As lições (?!) de um "democrata"...

 

Por: Fernando Casimiro (Didinho)

27.02.2006

 

À atenção do Dr. Carlos Veiga

 

Dr. Carlos VeigaCarlos Veiga, ex-Primeiro-ministro de Cabo Verde - Janeiro de 1991 a Outubro de 2000, candidato derrotado nas eleições presidenciais de 2001 e 2006, concedeu uma extensa entrevista ao Notícias Lusófonas, onde faz uma radiografia de Cabo Verde.

Se Carlos Veiga fosse um político por excelência , saberia, nesta fase pós eleitoral em que se apresentou às presidenciais cabo-verdianas, que a hora não é de disparar contra tudo e contra todos que, não estando com ele, a seu ver, são contra ele.

Se Carlos Veiga não fosse um político por definição, tabelado na vulgaridade, de certeza que nunca afirmaria que Amilcar Cabral não era um democrata.

Uma das diferenças entre Amilcar Cabral e Carlos Veiga, politicamente falando, consiste na caracterização de Amilcar Cabral como um político por excelência, uma raridade e, Carlos Veiga, um político vulgar, dos que abundam pelo Mundo fora.

"Um princípio fundamental da nossa luta é que a nossa luta é a luta do nosso povo, e o nosso povo é que tem que a fazer, e o seu resultado é para o nosso povo." 

"Claro que a luta dum povo é sua, de facto, se a razão dessa luta for baseada nas aspirações, nos sonhos, nos desejos de justiça, de progresso do próprio povo, e não nas aspirações, sonhos ou ambições de meia dúzia de pessoas, ou de um grupo de pessoas que tem alguma contradição com os próprios interesses do seu povo." Amilcar Cabral

Não estaria a fazer este reparo à entrevista do Dr. Carlos Veiga se, o entrevistado não demonstrasse alguma ignorância, isto apesar da sua inquestionável formação académica, que, no entanto, não é sinónimo de formação política.

Dizer que Cabral não era um democrata, argumentando que: "A concepção que Cabral tinha do Estado era a de um Estado que iria sair dessa luta. Ele não perspectivou a democratização desse Estado. Amilcar Cabral perspectivou um Estado de partido único com a centralização democrática." é, não só, uma interpretação leviana, como um insulto a todos quantos conviveram, trabalharam, reconheceram e continuam a reconhecer a ideologia de Cabral, que, não precisando de definições científicas na sua caracterização política, continha na sua essência o que a DEMOCRACIA tem como essência: o POVO, a LIBERDADE!

O Dr. Carlos Veiga, deveria ler os ensinamentos de Cabral e hoje deixo-lhe algumas passagens da forma de pensar de Amilcar Cabral, que era um líder com discurso acessível, por forma a que todos o pudessem entender.

" Nós queremos no nosso país isto: Que não haja mais exploração do nosso povo nem por brancos nem por pretos. Nós não queremos nenhuma forma de exploração. É desta maneira que nós educamos o nosso povo - as massas, os quadros, os militantes - é assim. Para isso, estamos a tomar pouco a pouco todas as medidas necessárias para evitar a exploração. Como? Damos ao nosso povo todas as possibilidades para participar cada dia mais activamente na direcção da sua própria vida."

" Nós queremos democracia, paz, progresso e justiça, justiça social no nosso país. Naturalmente nós não podemos conseguir isso em dois dias, ou em três dias. Nós temos que ir passo a passo, rumo a este objectivo." Amilcar Cabral

Cabral que também poderia ter optado por exercer a sua profissão de engenheiro agrónomo e viver comodamente quer na Guiné, em Cabo Verde, ou em Angola, por exemplo, como o fez o Dr. Carlos Veiga, optou por seguir o caminho da (sua) liberdade e, consequentemente da dos seus irmãos, pois não se considerava realizado se os seus irmãos também não o fossem...criando mecanismos que proporcionaram a libertação dos povos da Guiné-Bissau e de Cabo Verde.

O Dr. Carlos Veiga foi um dos beneficiados com a luta que Amilcar Cabral e seus camaradas, guineenses e cabo-verdianos travaram desde 1956, com a fundação do PAIGC e que teve mais desenvolvimentos a partir de 1963, com o início da luta armada, depois de esgotadas todas as diligências políticas, de diálogo com a administração colonial portuguesa.

Cabral nunca se definiu com regimes e sistemas políticos. À época, era moda designarem-se países como: República democrática disto ou daquilo. Partido democrático disto ou daquilo. Cabral não era propriamente um imitador e por isso, achar que não era pela denominação referente à democracia que a caracterização do Partido ou do Estado seriam referenciados como tal, mas sim pela defesa e aplicação dos valores enumerados como sendo princípios da democracia.

" Nós baseamos a nossa luta nas realidades concretas do nosso país. Apreciamos as experiências e as conquistas de outros povos, e estudamo-las. Mas a revolução ou a luta de libertação nacional, é como um vestido que deve ser moldado para cada corpo. Evidentemente, há certas leis gerais e universais, mesmo leis científicas, para quaisquer condições, mas a libertação tem de ser levada a cabo de acordo com as condições específicas de cada país " Amilcar Cabral

Numa luta de libertação como a que teve lugar na Guiné-Bissau, e em que as populações mobilizadas eram conotadas pela origem étnica, pela religião, e até pelo sexo, só um génio como Cabral poderia compreender que todas essas diferenças reunidas numa orientação objectiva iriam traduzir-se numa força vencedora: O POVO!

Tomando como referência de análise as preocupações e orientações de Cabral para com os objectivos da luta de libertação nacional, uma luta do povo e para o povo, encontramos no contexto actual da definição dos princípios gerais da democracia, paralelismos mais do que suficientes para, nos dias de hoje, situarmos Cabral como um democrata por natureza!

 No contexto da luta de libertação nacional não se podia pôr em causa a existência de um Partido-Estado, porquanto isso ser uma exigência das estratégias da própria luta. Posto isto, alguns aspectos relevantes no que aos princípios da democracia dizem respeito não devem ser tomados como indicadores comparativos com uma estrutura de um Estado-nação.

Espero que o Dr. Carlos Veiga tenha a humildade de aprender com os ensinamentos de quem nunca terá que se envergonhar ao referenciá-lo onde quer que seja como um dos maiores defensores do direito dos povos à autodeterminação e independência.

... jurei a mim mesmo que tenho que dar a minha vida, toda a minha energia, toda a minha coragem, toda a capacidade que posso ter como homem, até ao dia em que morrer, ao serviço do meu povo, na Guiné e Cabo Verde.

Ao serviço da causa da humanidade, para dar a minha contribuição, na medida do possível, para a vida do homem se tornar melhor no mundo. Este é que é o meu trabalho.
Amilcar Cabral

Tenha orgulho em Cabral!

 

Amilcar Cabral junto de mulheres guineenses durante a luta de libertação nacional. Foto de Bruna Polimeni

"Hoje os filhos do mato da nossa terra, que ontem não tinham opinião nenhuma em relação à sua própria vida, ao seu destino, podem dar a sua opinião, podem decidir, desde a questão dos Comités do Partido, até aos tribunais populares, nos quais os filhos da nossa terra têm mostrado capacidade de julgar os erros, os crimes, e outras faltas cometidas por outros filhos da nossa terra. 
Essa é mais uma prova clara de que esta luta é do nosso povo, feita pelo nosso povo e para o nosso povo. 
Mas vários camaradas do nosso Partido, tanto altos responsáveis como pequenos, seja até simples 
combatentes, não têm compreendido isso muito bem. Têm tentado fazer a luta um bocado no seu interesse, eles afinal é que são o povo. A luta é do nosso povo, feita pelo nosso povo, mas para eles. Esse é dos erros mais graves que se podem cometer numa luta como a nossa. Não podemos permitir de maneira nenhuma que as nossas Forças Armadas, os nossos militantes ou os nossos responsáveis, se esqueçam, por um momento que seja, que a maior consideração, o maior respeito, a maior dedicação, devem ser para o povo da nossa terra, para as nossas populações, sobretudo nas áreas libertadas da nossa terra."

Amilcar Cabral

"Mas daqui a algum tempo, quando tomarmos a nossa independência, por exemplo, quem quiser que a nossa terra seja independente, mas não quer que as mulheres sejam livres, e quiser continuar a explorar as mulheres da nossa terra, esse hoje é povo, mas amanhã já não será. Se nós queremos que todas as crianças da nossa terra sejam respeitadas e algum de entre nós não quiser isso, esse já será população, não será povo. 
O nosso objectivo é fazer o progresso e a felicidade do nosso povo, mas nós não podemos fazê-lo contra o nosso povo. Ora, se alguns da nossa terra não querem isso, ou eles não são povo, e então nós podemos fazer tudo contra eles e talvez mesmo os púnhamos na cadeia, ou então eles são muitos e representam o povo e, nessa altura, nós paramos; não podemos fazer nada, porque não se pode fazer a felicidade e o progresso de alguém contra a sua vontade. 
Temos que entender bem, portanto, que em cada fase da história duma nação, duma terra, duma população, duma sociedade, o povo define-se consoante a linha mestra da história dessa sociedade, consoante os interesses máximos da maioria dessa sociedade. 
O termo democracia foi criado na Grécia, em Antenas (Demo + cracia = governo do povo). Mas quem foi que o criou? Em Antenas havia nobres, Senhores (donos da terra) e depois os escravos, que trabalhavam para todos os outros. A democracia para eles era só para os de cima, eles é que eram o povo, os outros eram escravos. Até hoje é a mesma coisa em muitos lados. Quem tem a força na mão, o poder, faz a democracia para ele. Nós, na nossa terra, queremos que a maioria tenha o poder nas mãos. Mas nós queremos o poder nas mãos do nosso povo. Aquele que segue o caminho recto, que quer cada dia mais progresso e felicidade na nossa terra, progresso não só para os fulas, não só para mandingas, não só para filhos de cabo-verdianos, não só para balantas, progresso para todos, tanto na Guiné como em Cabo Verde —esse faz parte do nosso povo." Amilcar Cabral

 

 

Em entrevista ao Notícias Lusófonas, Carlos Veiga faz a radiografia de Cabo Verde mas vai muito mais longe. Muito mais...
 

Se Carlos Veiga, por ser causídico de profissão, fosse o actor principal do argumento de um filme dos realizadores Spike Lee ou de Steven Spielberg, certamente que não teriam que dar muitas voltas à cabeça para dar um título à película que lhe assentaria como uma luva: Um advogado de causas (quase sempre) perdidas em Cabo-Verde.


Por Jorge Eurico

Carlos Veiga, que nos anos de 1975 e 76 quando viveu e trabalhou em Angola foi convidado por Lúcio Lara para ser governador do então Silva Porto, Bié, (mas isso é conversa para outra altura) denuncia que o Estado a que pertence está excessivamente partidarizado e acusa Pedro Pires e o actual Governo de serem os promotores da regressão democrática no País que é (era) tido como um exemplo digno de ser seguido no continente negro.

Candidato às eleições presidenciais cabo-verdianas, o antigo primeiro-ministro, não puxa da faca (o que é típico destes irmãos da lusofonia quando se trata de briga), mas solta a voz e acusa o MPLA de ter feito campanha em favor de Pedro Pires e do PAICV. Diz que não se cala e que vai mesmo impugnar as eleições.

Notícias Lusófonas – É a segunda vez que se candidata e perde e já vai sendo conhecido como o Lula da Silva africano...

Carlos Veiga – Ganhei duas vezes em Cabo-Verde. Sempre ganhei nas ilhas. Perdi na emigração. Em 2001 está claro. Há pelo menos três decisões judiciais a confirmar a existência de fraudes em números que suplantam a diferença de votos que então houve, 12 votos. Agora vou impugnar as eleições porque considero que elas não foram justas nem transparentes. Mas lá em Cabo-Verde ganhei. Perdi foi na emigração, no caso concreto dos círculos dos Estados Unidos da América e de África. Acho que também aí as eleições não decorreram de forma democrática, justa e transparente. Portanto, a explicação é essa. Agora, se me comparam a Lula da Silva, presidente do Brasil, fico satisfeito. Ele é um grande homem, que de facto perdeu eleições várias vezes antes de se tornar um presidente carismático. Mas na essência não sei se a comparação faz sentido.

NL – Tem-se dito que à terceira é de vez. Pensa candidatar-se mais uma vez nos próximos cinco anos?

CV – Ainda falta muito tempo e muita coisa pode acontecer.

NL – Tinha dito à Comunicação Social que aceitaria quaisquer que fossem os resultados eleitorais, mas agora entendeu impugna-los...

CV – Disse que aceitaria sempre desde que fossem eleições justas e transparentes. Nem que fosse por um voto, aceitaria isso com toda naturalidade. Portanto, aceitaria o vencedor e felicita-lo-ia. Agora, com a violação de tudo que são normas essências de um processo eleitoral democrático, eu não posso aceitar os resultados.

NL – Este processo não contradiz a tese segundo a qual Cabo-Verde é exemplo digno de ser seguido em África?

CV – Criou-se uma boa imagem de Cabo-Verde, mas quem lá vai e quiser analisar objectivamente as coisas e falar com as pessoas sem constrangimentos, concluirá que a qualidade da nossa democracia baixou bastante e que os processos eleitorais foram inquinados. Nas eleições legislativas, o MpD impugnou e apresentou provas documentais, uma listagem com mais de duas mil páginas de situações em que o mesmo número de identificação, bilhete de identidade ou passaporte, é atribuído a várias pessoas. Isso é legalmente impossível. Portanto, a qualidade da nossa democracia baixou. Sei que vão dizer que sou anti-patriota, mas acho que anti-patriota é quem contribui para que essa qualidade diminua e organiza manipulação dos cadernos eleitorais. Essas pessoas são responsáveis pelo que acontecer à boa imagem que Cabo-Verde tem. Há bons motivos para se dizer que Cabo-Verde tem tido sucesso no seu processo de desenvolvimento e de se afirmar como país credível. Tem tido sucesso sobretudo a partir da abertura democrática. O que Cabo-Verde é hoje decorre do facto de ter sido independente. Isso é a base, mas sobretudo por ter abraçado a via democrática em 1990 e durante 10 anos ter sido possível construir uma economia de mercado, um Estado de Direito e investir no capital humano. Mas a qualidade da democracia, nos últimos anos, tem diminuído a começar pelas eleições que não foram justas nem transparentes.

NL – Porquê que em África quando se perde as eleições há o costume de se pôr em causa a democracia e rejeitar os resultados?

CV – Lamento muito. Em Cabo-Verde tínhamos a ideia de que isso não acontecia, mas a partir de 2001 ficamos cientes de que acontece. Como lhe disse, há três sentenças judiciais. Um delas confirmada pelo Supremo Tribunal de Justiça (STJ) que condenou pessoas em penas de prisão efectiva por terem praticado fraudes eleitorais nas eleições presidenciais de 2001 e em número tal que alterariam claramente os resultados das eleições. Mas aceitei os resultados das eleições à mesma, perseguindo depois as pessoas no Tribunal criminalmente. Três delas já cumpriram dezoito meses de prisões, três estão condenadas há mais dezoito meses de prisão e outras três estão condenadas há dois anos de prisão com pena suspensa. Portanto, não há dúvida de que houve fraude. Agora, eu digo o seguinte. Normalmente a Comunidade Internacional olha para África com muitos preconceitos, quando se deveria fazer um esforço para apurar se há ou não fraude. Penso que a Comunidade Internacional ajudar-nos-ia a evitar essas situações se analisasse a democracia em África sob os mesmos parâmetros com que ela é analisada noutras partes do mundo. Não se pode considerar absurda uma situação na Europa e aceitar essa situação em África. Diz-se que os africanos não são muito exigentes. Não aceito esse ponto de vista. Pelo menos em Cabo-Verde não queremos aceitar isso. Pensamos que a nossa democracia tem que se aperfeiçoar cada vez mais. Não aceitamos essa dupla forma de a Comunidade Internacional ver as coisas. Uma exigência maior para África e uma exigência menor para os outros países. Queremos ser tratados em pé de igualdade com os outros países. Queremos que em Cabo-Verde se instale uma verdadeira democracia. Portanto, não vou aceitar ficar calado perante as ameaças que sinto que vão incidir sobre Cabo-Verde. Quero viver num Cabo-Verde livre e democrático. Quero ver o meu povo livre.

NL – Quem é o promotor da regressão democrática em Cabo-Verde?

CV – O Governo e o presidente da República actuais. Eles não fizeram o que deveriam fazer. Basta ir a Cabo-Verde e falar com as pessoas para ver como os cabo-verdianos se sentem hoje.

NL – Os cabo-verdianos votaram na continuidade da regressão a democrática?

CV – Se tivesse estado em Cabo-Verde e visse como estavam os cadernos eleitorais, compreenderia por que isso acontece. No meu caso concreto, a realidade é mais flagrante. Repare, os partidos que me apoiaram teoricamente perderam as eleições legislativas no dia 22 de Janeiro com 14 mil votos de diferença e eu, menos de um mês depois, recuperei estes votos todos. Portanto, ganhei nas ilhas de Cabo-Verde tal como tinha ganho em 2001. O problema está no acto de o processo estar viciado em termos de favorecer quem está no poder e de criar situações que impede a vontade dos cabo-verdianos expressarem de forma autêntica.

NL – Soluções?

CV – É preciso partir para um recenseamento novo feito sob supervisão de uma entidade independente. Se for uma entidade da Organização das Nações Unidas (ONU) melhor ainda. Se não houver um recenseamento novo, não vale a pena concorrer às eleições e depois as pessoas irão ver as consequências disso tudo. Todo o sistema da administração eleitoral tem de ser alterado. A Comissão Nacional de Eleições tem que ter poderes e ter sob a sua dependência todos os outros órgãos da administração eleitoral, mas não é o que acontece. Temos uma Direcção-Geral de Apoio ao Processo Eleitoral (DGAPE), que é dependente do Governo que não presta contas a ninguém. E ela que tem a capacidade de manipular os cadernos eleitorais. Os cartões eleitorais só são dados a certas pessoas e não a todas, por exemplo. Portanto, a que rever completamente o sistema de recenseamento eleitoral e há que dar força à Comissão Nacional de Eleições que deve emergir como um órgão verdadeiramente independente do Governo ou das maiorias políticas partidárias que existem. Estes dois elementos que são, do meu ponto de vista, fundamental para credibilizar as eleições em Cabo-Verde. Senão as pessoas vão pensar que não vale a pena ir para as eleições e em dois tempos cairmos em situações que ninguém quer em Cabo-Verde. A paz social que existe em Cabo-Verde baseia-se muito na democracia e na capacidade de alternância de poder, que já aconteceu. Mas se as pessoas chegam à conclusão de que não é possível continuar por essa via, a paz social é bem capaz de ser posta em causa, o que ninguém quer em Cabo-Verde.

NL – Como explica o facto de ganhar em Cabo-Verde e perder no estrangeiro?

CV – A força do povo em Cabo-Verde é muito grande. Fora do país é quase impossível controlar o processo. Por exemplo, na Guiné-Bissau não é possível controlar o processo. Duvido muito que o grosso das pessoas recenseadas seja cabo-verdiana. Como posso controlar isso? É impossível! O mesmo se passa em Angola, São-Tomé e Moçambique. Não é possível controlar! A administração eleitoral nestes países é controlada pelas embaixadas e consulados, que têm funcionado como comissários políticos do partido no poder. Não há isenção na administração eleitoral. Isto tem que ser completamente alterado. Não é possível ter tudo nas mãos dos consulados e das embaixadas que põem e dispõem em matéria de administração eleitoral.

NL – O Estado cabo-verdiano está partidarizado?

CV – Intensamente partidarizado. Infelizmente! É pena que quadros importantes cabo-verdianos não são utilizados a 100% precisamente por causa da partidarização existente. Penso que o país precisa de uma administração pública isenta. É necessário que as pessoas tenham uma cultura de serviço público e que nessa matéria não houvesse partidarização. Não pode acontecer que cada vez que muda um Governo muda toda gente, até o jardineiro. Isto é inaceitável num pais como Cabo-Verde, mas infelizmente essa situação ocorre.

NL – Politicamente como está Cabo-Verde?

CV – A qualidade da democracia cabo-verdiana regrediu bastante. Temos uma administração intensamente partidarizada. Temos um sistema eleitoral que não oferece a mínima confiança e não temos um sistema de garantia dos Direitos dos cidadãos, porque infelizmente a nossa justiça não tem cumprido com o seu papel. Ela é extremamente morosa. Por outro lado, não se conseguiu ainda pôr a funcionar instituições que estão na Constituição desde 1999, tais como o Tribunal Constitucional e o Provedor de Justiça. Os tribunais fiscais, por exemplo, não funcionam. Daí que, em vários aspectos, o cidadão esteja bastante despido de garantias relativamente aos seus direitos. E isso é falta de vontade política. O Tribunal Constitucional e o Provedor de Justiça não estão a funcionar por falta de consenso e entendimento entre os dois principais partidos. E o Presidente da República nada faz para procurar esse consenso. Isso é inaceitável e são sintomas evidentes de uma regressão da nossa democracia. E é preocupante. O medo voltou a Cabo-Verde.

NL – O Estado de direito e democrático em Cabo-Verde está em perigo?

CV – Está em perigo sobretudo se o pilar Justiça não se regenerar e não se consolidar.

NL – Caso tivesse ganho as eleições, qual seria o seu primeiro acto?

CV – Primeiro, poria em prática os órgãos que estão previstos na Constituição. Segundo, a questão da Justiça seria para mim uma questão fundamental. Conheço muito bem a Justiça. Até ao dia em que me candidatei às eleições presidenciais, eu era bastonário da Ordem dos Advogados de Cabo-Verde.

NL – Foi acusado pelo PAICV de querer instaurar um clima de instabilidade e obter interesses obscuros pessoais.

CV – Quem disse isso foi o mandatário do candidato Pedro Pires. Ele terá que provar isso. Toda a gente me conhece em Cabo-Verde. Não preciso da política para nada. Já provei que vivo melhor fora da política. Tenho tudo o que quero e preciso para viver fora da política. O que o mandatário de Pedro Pires dizia é que não pode haver, em Cabo-Verde, um presidente de uma família política e um Governo de outra família política. Em Portugal pode haver! Em Espanha pode haver! Mas os cabo-verdianos estão menos preparados para isso. Não aceito essa tese. Acho que os cabo-verdianos têm maturidade suficiente e sabem escolher bem. Eu ganhei em Cabo-Verde. Como é possível que nas eleições legislativas os partidos que me apoiaram tenham tido 14 mil votos a menos, pelo menos é o que se diz teoricamente, e eu tenha recuperado isso tudo e ganho em Cabo-Verde. Como é possível isso? Porque as pessoas distinguem claramente entre eleições autárquicas, legislativas e presidenciais. Portanto, essa tese não tem nenhum fundamento. Porque em termos de apego à estabilidade, os exemplos são opostos. Aceitei os resultados fraudulentos, com uma diferença de 12 votos, em 2001, em nome da estabilidade, ao contrário do meu adversário que em 91 ameaçou Aristides Pereira abandonar o Governo na rua se num prazo de uma semana ou quinze dias Aristides Pereira não tivesse um novo Governo. O actual presidente quando era líder do PAICV estava no Parlamento não votou a Constituição da República. Fez com que ele e a sua bancada abandonassem a sala para não votar. Isso é que é respeito pelas instituições, pela estabilidade? Quem dá estabilidade e respeita o Estado Cabo-Verdiano sou eu e não o actual presidente da República.

NL – Chegou-se a comprovar de facto a compra de votos e de consciência na Ilha de Fogo?

CV – A compra fez-se utilizando os recursos públicos. Fez-se uma grande pressão sobre as pessoas que vivem em grandes dificuldades. Ainda na véspera das eleições estava-se a distribuir em certos bairros da cidade da Praia cimento e blocos para as pessoas construírem ou melhorarem as suas casas. Isto é uma forma de comprar votos. Em São Tomé e Pirncipe andou-se a distribuir dinheiro às pessoas. Passou-se muito tempo sem se atribuir subsídios aos cidadãos vulneráveis que se encontram em São-Tomé para se distribuir justamente no período das eleições. É claro que estas pessoas vão dizer “eu voto no partido do cônsul”. É evidente que o cônsul andou a distribuir os subsídios do Estado cabo-verdiano. É assim infelizmente que as coisas estão a funcionar em Cabo-Verde.

NL – O que se passou em São Tomé e Príncipe também aconteceu aqui em Portugal e em Angola?

CV – Os estudantes e outros cabo-verdianos que cá vivem em grande número e que prezam pela democracia trabalharam bastante para controlar a situação. Portanto, os resultados que tive aqui (Portugal) foram muito bons em comparação com os anteriores. Agora, em Angola, São-Tomé e Príncipe, Moçambique e Guiné-Bissau não tive controlo nenhum. Em São-Tomé sei que isso se passou por que estive lá em Janeiro em trabalho profissional e as pessoas disseram-me. As coisas estão-se a passar assim. Pude comprovar isso. Agora, em Angola ou em Moçambique, o processo foi incontrolado. Os cadernos eleitorais foram elaborados como se quis, não se cumpriu nenhuma das fases que estão previstas num processo de recenseamento. Penso que quer em Angola, São Tome e Príncipe, Guiné-Bissau e Moçambique terá funcionado a ideia de que devia-se votar no partido do cônsul ou do embaixador. Com uma agravante que tenho que revelar. Em São Tomé, o MLSTP/PSD fez campanha em torno de uma das candidaturas e em Angola o MPLA fez campanha de uma candidatura, na Guiné-Bissau se fez campanha em favor de uma das candidaturas.

NL – Mas como é que confirma que o MPLA…

CV – O MPLA sempre apoiou o PAICV e Pedro Pires. Francamente, isso não é aceitável. Não fica bem na relação entre os dois povos. Os cabo-verdianos sentem muito isso. As relações devem processar-se Estado a Estado e com objectividade. Estou convencido que os angolanos não aceitariam que os cabo-verdianos fossem fazer campanha contra o MPLA. Penso que é uma questão de respeito mútuo. Não deveria haver esse tipo de intervenção. Não são interesses partidários que estão em causa, são interesses de nações. O partido no poder em Angola intrometeu-se indevidamente numa questão interna de Cabo-Verde.

NL – Isso pode pôr em causa a relação entre os dois estados?

CV – Não põem em causa, mas magoa. E esta mágoa não é boa nas relações entre os dois estados angolanos e cabo-verdianos. Esse tipo de promiscuidade político partidária não é bom.

NL – Não teme que dentro de cinco anos possa voltar a acontecer o mesmo?

CV – Vou lutar para que não aconteça. Não vou ficar calado. Vou denunciar interna e externamente aquilo que considero regressões do Estado de direito democrático em Cabo-Verde. Não vale a pena forjar-se uma imagem que não corresponde à realidade. O importante para mim é que Cabo-Verde seja um bom exemplo de democracia na realidade.

NL – Então a democracia em Cabo-Verde é apenas um adjectivo?

CV – Há dias um juiz disse aqui em Portugal que a democracia em Portugal, a propósito da busca que a Polícia Judiciária (PJ) fez na redacção do “24 Horas”, está presa por arames. Eu diria que em Cabo-Verde a situação é mais precária. Os arames que prendem a democracia em Cabo-Verde podem ser reforçados ou enfraquecidos.

NL – Porquê que Cabo-Verde vai estando distante de África e mais próximo da Europa?

CV - Independentemente dos laços que tem que ter e manter com África, a âncora que Cabo-Verde deve ter neste momento é com a Europa. Não é a integração na Europa. Não é a sua integração na Europa. Isto está fora de questão. Mas ter uma relação com a Europa no quadro dos institutos e das instituições que hoje existem penso que faz todo o sentido que Cabo-Verde tenha uma relação especial com a Europa. Isto impõem-se no plano económico estratégico, de desenvolvimento e de segurança que Cabo-Verde quer ter. Mas isso não exclui que Cabo-Verde tenha que manter as suas âncoras em África, do outro lado do Atlântico (Brasil, Estados Unidos da América) e mesmo com outras potências mundiais que estão a emergir como a China. Penso que a política externa de Cabo-Verde tem que ser multifacetada. Advogo maior empenho de Cabo-Verde na busca de solução de questões internacionais, a começar pelas questões africanas. Cabo-Verde tem que ter uma voz credível que apresente propostas concretas e sensatas. Há que explorar fortemente a âncora da Europa, que é a principal. Há um consenso político nacional sobre esta matéria.

NL – Mas não admite que Cabo-Verde vai ficando de costas viradas para a Lusofonia?

CV – Nem pensar! Cabo-Verde tomou iniciativas muito importantes no plano da Lusofonia.

NL – Como quais por exemplo?

CV – Por exemplo o estatuto do cidadão lusófono. Infelizmente não fomos seguidos. Acho que a CPLP nunca mais vai ganhar dinâmica se ela não se transformar numa comunidade de povos. É inaceitável, por exemplo, o que se passa na fronteira em Lisboa. O que se passa na fronteira de Lisboa contradiz a ideia da CPLP. Os nacionais de países da CPLP são tratados de forma inaceitável. Passam horas e horas para passarem a fronteira aqui no aeroporto. Eu já passei duas horas e meia para passar a fronteira. Criar-se apenas um guichet para os países da CPLP é piorar as coisas. Afunila-se tudo lá e a demora ainda é maior. E parece que não somos amigos nem irmãos.

NL – Que solução?

CV – Tem que haver vontade política de todos os países da CPLP. Todos os cidadãos de países lusófonos podem entrar em Cabo-Verde de forma relativamente livre durante 90 dias. Cabo-Verde deu passos muito grandes nestas matérias. Era preciso que estes passos fossem alargados a outros espaços. Cabo-Verde não está fora da lusofonia. Pelo contrário, o secretário executivo da CPLP é cabo-verdiano. Agora, quais são os recursos que Cabo-Verde tem? Quem pode dinamizar essa comunidade? Angola, Brasil, Portugal e Moçambique.

NL – Que informações destes países para se concretizar…

CV – Os cidadãos dos nossos países não sentem a comunidade como uma coisa sua. Sabem que é qualquer coisa que existe e que os chefes de Estado reúnem-se.

NL – É uma coisa abstracta?

CV – Relativamente longínqua, é algo que não lhes toca. A cooperação entre nós poderia muito vantajosa para todos. Os nossos cidadãos não sentem que isso se reflicta na suas vidas. Este exemplo da fronteira é apenas um. Sei que Angola já reclamou com o tratamento que é conferido aos seus cidadãos e estou solidário. Gostaria de ver as autoridades do meu país a reclamarem também. O presidente do meu país, Pedro Pires, já foi revistado aqui no aeroporto de Lisboa. Eu senti-me vexado por isso. Isso é completamente inaceitável. Isso não é comunidade nenhuma.

NL – Um olhar sobre as relações Angola-Cabo-Verde.

CV – Podem e devem ser estratégicas. No tempo em que fui Primeiro-Ministro assinamos com Angola acordos que estabeleciam uma parceria estratégia entre os dois países nas áreas do comércio, indústria, agricultura, pescas e diálogo político. Infelizmente nada disto foi posto em prática. Agora impera sobretudo uma relação baseada nas afinidades ideológicas e das lutas históricas de libertação nacional deixando de fora um conjunto de sectores que poderiam dar resultados excelentes. Penso que Angola e Cabo-Verde podem estabelecer relações estratégicas. Recordo-me que durante muitos anos da nossa História adquiríamos o elemento básico da nossa alimentação em Angola. Recordo que o atum passa por nós e vai até Angola. Os dois países nada fazem por isso. Penso que se devia perspectivar a relação entre Angola e Cabo-Verde de forma estratégica.

NL – Diz que o grau de democracia vai regredindo em Cabo-Verde. Isso não representa uma traição ao legado de Amílcar Cabral sobretudo em relação ao que sonhou para Cabo-Verde?

CV Amílcar Cabral foi o maior herói cabo-verdiano e deve ser valorizado por todos como tal, mas não era um democrata. A concepção que tinha do Estado era a de um Estado que iria sair dessa luta. Ele não perspectivou a democratização desse Estado. Amílcar Cabral perspectivou um Estado de partido único com a centralização democrática. O legado de Amílcar Cabral hoje é sobretudo ético. Cabral deixou-nos conselhos éticos que são actuais e que deveriam ser aplicados por todos como não mentir as pessoas, não ceder a interesses imediatos, pensar com a nossa própria cabeça com os pés bem assentes na terra. Um conjunto de orientações éticas que deveriam orientar os políticos cabo-verdianos. Agora, Cabral não concebeu o Estado de Direito. Pelo contrário, o que ele concebeu hoje poder-se-ia classificar como um Estado de não Direito. O que acontece hoje em Cabo-Verde não tem a ver com Amílcar Cabral. A ética e a moral eram muito importantes para Cabral. Se há neste momento uma traição à memória de Amílcar Cabral é por que muitos políticos cabo-verdianos violam as normas éticas. Há líderes cabo-verdianos que não têm superioridade moral. Os cabo-verdianos devem reagir à violação do legado deixado por Amílcar Cabral.

NL – Você tem posto o legado de Amílcar Cabral em prática?

CVSempre procurei pôr em toda a minha vida política. Procuro agir com ética em todos os momentos da minha vida política e social. Ninguém me pode acusar do contrário.
 

Fonte: www.noticiaslusofonas.com

 

 

IDEIA GERAL:
O Que É a Democracia?
Democracia vem da palavra grega “demos” que significa povo. Nas democracias, é o povo quem detém o poder soberano sobre o poder legislativo e o executivo.

Embora existam pequenas diferenças nas várias democracias, certos princípios e práticas distinguem o governo democrático de outras formas de governo.

  • Democracia é o governo no qual o poder e a responsabilidade cívica são exercidos por todos os cidadãos, directamente ou através dos seus representantes livremente eleitos.
  • Democracia é um conjunto de princípios e práticas que protegem a liberdade humana; é a institucionalização da liberdade.
  • A democracia baseia-se nos princípios do governo da maioria associados aos direitos individuais e das minorias. Todas as democracias, embora respeitem a vontade da maioria, protegem escrupulosamente os direitos fundamentais dos indivíduos e das minorias.
  • As democracias protegem de governos centrais muito poderosos e fazem a descentralização do governo a nível regional e local, entendendo que o governo local deve ser tão acessível e receptivo às pessoas quanto possível.
  • As democracias entendem que uma das suas principais funções é proteger direitos humanos fundamentais como a liberdade de expressão e de religião; o direito a protecção legal igual; e a oportunidade de organizar e participar plenamente na vida política, económica e cultural da sociedade.
  • As democracias conduzem regularmente eleições livres e justas, abertas a todos os cidadãos. As eleições numa democracia não podem ser fachadas atrás das quais se escondem ditadores ou um partido único, mas verdadeiras competições pelo apoio do povo.
  • A democracia sujeita os governos ao Estado de Direito e assegura que todos os cidadãos recebam a mesma protecção legal e que os seus direitos sejam protegidos pelo sistema judiciário.
  • As democracias são diversificadas, reflectindo a vida política, social e cultural de cada país. As democracias baseiam-se em princípios fundamentais e não em práticas uniformes.
  • Os cidadãos numa democracia não têm apenas direitos, têm o dever de participar no sistema político que, por seu lado, protege os seus direitos e as suas liberdades.
  • As sociedades democráticas estão empenhadas nos valores da tolerância, da cooperação e do compromisso. As democracias reconhecem que chegar a um consenso requer compromisso e que isto nem sempre é realizável. Nas palavras de Mahatma Gandhi, “a intolerância é em si uma forma de violência e um obstáculo ao desenvolvimento do verdadeiro espírito democrático”.
  • Fonte: Departamento de Estado dos E.U.A.

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