A GUINÉ-BISSAU DE HOJE: UM OLHAR PREOCUPANTE
Por: Fernando Casimiro (Didinho)
12.10.2006
Recebi há dias, uma carta de um conterrâneo recentemente regressado de uma estadia de alguns meses na Guiné-Bissau.
Uma carta pessoal que não resisti a partilhar com todos quantos se interessam pela Guiné-Bissau.
Digamos que o meu amigo ao escrever-me esta carta, quis não só dar-me a conhecer a realidade factual do que se passa na Guiné-Bissau, como também encontrou a melhor forma de desabafar para o Mundo, o que se passa no nosso país.
Esta carta é uma ferramenta de trabalho, é uma análise que só é possível fazer por quem está ou esteve recentemente no terreno e como sabem, eu não estou lá, não posso fazer este tipo de avaliação importantíssima para o chamado ponto de situação que se impõe fazer regularmente sobre a nossa Guiné-Bissau.
Esta análise elaborada por um amigo meu, é um indicador de como se pode e se deve contribuir, estando no terreno (mesmo de passagem), para ajudar a diagnosticar os problemas de fundo que continuam a prejudicar a Guiné-Bissau e as suas populações.
Esta carta, é uma chamada de atenção para a necessidade de se reflectir a Guiné-Bissau, nós que temos inúmeros quadros superiores no país, muitos deles no desemprego, e que poderiam estar a fazer este tipo de diagnóstico para se debater o país, procurar soluções e respostas para se travar o retrocesso cada vez mais evidente na qualidade de vida das nossas populações e quiçá, no desenvolvimento da nossa terra.
Esta carta é também um exemplo de como não basta financiar grupos de guineenses para se debruçarem sobre a reconciliação nacional, por exemplo, quando o trabalho de base nem sequer é apresentado como ponto de partida e, portanto, estar-se a furtar à realidade dos factos.
Esta carta é acima de tudo, um exemplo de cidadania que deve ser tomado em conta por todos aqueles que ainda não se aperceberam da importância da reflexão e do debate de ideias na definição e edificação dos padrões: quer da democracia quer do desenvolvimento de um país. Os guineenses devem convencer-se de uma vez por todas que onde quer que estejam, devem participar neste processo.
O factor realismo deve ser a sonda de uma análise. Devemos fazer a leitura correcta das situações independentemente das caracterizações de pessimismo ou de optimismo que uma leitura pode proporcionar. Devemos ter em conta que queremos construir um país que não está estruturado, não está assente em bases calculadas para o seu suporte enquanto país designado como sendo de todos os guineenses.
O país que temos está estruturado para suportar apenas um número restrito de guineenses, não é isso que se pretende, temos portanto que alterar a fórmula de sustentação existente!
Queremos uma Guiné-Bissau património de todos os guineenses e espaço aberto a todos os seus amigos!
Se quisermos realmente mudar a Guiné-Bissau pela positiva, devemos denunciar o negativismo, o que está mal, pois só assim poderemos arranjar soluções para corrigirmos os erros e criar situações positivas.
Não tenhamos complexos em assumir a realidade dos factos, pois, se escondermos o país real que é a Guiné-Bissau, jamais conseguiremos alcançar as metas do desenvolvimento!
CARTA DE UM AMIGO Antes de tudo, quero pedir desculpas por só agora responder, mas não foi intencional. Foi apenas por motivos pessoais. Vamos continuar a trabalhar! Desistir nunca! Resistir sempre! Essa gente não pode vencer! O rei já está velho e não é a nossa esperança e menos ainda será o nosso “salvador”! De quando em vez, vem ao de cima as suas tiradas irritadiças e ameaçadoras, mas ele próprio sabe que está refém dos militares e de alguns políticos e tem pouco espaço de manobra. A correlação de forças está em seu desfavor. Na Guiné, fala-se que ele perdeu claramente as eleições, presidenciais mas foi o “lobo mau” (de facto é feio e mau :-)) que o pôs nesse lugar. Da leitura que faço, depois desse período de tempo que lá estive, penso que, ele dificilmente conseguirá implantar a ditadura no nosso país. O que pode acontecer é voltarmos a ter uma pequena turbulência motivada por questões étnicas e religiosas com os militares a serem novamente, os porta-vozes da defesa de uma causa. É isso que eu temo. E desejo tanto que a guerra nunca mais volte à nossa terra. O país está muito atrasado e pobre, e os guineenses fazem muito pela vida, Didinho! O fanatismo é um problema sério! Isso sim, poderá ter repercussões devastadoras. Todos nós sabemos que o mosaico étnico perpassa a toda a nossa sociedade, mas há recalcamentos latentes e aproveitamentos que daí possam advir, e isso, é demasiadamente grave e perigoso para quem tem pretensões a voos mais altos. Por exemplo, quando falamos com alguém, nota-se muito o acentuar da etnicidade e o condicionamento que isso traz na relação inter-pessoal e as ligações e interpretações que as pessoas fazem. Perguntas do género: “abo e kal raça (és de que raça)? Abo e de kal terra (és de onde, de que terra)? …etc. Coisas que parecem banais mais que nas entrelinhas têm o seu quê… esse sentido de “pertença”... “é dos nossos”. E isso, incomoda-me e deixa-me muito triste. Eu que sou um citadino inveterado – ter nascido e criado na cidade, não penso nessas coisas, talvez, derivado a esse facto, não sei. Portanto, como vê, são essas fardas que as pessoas ainda trazem vestidas e a reivindicar a sua “guinendade”! Quanto a “por que é que as pessoas não escrevem …” isso deve-se aos parcos recursos que as nossas gentes têm sobretudo os nossos quadros e intelectuais que, por questões de sobrevivência, não reagem. É auto-censura pelo medo de perder o lugar. O indivíduo sabe que, na ausência de cunha política, se sair desse posto, levará muito tempo a depenar e se não for forte, chega ao ponto de perder em última instância, a sua dignidade. A necessidade é inimiga da virtude, diz o povo. Sendo o Estado o principal empregador, como reagir a esta situação? Eis aqui o “dilema do prisioneiro” que se aprende em economia. A fome não tem lei. E a fome faz sair o lobo do mato, diz o povo. Sem mais delongas, esta que é a realidade. Ah, depois temos outro problema e é tudo ao contrário no nosso país: geralmente, pessoas menos preparadas e capazes (e são muitos!) é que mais ambicionam o poder e a querer dirigir aos mais capazes e melhores! Há muitos dos nossos quadros que têm uma preparação muito deficiente! As conversas dos colegas nossos que lá estão são estas: “eu também, quando cheguei, incomodava-me determinadas situações e irritava-me com certas práticas mas, já estou habituado. Passamos por cima de lixo, já estamos habituados, não temos luz e água, há meses, “nô kinguiti dja”, já estamos habituados… salários em atraso … “passo dias sem dinheiro mas desenrasco-me”;“Kuma de fassi?!”, “djitu katem”, “no kustuma dja”. “Ma no kana murri”. “Depois, acostumas-te”. É verdade. Quando cheguei, passei um mês e meio sem luz e sem água potável em casa. De 3 uma: Ou ficamos às escuras. Ou fazemos o tal contrato de luz permanente. Ou compramos um gerador, que para além dos custos de manutenção temos o custo da poluição sonora. Já imaginou por exemplo um gerador de um vizinho a 100 ou 200 m a trabalhar durante toda a noite (o meu caso, além de levarmos com o barulho dos carros, e da discoteca)? Ninguém diz nada! Não há regras, ou seja, uma República das bananas! Todo o nosso bairro (Mindará) é uma zona comercial. O sistema típico senegalês! Já imaginou, ter electrodomésticos e consumíveis e não poder usá-los porque não temos luz? Perante esta situação, para um cidadão comum que não tem “poder”, o que fazer? Ou entrar na política para ser dirigente, logo, um potencial governante ou continuar um Zé-povinho. E nem toda a gente gosta de política e muito menos ter paciência com políticos “profissionais! Ou meter-se no tráfico de droga e na fraude. Nunca vi tantos carros bonitos e topos de gama na Guiné, como agora! As pessoas não ganham para isso! Os ingleses dizem unbelievable! Portanto, como vê, a situação é complicadíssima e coloca-nos muitas interrogações com respostas difíceis. Daí, essa necessidade da maioria dos nossos quadros e intelectuais fazer política cujo fim último é o tacho. Tacho no governo ou tacho nos organismos internacionais. Ou tacho no privado, mas este não existe. São pouquíssimos os que têm uma base económica e financeira sólida. O Didinho sabe também tanto quanto eu que, esses “reis” na nossa terra, ignoram as pessoas. Quando perdem trono, dificilmente aceitam acatar de bom grado as ordens dos novos reis. Isto também, é um facto. É neste ambiente de indisciplina e de desrespeito pela hierarquia acompanhado de inveja e outras mais, onde as pessoas não falam nem discutem abertamente as questões, que as coisas se tornam ainda mais complicadas. Depois, assistimos a retaliações e contra-retaliações, tramóias, “guerrinhas”, etc. Penso que nós, guineenses, não éramos assim! Em suma, tudo isto se verifica, talvez, devido à pobreza do país. Quem é competente, e não gosta de bajulações, como é óbvio, assiste-lhe degradação profissional. Mesmo que queira, sendo empreendedor, tendo iniciativa, porém, falta-lhe o mais importante: o dinheiro. Fora do aparelho de Estado, o sucesso profissional é difícil na nossa terra. Como o privado na nossa terra, é coisa de que não se pode falar neste momento, e sendo o Estado o principal empregador, com a corrupção generalizada, tráfico de influência, etc. vivemos neste ciclo vicioso. O Estado não paga porque não tem receitas, os funcionários públicos não recebem, logo, roubam. Portanto, como vê, o medo existe. É um facto. Medo de perder o emprego como temos aqui na Europa, mas noutros moldes e com outros valores, ou seja, outra cultura. Medo da secreta, medo de espancamentos e de prisão (porque a justiça faz tábua rasa), medo de perder o “tacho”, … Os nossos bancos comerciais neste momento, ainda não concedem créditos porque não existem garantias de que o devedor vai pagar. Portanto, como os bancos trabalham com dinheiro e juros, não podem entrar nessas operações. Quem não tem rendimentos, não dá nenhuma garantia e segurança ao banco. É muito difícil! O Didinho sabia que para fazermos, por exemplo transferência bancária no valor de 200 € para Portugal, através do BAO (Banco da África Ocidental), além de apresentarmos a prova documental que justifique a transferência desse montante, que pode ser um crédito individual de consumo ou crédito à habitação feito em Portugal, temos que pagar as despesas de operação de caixa no valor de 60000 francos CFA? Há também restrição no valor máximo de crédito justificado com falta de divisas. 1 € = 650 FCFA na qualidade de vendedor e 60000 FCFA = € 92,3076 = €92 92 É muita fruta! Na qualidade de comprador, como é óbvio, este valor altera para 1€ = 700 FCFA ou 750 FCFA o que torna muito difícil operações financeiras no país, para quem quer trabalhar com parceiros de fora. Ah, esses valores de câmbio, alteram em função do período em que o país tem mais turistas (entenda-se, os nossos emigrantes) ou menos turistas. Os turistas propriamente dito, contam-se pelos dedos! Eis aqui também, uma das nossas fraquezas: o país não dispõe mais do que uma instituição financeira para operações cambiais e isso, tolhe ou dificulta o investimento directo estrangeiro. Portanto, a massa monetária (em divisas) em circulação bancária é muito diminuta. O mesmo banco, diz que tem um sistema de “Money Graham” que torna as despesas de transferência mais barata mas que neste momento não está operacional. Isto significa que, para transferirmos 200 €, temos que acrescentar mais 92 € de despesas ou seja, no total, pagamos, em moeda local o valor de 119800 FCFA. Quem ganha esse valor mensal? São muito poucos! O ordenado médio dos guineenses andará na ordem de 30000 FCFA para ser benevolente – porque nem o Ministério das Finanças tem os dados fiáveis – tendo como base os salários da função pública. 1 saco de arroz de 50 kg custa 12500 FCFA = € 19; 1kg de carne de vaca de 2ª custa 2000 FCFA = € 3,10 e o resto…. Olha que a vida está difícil no país! Existem mais dois bancos comerciais: Banco Regional de Solidariedade (BRS) e Banco de União (BU). Estes dois bancos, estão vocacionados para outro tipo de actividade nomeadamente concessão de crédito colectivo e não individual, a fim de se poder criar pequenas cooperativas cujo objectivo é combater a pobreza. Aqui também, há um “plafonamento” máximo que não excede determinado valor, amortizáveis num determinado período. Havia ainda uma outra instituição financeira que não um banco de que eu particularmente não gosto nada, dados os critérios que utilizavam na concessão do micro-crédito no combate à pobreza nas zonas rurais. Fico por aqui, o meu e-mail já vai demasiado longo. Um abraço |