo ou a tentação separatista..." A meu ver, a "sorte" da Guiné-Bissau não é comparativa a nenhuma outra situação! A Guiné-Bissau tem tido, isso sim, azares nas várias governações que põem o interesse pessoal acima dos interesses do país.

Não concordo também que se diga que a Guiné-Bissau é um Estado falhado. A meu ver, não há Estados falhados. Há governos e modelos fracassados!

Terminadas que estão as respostas aos seus pontos de vista, aproveito para o desafiar, senhor professor, a CONTRIBUIR com os seus conhecimentos a nível de Direito Internacional e com sustentação no Direito Constitucional, de forma explícita e elucidativa sobre a legalidade dos órgãos de soberania e das instituições do Estado na Guiné-Bissau.

Espero ainda, que a sua Contribuição não se resuma à periodicidade dos sobressaltos na Guiné-Bissau.

A Guiné-Bissau e os guineenses agradecem !

Fernando Casimiro (Didinho)

www.didinho.org