A PROPÓSITO DA DITA INTEGRAÇÃO DE
CABO VERDE NA UNIÃO EUROPEIA
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Autora: Elisa Andrade*
Ao ver os primeiros títulos dos artigos sobre a dita integração de Cabo Verde na
Europa, entre eles, “Europa tem vantagem na adesão de Cabo Verde”, Cabo Verde de
Volta à Europa, “Petição Soares e Adriano Moreira apadrinham ideia pela
importância geo-estratégica do arquipélago, Estado português terá de convencer
pares”, pensei para comigo: há caboverdianos que são decididamente tinhosos!
Quase dois séculos após o Arquipélago ter recebido, pela primeira vez, a
designação de "província do Ultramar", devendo, por este facto, ser administrado
ao abrigo da legislação e organização administrativa aplicáveis à "metrópole", o
que na realidade nunca aconteceu, lá voltam eles a querer mais uma vez ser
europeus.
Defeito de profissão, pois sou Historiadora. Mas não estou escrevendo um texto
histórico, embora recorra à História. Estou sim, reagindo como cidadã que tomou
parte activa na luta de libertação da Guiné e Cabo Verde e está mais do que
nunca convencida que valeu a pena, mau grado a mundialização que reduziu as
fronteiras, diz-se.
Tentei lembrar-me do que diziam ideólogos, políticos e gentes das Ciências
Sociais do recente passado colonial, lá me esbarrei, nas minhas notas, com
Mendes Corrêa que em 1954 dizia ser provável que a distância em relação à
"metrópole", as características africanas do arquipélago – do ponto de vista
geográfico e pela existência de problemas que lhe são específicos – tivessem
determinado, até então, a resistência em considerar as ilhas de Cabo Verde como
uma província ultramarina e atribuir-lhes a designação de ilhas adjacentes.
Aliás, acrescentava ele, à primeira vista, essas ilhas não são, pela sua posição
geográfica, adjacentes à metrópole; elas são-no, em relação ao continente
africano. Por outro lado, concluiu Mendes Corrêa, os interesses nacional e local
recomendavam, pelo menos por algum tempo ainda, que se mantivesse o statu-quo
sobre a questão. Statu quo este que Mário Soares, ex-Presidente da República
Portuguesa vem tentando quebrar, por portas e travessas, desde a sua famosa
visita a Tenerife (1994).
Finalmente, os ditos caboverdianos europeístas, mesmo se estão por detrás, não
deram a cara. É o próprio Adriano Moreira que diz, As autoridades portuguesas
estão indicadas e legitimadas para terem a iniciativa de propor a abertura de um
processo de adesão de Cabo Verde à União Europeia. Pergunto, neste ano em que
vamos festejar o 30º Aniversário da Independência de Cabo Verde, o que indica e
legitima as autoridades portuguesas? Merece explicação, pois não entendi. Os
dirigentes, deste país que é o meu, deram essa legitimidade?
Na opinião do Adriano Moreira, (…) é indiscutível que a sociedade civil
caboverdiana incorporou na identidade cultural os valores que são dominadores
comuns dos europeus, sendo uma das expressões mais bem sucedidas das sínteses
culturais a partir de um multiculturalismo derivado do modelo de povoamento. De
todos os territórios onde Portugal teve responsabilidades (sofisma!!!), [Cabo
Verde] é o exemplo mais perfeito. A marca europeia está ali (entrevista para o
Capital).
Quais são esses valores caboverdianos que são comuns aos europeus?
Uma das expressões mais bem sucedidas das sínteses culturais? No restante
Ultramar Português as sínteses não foram tão bem sucedidas? Mesmo no Brasil que
se tornou independente em 1822? Que me diz de Angola e Moçambique onde há bem
razoáveis minorias mestiças e de origem portuguesa? E São Tomé e Príncipe cujas
afinidades com Cabo Verde levaram Francisco Tenreiro a escrever: Cabo Verde e
São Tomé e Príncipe. Esquema de uma evolução conjunta? É nesses países que,
contrariamente a Cabo Verde, encontramos parte importante das populações que tem
como língua materna o português! Na Guiné Bissau a língua caboverdiana
tornou-se, com a luta de libertação nacional que uniu os dois povos, mão grado,
bom grado, a língua de comunicação de uma larga maioria!
O que significa uma síntese mais bem sucedida finalmente?
Em quê a marca europeia difere da das outras ex-colónias?
Quanto à literatura caboverdiana, ela é, para Adriano Moreira, das mais
enriquecedoras do espaço lusíada. Trata-se de uma cooptação ou uma recuperação
por os Claridosos se terem declarado movidos pela aristocratização da sua
escrita (a deles) para poderem ser aceites pela Metrópole como sendo a expressão
regional da cultura portuguesa? Se é apropriação pura e simplesmente, esse
espaço lusíada incorpora os outros países de língua portuguesa? Representação e
projecção ainda do conceito do Ultramar Português? É por essas e por outras que
adiro, do coração, ao que disse François Miterrand aos outros francófonos:
partilhamos uma mesma língua.
Sobre a Independência de Cabo Verde Adriano Moreira considera que ela resulta do
movimento geral descolonizador impulsionado pela ONU.
Embora esteja já habituada à amnésia histórica que ataca fortemente a maior
parte dos políticos, custa-me ver a luta levada a cabo pelo PAIGC desde a sua
constituição em 1956, na Guiné Bissau até à Revolução dos Cravos em Portugal,
com tantas vidas deixadas pelo caminho, ser assim apagada como um simples
exercício de borracha sobre papel escrito com lápis!!!
Só para refrescar as memórias, pois não quero, de facto, fazer História, lembro
aqui o que disse Cabral em 1968: a situação na Guiné Bissau, onde se processava
a luta conjunta, era a de um Estado independente em que uma parte do território
– principalmente as zonas urbanas – estava ilegalmente ocupada pelas forças
armadas estrangeiras.
Foi tal situação que permitiu à Paulette Mathy Pierson , escrever o que segue,
relativamente à invasão de Conacry, em 1970, pelos colonialistas portugueses: "O
fracasso dessa agressão armada e a sua condenação pelo Conselho de Segurança, na
base de conclusões apresentadas por uma missão internacional que para aí foi
enviada, contribuem fortemente para o isolamento, no plano internacional do
regime colonial português e abrem novas perspectivas à luta do P.A.I.G.C., tanto
no plano interno como internacional"
A despeito da morte de Cabral ocorrida a 20 de Janeiro de 1973, a Assembleia
Nacional Popular reunida nas zonas libertadas do Boé, proclama a 24 de Setembro
de 1973, a República da Guiné-Bissau, Estado independente.
Pouco tempo depois, 75 Estados de todos os continentes reconheciam o Estado
guineense, que foi admitido na Organização da Unidade Africana (OUA) a 19 de
Novembro de 1973.
Por isso tudo e por outras, dificilmente me esqueço que foi Adriano José Alves
Moreira o então Ministro do Ultramar quem assinou o Decreto 43 600, de 14 de
Abril de 1961 que instituía em Chão Bom um campo de trabalho que na realidade
era a reabertura do Campo de Concentração do Tarrafal para, desta vez, acolher
os nacionalistas das ex-colónias portuguesas!
A primeira leva de presos recebida após a reabertura do campo foi de 32
angolanos, dos quais dois vieram a falecer às más condições alimentares e
sanitárias: Pedro Benje e Marques Monteiro. Mas também aí morreram Sérgio dos
Reis Furtado (Cabo Verde), Cotumo Cassama (Guiné Bissau) .
Os que não morreram, guineenses, caboverdianos, angolanos, muitos trazem até
hoje no corpo e no espírito as marcas profundas da sua passagem pelo Campo da
Morte Lenta.
Muito sinceramente, neste mundo de hoje em processo de globalização,
inspirando-me das diversas ideias e políticas de multiculturalismo e
interculturalismo que a própria Europa vem praticando há cerca de duas décadas e
fundamentando-me nos Direitos Humanos, à semelhança do que muitos países vêm
fazendo em relação ao povo judeu, começaria por apresentar as minhas desculpas
públicas senão aos países, pelos menos aos ex-prisioneiros e/ou às suas famílias
e tentaria criar um grupo de apoio para a abertura de negociações com vista à
reparação dos danos causados.
*Historiadora caboverdiana
Artigo disponibilizado pela autora a 24.05.2005
AINDA A PROPÓSITO DA DITA INTEGRAÇÃO DE CABO
VERDE NA UNIÃO EUROPEIA
Autora: Elisa Andrade*
Morremos e ressuscitamos
todos os anos/para desespero dos que nos impedem/a caminhada/Teimosamente
continuamos de pé/num desafio aos deuses e aos homens…
Ovídio Martins
Antes de
comentar algumas passagens da entrevista de Mário Soares concedida a Maria
Jorge Costa (A Capital - 16 -03-05), vou voltar a página com Adriano
Moreira com um comentário mais, após a leitura da extensa entrevista que
acordou a José Vicente Lopes.
Decididamente, Adriano Moreira e eu, estivemos e continuamos em lados opostos
da trincheira[1].
Por um lado, afirma que por nunca ter havido movimentos violentos em Cabo
Verde, quis subtraí-lo do movimento geral que perpassava pela comunidade
internacional em 1962, dando-lhe o estatuto de adjacência que aliás não
conseguiu por ter saído do governo da Salazar. Mas também, porque “entendia
que Cabo Verde, pela sua composição social e cultural, não tinha um povo que
devesse ser envolvido na luta anticolonial que havia no mundo nessa altura”.
Bendigo a histórica decisão tomada pelas organizações anticolonialistas – MPLA,
PAI (GC) e Goa League, tomada na reunião de Londres em Dezembro de 1960 de
passar à acção directa caso o governo português não respondesse às suas
reivindicações. Mas quando desencadearam a luta armada, passaram a ser os seus
terroristas!!! Para nós outros são os nossos Combatentes da Liberdade da
Pátria ou heróis (os que faleceram) que pela sua acção directa contribuíram
para o derrube do fascismo em Portugal e permitiram a efectivação do direito à
autodeterminação, indispensável à vida dos povos que a ONU acabou por absorver
aquando da sua Assembleia Geral de
16 de Dezembro de
1996.
Não resisto em transcrever aqui o que escreveu, há bem pouco tempo, Aristides Pereira: “…a presença colonial portuguesa em Cabo Verde é amiúde assinalada na historiografia portuguesa como sendo diferente em relação a outras colónias, procurando mesmo a política oficial de Portugal colonialista, ao longo de todo o processo da colonização, dar a ideia de que Cabo Verde era um caso à parte e, como tal, merecendo na sua generalidade um tratamento jurídico diferente. Apesar de tudo, nunca se deixou de sentir a relação dominador-dominado, assentando aí a génese de todo um processo que culminaria mais tarde no despertar do nacionalismo cabo-verdiano[2]”.
Passando agora a Mário Soares, confesso logo a minha perplexidade pois não consigo fazer a destrinça com Adriano Moreira. Pior. Há propósitos do primeiro que quase me chocam!
Diz Mário
Soares que os caboverdianos não devem ser exclusivamente africanos pois são
“uma mistura de africanos e de portugueses, de
judeus, gente que passou em todas as direcções cruzando o Atlântico”. Nisso
temos, em termos de formação dos povos, muito de comum com os portugueses pois
são originários também de uma mistura de Celtas, Iberos, Romanos, Alanos,
Vândalos, Suevos, Visigodos, Árabes (oito séculos?) e nós outros
Negro-Africanos (cerca de 15% da população de Lisboa no século XV). Apesar de
tudo, continuam sendo portugueses e europeus porque inseridos geograficamente
no continente europeu.
Para Mário Soares, o facto de termos um partido
chamado PAIGC é “circunstancial”
(mesmo se a luta se estendeu de 1956 a 1974 tendo pelo meio o
massacre de Pindjiguiti) e resulta do facto de “Amílcal Cabral ser
cabo-verdiano de facto, mas criado na Guiné”.
Amnésia
histórica dos políticos ou desconhecimento da História de Cabo Verde? Os
Negro-Africanos, essencialmente originários da Guiné-Bissau, foram sempre
maioritários na formação do povo caboverdiano (António Carreira, Padre António
Brásio, Cristiano José de Senna Barcellos e muitos outros). Amílcar recorreu,
nomeadamente, à História e à Antropologia Cultural, para além da sua
experiência vivida aquando do Recenseamento Agrícola na Guiné-Bissau, para um
maior e melhor aprofundamento do seu conhecimento dos povos da Guiné e Cabo
Verde para, com mais justeza, definir a sua estratégia de luta de libertação
que foi tão bem sucedida que levou à independência dos dois países, mesmo
depois da sua morte. Cabral soube apreender bem os fundamentos históricos,
populacionais e culturais que fundamentaram a Unidade de Luta dos dois países.
Dizer que “os guineenses não gostam dos
cabo-verdianos porque os consideram diferentes” pois “os cabo-verdianos
durante o império colonial português tiveram sempre um comportamento diferente
dos outros porque se consideravam intermediários entre eles e África, e
estiveram muitos funcionários cabo-verdianos em Angola, Moçambique, etc”, é o
máximo. Tentarei não qualificar tal asserção. Direi só que a pior
safadeza que os colonialistas nos fizeram foi a criação desses
“muitos” caboverdianos instrumentos da dominação colonial portuguesa
e a sua política assimilacionista consubstanciada na criação do Seminário
Liceu de São Nicolau donde saiu a primeira fornada dos que partiram ajudar a
administrar as outras ex-colónias portuguesas.
Aliás, o Spínola soube bem tirar partido de tal situação. Convencido que “uma guerra subversiva não se ganha militarmente” e que “a vitória, essa, tem que ser conseguida pelo governo no campo político, a sua estratégia irá privilegiar os factores político sociais. “Além do reforço e reorganização das forças armadas, do reordenamento populacional, do abandono do sistema de quadrícula e dos esforços para neutralização dos apoios do PAIGC nos países limítrofes, o seu programa visará especialmente o desenvolvimento económico, a justiça social, o reforço das instituições tradicionais, o aproveitamento das divisões étnicas e a exploração das tensões entre guineenses e caboverdianos no interior do PAIGC”[3]. Esta última concretizar-se-ia na sua política: por uma Guiné melhor que felizmente ficou acantonada nas zonas urbanas, as únicas que então controlava.
Conseguiu sim, armar as mãos que abateram Amílcar, mas não travar o processo irreversível de libertação.
Felizmente, se houve condecorado caboverdiano pelos
feitos aquando da última guerra dita de pacificação que levou à rendição da
Rainha Oqinqa Pampa em 1936, (Bijagós-Guiné-Bissau) e herói em Mucaba (início
da luta de libertação em Angola), houve o Pedro Silva e Silvino da Luz (que
foi parar nas masmorras da Nigéria por ter desertado exército colonial em
Angola), e quantos outros que lutaram ao lado dos angolanos, moçambicanos para
a independência desses países.
Se tivesse alguma dúvida quanto à estima e
companheirismo que unem os povos da Guiné e Cabo Verde, tê-la-ia perdido com o
acolhimento que o povo reservou ao Presidente da República de Cabo Verde e à
sua comitiva durante a sua visita a este país irmão de história e de sangue.
Que haja alguns que não gostem, admito. Os mesmos sentimentos de alguma
animosidade e/ou intolerância tocam alguns de entre nós outros caboverdianos
do barlavento e sotavento. Mas nada que a história, se for bem contada não
deixará de elucidar e fazer desaparecer com o tempo. Mas História feita por
nós outros caboverdianos e guineenses. Pensamos como Braudel[4]
que “O Historiador só está inteiramente à vontade no acesso à história do seu
próprio país” pois “compreende quase instintivamente os seus rodeios,
meandros, originalidades, fraquezas”. E conclui, “Nunca, por mais erudito que
seja, possui tais trunfos, quando se aloja em casa de outrem”.
O Amílcar, que morreu a 20 de Janeiro de 1973, não
podia entender “que devia haver um partido único” pois tal decisão só foi
tomada com o advento da independência de Cabo Verde, ou seja, a 5 de Julho de
1975.
Sobre o “grupo (de quê?) do PAIGC
onde estava o Pedro Pires, que era o chefe”, palavras do Mário Soares,
Aristides Pereira escreve o seguinte: “Na sequência da reunião de Dakar, as
delegações[5]
do PAIGC e do Governo português encontram-se em Londres com vista a dar início
às conversações previstas. A primeira era constituída por Pedro Pires (chefe
da delegação[6]),
José Araújo, Úmaro Djalo, Lúcio Soares Bobo Queta, Júlio Semedo e Gil
Fernandes, a segunda, pelo ministro da Coordenação Interterritorial, Almeida
Santos, o chefe da casa civil da Presidência, Almeida Bruno, e Jorge Campinos,
embaixador”.
A “questão de Cabo Verde”, que, na sequência das
discussões sobre a Guiné, veio “por arrastamento” tratá-la-emos no próximo
artigo.
*Historiadora caboverdiana
Artigo disponibilizado pela autora a
7.05.2005
[1] Efectivamente já estávamos quando, em 1961, foi tomada a decisão de instalar uma comissão administrativa na Casa dos Estudantes do Império, considerada lugar de subversão. Decidimos ocupá-la impedindo a concretização, na altura, da mesma.
[2] PEREIRA, Aristides, Uma luta, um partido, dois países, notícias editorial, 2002.
[3] SILVA, António E. Duarte, A independência da Guiné-Bissau e a descolonização portuguesa”, Edições Afrontamento, Porto, 1997.
[4] BRAUDEL,
Fernand, L’identité de la France, Ed. Flammarion, 1986.
[5] O sublinhado é nosso.
[6] Idem
VAMOS CONTINUAR A TRABALHAR!
Projecto Guiné-Bissau: CONTRIBUTO