Em entrevista ao Notícias
Lusófonas, Carlos Veiga faz a radiografia de Cabo Verde mas vai muito mais
longe. Muito mais...
Se Carlos Veiga, por ser causídico de profissão,
fosse o actor principal do argumento de um filme dos realizadores Spike Lee
ou de Steven Spielberg, certamente que não teriam que dar muitas voltas à
cabeça para dar um título à película que lhe assentaria como uma luva: Um
advogado de causas (quase sempre) perdidas em Cabo-Verde.
Por Jorge Eurico
Carlos Veiga, que nos anos de 1975 e 76 quando viveu e trabalhou em Angola
foi convidado por Lúcio Lara para ser governador do então Silva Porto, Bié,
(mas isso é conversa para outra altura) denuncia que o Estado a que pertence
está excessivamente partidarizado e acusa Pedro Pires e o actual Governo de
serem os promotores da regressão democrática no País que é (era) tido como
um exemplo digno de ser seguido no continente negro.
Candidato às eleições presidenciais cabo-verdianas, o antigo
primeiro-ministro, não puxa da faca (o que é típico destes irmãos da
lusofonia quando se trata de briga), mas solta a voz e acusa o MPLA de ter
feito campanha em favor de Pedro Pires e do PAICV. Diz que não se cala e que
vai mesmo impugnar as eleições.
Notícias Lusófonas – É a segunda vez que se
candidata e perde e já vai sendo conhecido como o Lula da Silva africano...
Carlos Veiga – Ganhei duas vezes em
Cabo-Verde. Sempre ganhei nas ilhas. Perdi na emigração. Em 2001 está claro.
Há pelo menos três decisões judiciais a confirmar a existência de fraudes em
números que suplantam a diferença de votos que então houve, 12 votos. Agora
vou impugnar as eleições porque considero que elas não foram justas nem
transparentes. Mas lá em Cabo-Verde ganhei. Perdi foi na emigração, no caso
concreto dos círculos dos Estados Unidos da América e de África. Acho que
também aí as eleições não decorreram de forma democrática, justa e
transparente. Portanto, a explicação é essa. Agora, se me comparam a Lula da
Silva, presidente do Brasil, fico satisfeito. Ele é um grande homem, que de
facto perdeu eleições várias vezes antes de se tornar um presidente
carismático. Mas na essência não sei se a comparação faz sentido.
NL – Tem-se dito que à terceira é de vez. Pensa
candidatar-se mais uma vez nos próximos cinco anos?
CV – Ainda falta muito tempo e muita
coisa pode acontecer.
NL – Tinha dito à Comunicação Social que aceitaria
quaisquer que fossem os resultados eleitorais, mas agora entendeu
impugna-los...
CV – Disse que aceitaria sempre desde
que fossem eleições justas e transparentes. Nem que fosse por um voto,
aceitaria isso com toda naturalidade. Portanto, aceitaria o vencedor e
felicita-lo-ia. Agora, com a violação de tudo que são normas essências de um
processo eleitoral democrático, eu não posso aceitar os resultados.
NL – Este processo não contradiz a tese segundo a
qual Cabo-Verde é exemplo digno de ser seguido em África?
CV – Criou-se uma boa imagem de
Cabo-Verde, mas quem lá vai e quiser analisar objectivamente as coisas e
falar com as pessoas sem constrangimentos, concluirá que a qualidade da
nossa democracia baixou bastante e que os processos eleitorais foram
inquinados. Nas eleições legislativas, o MpD impugnou e apresentou provas
documentais, uma listagem com mais de duas mil páginas de situações em que o
mesmo número de identificação, bilhete de identidade ou passaporte, é
atribuído a várias pessoas. Isso é legalmente impossível. Portanto, a
qualidade da nossa democracia baixou. Sei que vão dizer que sou
anti-patriota, mas acho que anti-patriota é quem contribui para que essa
qualidade diminua e organiza manipulação dos cadernos eleitorais. Essas
pessoas são responsáveis pelo que acontecer à boa imagem que Cabo-Verde tem.
Há bons motivos para se dizer que Cabo-Verde tem tido sucesso no seu
processo de desenvolvimento e de se afirmar como país credível. Tem tido
sucesso sobretudo a partir da abertura democrática. O que Cabo-Verde é hoje
decorre do facto de ter sido independente. Isso é a base, mas sobretudo por
ter abraçado a via democrática em 1990 e durante 10 anos ter sido possível
construir uma economia de mercado, um Estado de Direito e investir no
capital humano. Mas a qualidade da democracia, nos últimos anos, tem
diminuído a começar pelas eleições que não foram justas nem transparentes.
NL – Porquê que em África quando se perde as
eleições há o costume de se pôr em causa a democracia e rejeitar os
resultados?
CV – Lamento muito. Em Cabo-Verde
tínhamos a ideia de que isso não acontecia, mas a partir de 2001 ficamos
cientes de que acontece. Como lhe disse, há três sentenças judiciais. Um
delas confirmada pelo Supremo Tribunal de Justiça (STJ) que condenou pessoas
em penas de prisão efectiva por terem praticado fraudes eleitorais nas
eleições presidenciais de 2001 e em número tal que alterariam claramente os
resultados das eleições. Mas aceitei os resultados das eleições à mesma,
perseguindo depois as pessoas no Tribunal criminalmente. Três delas já
cumpriram dezoito meses de prisões, três estão condenadas há mais dezoito
meses de prisão e outras três estão condenadas há dois anos de prisão com
pena suspensa. Portanto, não há dúvida de que houve fraude. Agora, eu digo o
seguinte. Normalmente a Comunidade Internacional olha para África com muitos
preconceitos, quando se deveria fazer um esforço para apurar se há ou não
fraude. Penso que a Comunidade Internacional ajudar-nos-ia a evitar essas
situações se analisasse a democracia em África sob os mesmos parâmetros com
que ela é analisada noutras partes do mundo. Não se pode considerar absurda
uma situação na Europa e aceitar essa situação em África. Diz-se que os
africanos não são muito exigentes. Não aceito esse ponto de vista. Pelo
menos em Cabo-Verde não queremos aceitar isso. Pensamos que a nossa
democracia tem que se aperfeiçoar cada vez mais. Não aceitamos essa dupla
forma de a Comunidade Internacional ver as coisas. Uma exigência maior para
África e uma exigência menor para os outros países. Queremos ser tratados em
pé de igualdade com os outros países. Queremos que em Cabo-Verde se instale
uma verdadeira democracia. Portanto, não vou aceitar ficar calado perante as
ameaças que sinto que vão incidir sobre Cabo-Verde. Quero viver num
Cabo-Verde livre e democrático. Quero ver o meu povo livre.
NL – Quem é o promotor da regressão democrática em
Cabo-Verde?
CV – O Governo e o presidente da
República actuais. Eles não fizeram o que deveriam fazer. Basta ir a
Cabo-Verde e falar com as pessoas para ver como os cabo-verdianos se sentem
hoje.
NL – Os cabo-verdianos votaram na continuidade da
regressão a democrática?
CV – Se tivesse estado em Cabo-Verde e
visse como estavam os cadernos eleitorais, compreenderia por que isso
acontece. No meu caso concreto, a realidade é mais flagrante. Repare, os
partidos que me apoiaram teoricamente perderam as eleições legislativas no
dia 22 de Janeiro com 14 mil votos de diferença e eu, menos de um mês
depois, recuperei estes votos todos. Portanto, ganhei nas ilhas de
Cabo-Verde tal como tinha ganho em 2001. O problema está no acto de o
processo estar viciado em termos de favorecer quem está no poder e de criar
situações que impede a vontade dos cabo-verdianos expressarem de forma
autêntica.
NL – Soluções?
CV – É preciso partir para um
recenseamento novo feito sob supervisão de uma entidade independente. Se for
uma entidade da Organização das Nações Unidas (ONU) melhor ainda. Se não
houver um recenseamento novo, não vale a pena concorrer às eleições e depois
as pessoas irão ver as consequências disso tudo. Todo o sistema da
administração eleitoral tem de ser alterado. A Comissão Nacional de Eleições
tem que ter poderes e ter sob a sua dependência todos os outros órgãos da
administração eleitoral, mas não é o que acontece. Temos uma Direcção-Geral
de Apoio ao Processo Eleitoral (DGAPE), que é dependente do Governo que não
presta contas a ninguém. E ela que tem a capacidade de manipular os cadernos
eleitorais. Os cartões eleitorais só são dados a certas pessoas e não a
todas, por exemplo. Portanto, a que rever completamente o sistema de
recenseamento eleitoral e há que dar força à Comissão Nacional de Eleições
que deve emergir como um órgão verdadeiramente independente do Governo ou
das maiorias políticas partidárias que existem. Estes dois elementos que
são, do meu ponto de vista, fundamental para credibilizar as eleições em
Cabo-Verde. Senão as pessoas vão pensar que não vale a pena ir para as
eleições e em dois tempos cairmos em situações que ninguém quer em
Cabo-Verde. A paz social que existe em Cabo-Verde baseia-se muito na
democracia e na capacidade de alternância de poder, que já aconteceu. Mas se
as pessoas chegam à conclusão de que não é possível continuar por essa via,
a paz social é bem capaz de ser posta em causa, o que ninguém quer em
Cabo-Verde.
NL – Como explica o facto de ganhar em Cabo-Verde e
perder no estrangeiro?
CV – A força do povo em Cabo-Verde é
muito grande. Fora do país é quase impossível controlar o processo. Por
exemplo, na Guiné-Bissau não é possível controlar o processo. Duvido muito
que o grosso das pessoas recenseadas seja cabo-verdiana. Como posso
controlar isso? É impossível! O mesmo se passa em Angola, São-Tomé e
Moçambique. Não é possível controlar! A administração eleitoral nestes
países é controlada pelas embaixadas e consulados, que têm funcionado como
comissários políticos do partido no poder. Não há isenção na administração
eleitoral. Isto tem que ser completamente alterado. Não é possível ter tudo
nas mãos dos consulados e das embaixadas que põem e dispõem em matéria de
administração eleitoral.
NL – O Estado cabo-verdiano está partidarizado?
CV – Intensamente partidarizado.
Infelizmente! É pena que quadros importantes cabo-verdianos não são
utilizados a 100% precisamente por causa da partidarização existente. Penso
que o país precisa de uma administração pública isenta. É necessário que as
pessoas tenham uma cultura de serviço público e que nessa matéria não
houvesse partidarização. Não pode acontecer que cada vez que muda um Governo
muda toda gente, até o jardineiro. Isto é inaceitável num pais como
Cabo-Verde, mas infelizmente essa situação ocorre.
NL – Politicamente como está Cabo-Verde?
CV – A qualidade da democracia
cabo-verdiana regrediu bastante. Temos uma administração intensamente
partidarizada. Temos um sistema eleitoral que não oferece a mínima confiança
e não temos um sistema de garantia dos Direitos dos cidadãos, porque
infelizmente a nossa justiça não tem cumprido com o seu papel. Ela é
extremamente morosa. Por outro lado, não se conseguiu ainda pôr a funcionar
instituições que estão na Constituição desde 1999, tais como o Tribunal
Constitucional e o Provedor de Justiça. Os tribunais fiscais, por exemplo,
não funcionam. Daí que, em vários aspectos, o cidadão esteja bastante
despido de garantias relativamente aos seus direitos. E isso é falta de
vontade política. O Tribunal Constitucional e o Provedor de Justiça não
estão a funcionar por falta de consenso e entendimento entre os dois
principais partidos. E o Presidente da República nada faz para procurar esse
consenso. Isso é inaceitável e são sintomas evidentes de uma regressão da
nossa democracia. E é preocupante. O medo voltou a Cabo-Verde.
NL – O Estado de direito e democrático em
Cabo-Verde está em perigo?
CV – Está em perigo sobretudo se o pilar
Justiça não se regenerar e não se consolidar.
NL – Caso tivesse ganho as eleições, qual seria o
seu primeiro acto?
CV – Primeiro, poria em prática os
órgãos que estão previstos na Constituição. Segundo, a questão da Justiça
seria para mim uma questão fundamental. Conheço muito bem a Justiça. Até ao
dia em que me candidatei às eleições presidenciais, eu era bastonário da
Ordem dos Advogados de Cabo-Verde.
NL – Foi acusado pelo PAICV de querer instaurar um
clima de instabilidade e obter interesses obscuros pessoais.
CV – Quem disse isso foi o mandatário do
candidato Pedro Pires. Ele terá que provar isso. Toda a gente me conhece em
Cabo-Verde. Não preciso da política para nada. Já provei que vivo melhor
fora da política. Tenho tudo o que quero e preciso para viver fora da
política. O que o mandatário de Pedro Pires dizia é que não pode haver, em
Cabo-Verde, um presidente de uma família política e um Governo de outra
família política. Em Portugal pode haver! Em Espanha pode haver! Mas os
cabo-verdianos estão menos preparados para isso. Não aceito essa tese. Acho
que os cabo-verdianos têm maturidade suficiente e sabem escolher bem. Eu
ganhei em Cabo-Verde. Como é possível que nas eleições legislativas os
partidos que me apoiaram tenham tido 14 mil votos a menos, pelo menos é o
que se diz teoricamente, e eu tenha recuperado isso tudo e ganho em
Cabo-Verde. Como é possível isso? Porque as pessoas distinguem claramente
entre eleições autárquicas, legislativas e presidenciais. Portanto, essa
tese não tem nenhum fundamento. Porque em termos de apego à estabilidade, os
exemplos são opostos. Aceitei os resultados fraudulentos, com uma diferença
de 12 votos, em 2001, em nome da estabilidade, ao contrário do meu
adversário que em 91 ameaçou Aristides Pereira abandonar o Governo na rua se
num prazo de uma semana ou quinze dias Aristides Pereira não tivesse um novo
Governo. O actual presidente quando era líder do PAICV estava no Parlamento
não votou a Constituição da República. Fez com que ele e a sua bancada
abandonassem a sala para não votar. Isso é que é respeito pelas
instituições, pela estabilidade? Quem dá estabilidade e respeita o Estado
Cabo-Verdiano sou eu e não o actual presidente da República.
NL – Chegou-se a comprovar de facto a compra de
votos e de consciência na Ilha de Fogo?
CV – A compra fez-se utilizando os
recursos públicos. Fez-se uma grande pressão sobre as pessoas que vivem em
grandes dificuldades. Ainda na véspera das eleições estava-se a distribuir
em certos bairros da cidade da Praia cimento e blocos para as pessoas
construírem ou melhorarem as suas casas. Isto é uma forma de comprar votos.
Em São Tomé e Pirncipe andou-se a distribuir dinheiro às pessoas. Passou-se
muito tempo sem se atribuir subsídios aos cidadãos vulneráveis que se
encontram em São-Tomé para se distribuir justamente no período das eleições.
É claro que estas pessoas vão dizer “eu voto no partido do cônsul”. É
evidente que o cônsul andou a distribuir os subsídios do Estado
cabo-verdiano. É assim infelizmente que as coisas estão a funcionar em
Cabo-Verde.
NL – O que se passou em São Tomé e Príncipe também
aconteceu aqui em Portugal e em Angola?
CV – Os estudantes e outros
cabo-verdianos que cá vivem em grande número e que prezam pela democracia
trabalharam bastante para controlar a situação. Portanto, os resultados que
tive aqui (Portugal) foram muito bons em comparação com os anteriores.
Agora, em Angola, São-Tomé e Príncipe, Moçambique e Guiné-Bissau não tive
controlo nenhum. Em São-Tomé sei que isso se passou por que estive lá em
Janeiro em trabalho profissional e as pessoas disseram-me. As coisas
estão-se a passar assim. Pude comprovar isso. Agora, em Angola ou em
Moçambique, o processo foi incontrolado. Os cadernos eleitorais foram
elaborados como se quis, não se cumpriu nenhuma das fases que estão
previstas num processo de recenseamento. Penso que quer em Angola, São Tome
e Príncipe, Guiné-Bissau e Moçambique terá funcionado a ideia de que
devia-se votar no partido do cônsul ou do embaixador. Com uma agravante que
tenho que revelar. Em São Tomé, o MLSTP/PSD fez campanha em torno de uma das
candidaturas e em Angola o MPLA fez campanha de uma candidatura, na
Guiné-Bissau se fez campanha em favor de uma das candidaturas.
NL – Mas como é que confirma que o MPLA…
CV – O MPLA sempre apoiou o PAICV e
Pedro Pires. Francamente, isso não é aceitável. Não fica bem na relação
entre os dois povos. Os cabo-verdianos sentem muito isso. As relações devem
processar-se Estado a Estado e com objectividade. Estou convencido que os
angolanos não aceitariam que os cabo-verdianos fossem fazer campanha contra
o MPLA. Penso que é uma questão de respeito mútuo. Não deveria haver esse
tipo de intervenção. Não são interesses partidários que estão em causa, são
interesses de nações. O partido no poder em Angola intrometeu-se
indevidamente numa questão interna de Cabo-Verde.
NL – Isso pode pôr em causa a relação entre os dois
estados?
CV – Não põem em causa, mas magoa. E
esta mágoa não é boa nas relações entre os dois estados angolanos e
cabo-verdianos. Esse tipo de promiscuidade político partidária não é bom.
NL – Não teme que dentro de cinco anos possa voltar
a acontecer o mesmo?
CV – Vou lutar para que não aconteça.
Não vou ficar calado. Vou denunciar interna e externamente aquilo que
considero regressões do Estado de direito democrático em Cabo-Verde. Não
vale a pena forjar-se uma imagem que não corresponde à realidade. O
importante para mim é que Cabo-Verde seja um bom exemplo de democracia na
realidade.
NL – Então a democracia em Cabo-Verde é apenas um
adjectivo?
CV – Há dias um juiz disse aqui em
Portugal que a democracia em Portugal, a propósito da busca que a Polícia
Judiciária (PJ) fez na redacção do “24 Horas”, está presa por arames. Eu
diria que em Cabo-Verde a situação é mais precária. Os arames que prendem a
democracia em Cabo-Verde podem ser reforçados ou enfraquecidos.
NL – Porquê que Cabo-Verde vai estando distante de
África e mais próximo da Europa?
CV - Independentemente dos laços que tem
que ter e manter com África, a âncora que Cabo-Verde deve ter neste momento
é com a Europa. Não é a integração na Europa. Não é a sua integração na
Europa. Isto está fora de questão. Mas ter uma relação com a Europa no
quadro dos institutos e das instituições que hoje existem penso que faz todo
o sentido que Cabo-Verde tenha uma relação especial com a Europa. Isto
impõem-se no plano económico estratégico, de desenvolvimento e de segurança
que Cabo-Verde quer ter. Mas isso não exclui que Cabo-Verde tenha que manter
as suas âncoras em África, do outro lado do Atlântico (Brasil, Estados
Unidos da América) e mesmo com outras potências mundiais que estão a emergir
como a China. Penso que a política externa de Cabo-Verde tem que ser
multifacetada. Advogo maior empenho de Cabo-Verde na busca de solução de
questões internacionais, a começar pelas questões africanas. Cabo-Verde tem
que ter uma voz credível que apresente propostas concretas e sensatas. Há
que explorar fortemente a âncora da Europa, que é a principal. Há um
consenso político nacional sobre esta matéria.
NL – Mas não admite que Cabo-Verde vai ficando de
costas viradas para a Lusofonia?
CV – Nem pensar! Cabo-Verde tomou
iniciativas muito importantes no plano da Lusofonia.
NL – Como quais por exemplo?
CV – Por exemplo o estatuto do cidadão
lusófono. Infelizmente não fomos seguidos. Acho que a CPLP nunca mais vai
ganhar dinâmica se ela não se transformar numa comunidade de povos. É
inaceitável, por exemplo, o que se passa na fronteira em Lisboa. O que se
passa na fronteira de Lisboa contradiz a ideia da CPLP. Os nacionais de
países da CPLP são tratados de forma inaceitável. Passam horas e horas para
passarem a fronteira aqui no aeroporto. Eu já passei duas horas e meia para
passar a fronteira. Criar-se apenas um guichet para os países da CPLP é
piorar as coisas. Afunila-se tudo lá e a demora ainda é maior. E parece que
não somos amigos nem irmãos.
NL – Que solução?
CV – Tem que haver vontade política de
todos os países da CPLP. Todos os cidadãos de países lusófonos podem entrar
em Cabo-Verde de forma relativamente livre durante 90 dias. Cabo-Verde deu
passos muito grandes nestas matérias. Era preciso que estes passos fossem
alargados a outros espaços. Cabo-Verde não está fora da lusofonia. Pelo
contrário, o secretário executivo da CPLP é cabo-verdiano. Agora, quais são
os recursos que Cabo-Verde tem? Quem pode dinamizar essa comunidade? Angola,
Brasil, Portugal e Moçambique.
NL – Que informações destes países para se
concretizar…
CV – Os cidadãos dos nossos países não
sentem a comunidade como uma coisa sua. Sabem que é qualquer coisa que
existe e que os chefes de Estado reúnem-se.
NL – É uma coisa abstracta?
CV – Relativamente longínqua, é algo que
não lhes toca. A cooperação entre nós poderia muito vantajosa para todos. Os
nossos cidadãos não sentem que isso se reflicta na suas vidas. Este exemplo
da fronteira é apenas um. Sei que Angola já reclamou com o tratamento que é
conferido aos seus cidadãos e estou solidário. Gostaria de ver as
autoridades do meu país a reclamarem também. O presidente do meu país, Pedro
Pires, já foi revistado aqui no aeroporto de Lisboa. Eu senti-me vexado por
isso. Isso é completamente inaceitável. Isso não é comunidade nenhuma.
NL – Um olhar sobre as relações Angola-Cabo-Verde.
CV – Podem e devem ser estratégicas. No
tempo em que fui Primeiro-Ministro assinamos com Angola acordos que
estabeleciam uma parceria estratégia entre os dois países nas áreas do
comércio, indústria, agricultura, pescas e diálogo político. Infelizmente
nada disto foi posto em prática. Agora impera sobretudo uma relação baseada
nas afinidades ideológicas e das lutas históricas de libertação nacional
deixando de fora um conjunto de sectores que poderiam dar resultados
excelentes. Penso que Angola e Cabo-Verde podem estabelecer relações
estratégicas. Recordo-me que durante muitos anos da nossa História
adquiríamos o elemento básico da nossa alimentação em Angola. Recordo que o
atum passa por nós e vai até Angola. Os dois países nada fazem por isso.
Penso que se devia perspectivar a relação entre Angola e Cabo-Verde de forma
estratégica.
NL – Diz que o grau de democracia vai regredindo em
Cabo-Verde. Isso não representa uma traição ao legado de Amílcar Cabral
sobretudo em relação ao que sonhou para Cabo-Verde?
CV –
Amílcar Cabral foi o maior herói cabo-verdiano e deve ser valorizado por
todos como tal, mas não era um democrata. A concepção que tinha do Estado
era a de um Estado que iria sair dessa luta. Ele não perspectivou a
democratização desse Estado. Amílcar Cabral perspectivou um Estado de
partido único com a centralização democrática. O legado de Amílcar Cabral
hoje é sobretudo ético. Cabral deixou-nos conselhos éticos que são actuais e
que deveriam ser aplicados por todos como não mentir as pessoas, não ceder a
interesses imediatos, pensar com a nossa própria cabeça com os pés bem
assentes na terra. Um conjunto de orientações éticas que deveriam orientar
os políticos cabo-verdianos. Agora, Cabral não concebeu o Estado de Direito.
Pelo contrário, o que ele concebeu hoje poder-se-ia classificar como um
Estado de não Direito. O que acontece hoje em Cabo-Verde não tem a ver com
Amílcar Cabral. A ética e a moral eram muito importantes para Cabral. Se há
neste momento uma traição à memória de Amílcar Cabral é por que muitos
políticos cabo-verdianos violam as normas éticas. Há líderes cabo-verdianos
que não têm superioridade moral. Os cabo-verdianos devem reagir à violação
do legado deixado por Amílcar Cabral.
NL – Você tem posto o legado de Amílcar Cabral em
prática?
CV –
Sempre procurei pôr em toda a minha
vida política. Procuro agir com ética em todos os momentos da minha vida
política e social. Ninguém me pode acusar do contrário.
Fonte: www.noticiaslusofonas.com
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