CONVERSA EM FAMÍLIA
“O português como língua”
Por: José Carlos Cocamaro
Conceitualmente, a língua escrita e falada é o mais poderoso veículo de
comunicação e de relacionamento entre os seres humanos. É uma área de
conhecimento com a qual entramos em contacto a partir do nosso nascimento.
Os seres humanos têm sido capazes de descrever um sem número de situações e
factos, graças à linguagem falada e escrita. No caso específico da Guiné –
Bissau, muitos factos históricos e feitos gloriosos dos nossos antepassados,
embora passados oralmente de geração para geração, não foram registados alguns
dos seus conteúdos substanciais que perderam-se no espaço e no tempo, isto é, à
medida que os anos vão passando, alguns elementos às vezes chaves de um facto
histórico são omitidos na narração ou por esquecimento ou por infidelidade à
história.
Com o advento do colonialismo e durante os mais de 5 séculos da dominação, os
colonialistas portugueses só registavam aquilo que fosse do seu interesse. Se
registaram algo que não foi do seu real interesse, fizeram-no de forma sucinta e
às vezes viciada e vaga.
Contudo, o nosso país, a Guiné – Bissau foi colonizada por Portugal e uma das
melhores coisas que ele nos deixou como herança da longa dominação é o
português, sua língua, conforme veremos mais a frente na análise que Amílcar
Cabral faz sobre a resistência cultural e com toda a propriedade que lhe é
característica, aponta a necessidade que temos de aprender o português como
língua de comunicação, independente do colonialismo e da dominação colonial
portuguesa.
Os portugueses deixaram-nos a sua língua pronta e acabada. De onde vem o
português como língua? Qual é a sua origem? A língua portuguesa tem sua origem
no “Latim Vulgar” isto é, uma modalidade da língua latina falada, trazida pelos
romanos à Lusitânia – actual Portugal, no século III a. C.
Tal como língua é um poderoso veículo de comunicação e mais nada. É um
instrumento de relacionamento entre as pessoas e nada mais do que isto. Não tem
nada a ver com a colonização, com a barbárie praticada pelos colonizadores. É a
maior riqueza deixada pelos portugueses na nossa terra, diga-se de passagem.
Nos nossos dias, o português situa-se entre as 10 línguas mais faladas no mundo.
É falado hoje por mais de 200 milhões de pessoas em todos os cinco continentes
(África, América, Ásia, Europa e Oceania). É uma das línguas mais ricas do
mundo, senão a mais rica, com mais de 400 mil vocábulos ou melhor, palavras
diferentes usadas na língua portuguesa, embora os melhores dicionários não
registem mais do que 200 mil vocábulos.
Para nós das antigas colónias portuguesas que temos o português como nossa
ferramenta de trabalho, através da qual expressamos os nossos sentimentos,
nossos desejos, manifestamos a nossa cultura para o mundo exterior e acima de
tudo servimo-nos dela nas nossas actividades administrativas, há necessidade de
dominarmos esta língua nos dois níveis: falado e escrito. Dominar o português é
exprimir-se bem nela. É ser capaz de contar o que se quer respeitando as normas
gramaticais, de sorte que, outras pessoas (receptores) possam entender sem
ambiguidade a nossa comunicação. Isto não quer dizer que não possamos errar,
cometer enganos ou equívocos, às vezes por distracção. Podemos errar sim, porque
ninguém sabe tudo. É como diz o adágio: “errar é humano”. Mas, não deve ser um
escudo atrás do qual nós nos escondemos para não nos esforçarmos mais e
aprimorarmos o nosso conhecimento relativo à língua lusitana.
É tão esdrúxulo quanto constrangedor nos declararmos em alto e bom som sermos da
Guiné – Bissau, uma ex-colónia portuguesa; que no nosso país se fala português,
e, na hora em que abrirmos a boca ou redigirmos uma breve nota, não conseguirmos
no mínimo satisfazer às regras mais elementares da gramática da língua
portuguesa. Essa situação se agrava mais quando se trata de uma pessoa que
preliminarmente se apresentou como um estudante no curso superior, não importa a
área de formação. No mínimo, sendo de um país onde se aprende o português desde
o primário à instrução secundária e hoje, da instrução secundária à instrução
superior, mesmo considerando que no nosso país não é habitual as pessoas falarem
o português quotidianamente em virtude do nosso crioulo ser mais difundido,
torna-se necessário os letrados ou aqueles que tiveram a oportunidade de ir à
escola se aprimorarem no falar e no escrever. Aliás, nós guineenses somos
gabados de bons redactores. Mas, esta característica elogiosa que nos acompanha
desde à época colonial está a perder o seu fôlego por causa da deterioração do
Sistema de Ensino no nosso país, sobretudo, no que diz respeito à estrutura e ao
aprendizado da língua portuguesa.
As novas gerações estão infelizmente desprovidas de ferramentas que lhes
possibilitem falar e escrever razoavelmente bem a língua portuguesa. Não se
aprofunda mais o estudo do chamado léxico gramatical ou seja: artigos,
substantivos, pronomes, verbos, preposições, conjunções, acentuação, adjectivos,
advérbios, sintaxe e afins. Não se conjugam mais verbos, entre muitas outras
regras que são um passaporte para quem quer pelo menos ter noções básicas do
falar e do escrever a língua de Camões.
O falar e o escrever bem a língua portuguesa, como toda e qualquer empreitada,
requer um esforço adicional, além da obediência à certas regras gramaticais. Não
é “totobola”. É certeza que requer exercícios, esforços constantes e consultas
permanentes à maior autoridade linguística mundial, que fala bem, escreve bem e
corrige a todos e chama-se Sr. Dicionário. Ao contrário do que se costuma a
dizer mesmo em tom de brincadeiras, o dicionário é o professor das pessoas
esforçadas, que querem errar menos, que querem aprender mais, enfim, de pessoas
inteligentes.
Quem não tem certeza da grafia de uma palavra que quer empregar, que recorra ao
dicionário para tirar suas dúvidas uma vez por todas, evitando assim passar toda
a vida a escrevê-la de forma errada. É de extrema importância reler ou relermos
atentamente, uma, duas ou mais vezes o nosso escrito, mesmo depois de tê-lo
enviado ao destinatário. Isto ajuda a descobrir eventuais equívocos. Há alguns
meses eu cometi um deslize que só descobri após o envio da carta ao
destinatário. Troquei a palavra “maciça” por “massissa”, esta última que
tampouco existe em português a não ser que os dicionários que eu consultei não a
registem, tudo isto por uma analogia mal feita por mim em relação à palavra
“massa”- grande quantidade de pessoas ou coisas. Darei detalhes no glossário. E,
a propósito disto, eu receberei de bom grado qualquer reparo que o leitor fizer
a este e eventualmente a outros artigos que eu enviarei ao ”Contributo”. Se eu
não concordar com a correcção justificarei através de ferramentas confiáveis que
não deixarão dúvidas e mesmo assim, mostrar-me-ei grato e estarei mais atento ao
fazer isto que muito gosto de fazer, que é escrever.
Mas só o dicionário não resolve a nossa insuficiência e defeitos cujas causas
são mais profundas do que se pode imaginar - a degradação vertiginosa do ensino
a vários níveis no nosso país. É exactamente por este motivo que a questão da
Educação no nosso país não pode continuar a ser um assunto “noli me tangere”
isto é, um assunto em que não se deve tocar. Pelo contrário, o assunto educação
deve estar sempre na ordem do dia no nosso país sendo preocupação diária de todo
o cidadão guineense que tem consciência de que nenhum país progride sem uma
educação de qualidade que forme adequadamente seus cidadãos para desempenharem
com competência suas funções no quadro do desenvolvimento da nação. Neste
âmbito, Amílcar Cabral disse: “porque nós sabemos que não são os analfabetos que
podem fazer uma terra boa. É preciso gente que lê e escreve”. Para Cabral o
saber ler e escrever não se limita tão somente em conhecer as letras e saber
escrever o nome sem no entanto entender o conteúdo do que se lê. Este tipo se
chama analfabeto funcional e em pouco se difere com o analfabeto genuíno ou
seja, aquele que não conhece letras e nem sabe escrever o seu nome. Amílcar
Cabral se refere àquelas pessoas que sabem ler e entendem o que lêem e se
aprofundam nos conhecimentos científicos da vida e do mundo, para assim tirar
proveito do avanço tecnológico dos nossos tempos.
Penso que as nossas autoridades e poderes constituídos devem dar conta da
deterioração do Sistema da Educação no nosso país. É urgente reformular o nosso
Sistema de Ensino. Há necessidade de se rever e reformular os métodos de
aprendizagem no nosso país.
As questões didácticas devem ser discutidas amplamente pelas autoridades
competentes do governo, pelo nosso parlamento ou melhor, pela nossa Assembléia
Nacional Popular (ANP) e pela Sociedade guineense como um todo, para que dessa
discussão surjam PROPOSTAS CURRICULARES, PARÂMETROS
CURRICULARES NACIONAIS que revigorem o nosso Sistema de Ensino e dar a ela
qualidade que vai ao encontro das exigências da competitividade do nosso mundo
globalizado. Há por exemplo, necessidade de se reconsiderar o estudo sistemático
da gramática nos níveis primário e básico, como condição “sine qua non” para
reavivar e tornar eficiente o aprendizado da língua portuguesa pelos nossos
estudantes. A minha preocupação com o aprendizado do português, quiçá de muitos
pais preocupados com o nível cultural dos seus filhos e porque não de muitos
guineenses que também se sentem abismados e alarmados com a degradação do nosso
ensino, cujos reflexos são o baixo nível verbal e escrito das nossas crianças,
jovens e amanhã nossos adultos ministros, secretários de estado, governadores,
parlamentares, Presidente da República, administradores de empresas privadas,
estatais e afins, se prende também com a interdependência das disciplinas. Pois,
a matemática, a geografia, a história, a ciência, a física e afins, tudo se
expressa, no nosso caso, na língua portuguesa. Portanto, o aluno que não tiver
familiaridade com as regras básicas e elementares da língua portuguesa,
dificilmente será capaz de resolver uma simples questão de aritmética expressa
nesta língua. Isto vale para outras disciplinas tradicionais já citadas acima.
Ora, a minha intenção aqui não é de preterir e nem duvidar da capacidade
intelectual dos nossos estudantes, estou muito longe disto. Não procuro
estabelecer cegamente um paralelo de comparação de gerações. O que está em causa
é o Currículo escolar, o nível de ensino regredido; é o abandono do Sistema de
Educação a sua própria sorte. É a falta de incentivos ao sector da Educação.
Isto significa dizer que, o professor guineense, sem mínimas condições de
sobrevivência, não tem como aprimorar os seus conhecimentos profissionais. Que
eu saiba, não existem programas de educação continuada ou melhor, a reciclagem
de professores, tal como existia antigamente. É claro que a Educação está
inserida no contexto global do país e por isso é também afectada pela crise
económica que o país atravessa a mais de três décadas. Mas, que no capítulo das
prioridades, ela é sempre apontada como prioritária, pelo menos teoricamente.
Entretanto, retomando a necessidade e a importância do estudo da língua
portuguesa é preciso ressaltar que é impossível falar e escrever correctamente
uma língua sem conhecer suas normas básicas. Não se fala uma língua na sua forma
culta sem saber conjugar os verbos e fazer a concordância verbal e nominal. Para
isso é fundamental o estudo da gramática, isto é, o estudo dos factos e regras
que presidem às normas da língua escrita ou falada. Não se deve perder de vista
que escrever a um amigo ou a um chefe, é falar à distância, é conversar com
alguém à distância, é exprimir o nosso pensamento a alguém e devemos fazê-lo com
cortesia de forma a cometer menos erros possíveis. Assim, daremos o prazer a
quem nos ouve através da leitura da nossa mensagem. O português bem escrito é
prazeroso de ler.
Enquanto não desenvolvermos a forma homogénea de escrever e de ler o nosso
especial e lindo crioulo, fiquemos ainda com o português, uma língua acabada,
linda, rica e faz parte da nossa história que, embora dolorosa, é indelével,
isto é, não se pode apagá-la.
Estudar, escrever e falar a língua portuguesa no nosso país, não é uma
alienação. Não significa abandonar a nossa natureza de guineenses e de
africanos. Não é o desvio de nossos paradigmas, pelo contrário, é conservar,
manter e dignificar a nossa história. É de recordar que durante a Luta gloriosa
de Libertação Nacional havia tendência de nolição à língua portuguesa e Amílcar
Cabral, na sua obra “análise de alguns tipos de resistência” esclareceu
eloquentemente a questão da língua portuguesa de seguinte forma: “Temos que ter
um sentido real da nossa cultura. O português (língua) é uma das melhores coisas
que os tugas nos deixaram, porque a língua, não é prova de mais nada, senão um
instrumento para os homens se relacionarem uns com os outros, é um instrumento,
um meio para falar, para exprimir as realidades da vida e do mundo. Assim como o
homem inventou o rádio para falar à distância, sem falar com a língua, só com
sinais, o homem através do tempo do seu desenvolvimento, começou a falar, a
necessidade de comunicar-se fê-lo começar a falar. Desenvolveu as cordas vocais,
etc., até falar. E como a língua depende do ambiente em que se vive, cada povo
criou a sua própria língua. Se repararmos, por exemplo, na gente que vive perto
do mar, a sua língua tem muita coisa relacionada com o mar, quem vive no mato, a
sua língua tem muita coisa relacionada com as florestas. Um povo que vive no
mato, por exemplo, não sabe dizer bote, não conhece o bote, não vive no mar. Por
exemplo, na língua de certos povos da Europa, as coisas do mar, da navegação,
dizem-se como em português, porque os portugueses viviam junto do mar. Tudo isso
tem sua razão de ser. A língua é um instrumento que o homem criou, através do
trabalho, da luta, para comunicar com os outros. E isso deu-lhe uma grande força
nova, porque ninguém mais ficou fechado consigo mesmo, passaram a comunicar uns
com os outros, homens com homens, sociedades com sociedades, povo com povo, país
com país, continente com continente. Que maravilha! Foi o primeiro meio de
comunicação natural que houve, a língua. Mas o mundo avançou muito, nós não
avançamos muito, tanto como o mundo e a nossa língua ficou ao nível daquele
mundo a que chegamos, que nós vivemos, enquanto o tuga, embora colonialista,
vivendo na Europa, a sua língua avançou bastante do que a nossa, podendo
exprimir verdades concretas, relativas, por exemplo, à ciência. Por exemplo nós
dizemos assim: a lua é um satélite natural da terra. Satélite natural, digam
isso em balanta, digam em mancanha. É preciso falar muito para o dizer, é
possível dizê-lo, mas é preciso falar muito até fazer compreender que um
satélite é uma coisa que gira à volta de outra. Enquanto que em português, basta
uma palavra. Falando assim qualquer povo no mundo entende. E a matemática, nós
queremos aprender matemática, não é assim? Por exemplo, raiz quadrada de 36.
Como é que se diz raiz quadrada em balanta? É preciso dizer a verdade para
entendermos bem. Eu digo por exemplo: a intensidade de uma força é igual à massa
vezes a aceleração da gravidade. Como é que vamos dizer isso? Como é que se diz
aceleração da gravidade na nossa língua? Em crioulo não há, temos que dizer em
português. Mas para a nossa terra avançar, todo o filho da nossa daqui a alguns
anos tem que saber o que é aceleração da gravidade. Não explico isso agora,
porque não há tempo, temos muito trabalho. Mas camaradas, amanhã, para
avançarmos a sério, não só os dirigentes, todas as crianças de 9 anos de idade,
têm que saber o que é a aceleração da gravidade. Na Alemanha, por exemplo, todos
os meninos sabem isso. Há muita coisa que não podemos dizer na nossa língua, mas
há pessoas que querem que ponhamos de lado a língua portuguesa, porque nós somos
africanos e não queremos a língua de estrangeiros. Esses querem é avançar a sua
cabeça, não é o seu povo que querem fazer avançar. Nós, Partido, se queremos
levar para a frente o nosso povo durante muito tempo ainda, para escrevermos,
para avançarmos na ciência, a nossa língua tem que ser o português. E isso é uma
honra. É a única coisa que podemos agradecer ao tuga, no facto de ele nos Ter
deixado a sua língua depois de Ter roubado tanto na nossa terra. Até um dia em
que de facto, tendo estudado profundamente o crioulo, encontrando todas as
regras de fonética boas para o crioulo, possamos passar a escrever o crioulo.
Mas nós não proibimos ninguém de escrever o crioulo, se alguém quiser escrever
uma carta ao Tchutchu em crioulo, pode escrever. Somente ele na resposta que lhe
mandar, vai escrever de maneira diferente, mas faz-se compreender. Mas para a
ciência, o crioulo ainda não serve”.
GLOSSÁRIO
Alienação => abandono do direito natural de ser; desvio de seus princípios
naturais, corromper-se, afastar-se de seus paradigmas. Perda de identidade,
afastamento da origem
Ambiguidade => que pode ter dois sentidos, pouco claro,
Impreciso, confuso.
Dignificar => honrar, tornar digno, nobilitar.
Eloquente => que tem talento de convencer, arte de bem falar.
Eloquentemente => convincentemente.
Glossário => é um minidicionário onde são definidas as palavras que
eventualmente possam apresentar dificuldades de compreensão.
Homogênea => igual, análoga, idêntica,
Linguística => estudo comparativo das línguas, versátil em
línguas.
Nolição => vontade que nega; que se opõe.
“Noli me tangere” => locução latina, que quer dizer, “não me toques”.
Refere-se a um assunto que por um motivo ou outro, não se deve tocar ou
discutir.
Paradigma => padrão, modelo, norma,
Redactor => aquele que redige, que escreve, que escreve artigos, chefe da
redacção de um jornal.
“Sine Qua non” => necessário ou condição necessária, sem a qual não.
Tuga => forma característica de se chamar os colonialistas portugueses.
Possivelmente este termo tenha se originado da palavra “tugue” => homem
cruel, implacável; “membro de uma associação religiosa de Índios que fazia
sacrifícios humanos, estrangulando os estrangeiros
VAMOS CONTINUAR A TRABALHAR!
Projecto Guiné-Bissau: CONTRIBUTO