PORQUE ESSA DEMOCRACIA
AINDA ESTÁ DE CÓCORAS ?
Filomena Embaló
fembalo@gmail.com
02.02.2004
Há um velho ditado
guineense que diz que estar sentado, não é o mesmo que estar de cócoras (Sintadu
i ka djuntu ku djungutudu). Foi um adágio ao qual se recorria com frequência
nos primeiros anos de independência para se explicar por que razão os colonos
partiram. É que eles não se sentaram realmente, tendo-se apenas acocorado,
posição que permitiu partir com rapidez.
A democracia que se tem
vindo a tentar instalar na Guiné-Bissau não consegue sentar-se, acocorando-se
como pode, em posições deveras incómodas. E é normal que assim aconteça, pois
ela não consegue encontrar o receptáculo apropriado e indispensável à sua
implantação.
Do grego, “democracia”
significa o poder do povo ou o povo no poder, muito embora nem mesmo na Grécia
antiga fosse o povo na sua totalidade a estar no poder, mas sim os cidadãos,
unicamente homens, dos quais estavam excluídos os residentes
estrangeiros, os escravos alforriados e os cativos.
Nas democracias modernas,
o poder e a responsabilidade cívica pertencem ao conjunto dos cidadãos (na sua
acepção actual), que os exercem directamente ou através de representantes
livremente eleitos. A democracia repousa no princípio da lei da maioria
equilibrada pelo respeito dos direitos das minorias e dos direitos
individuais. Como direitos fundamentais do homem definem-se a liberdade de
expressão e de religião, o direito a uma igual protecção dos cidadãos pela lei
e a liberdade destes de se organizarem e participar plenamente na vida
política, económica e cultural da sociedade. Isso pressupõe que cada cidadão
disponha de capacidades que lhe permitam o exercício pleno da sua
participação, sendo a primeira dessas capacidades a competência que lhe é
conferida pelo acesso à formação. Com efeito, sem esta, não poderá ser um
cidadão esclarecido e informado de maneira objectiva e, por conseguinte, livre
para defender os seus direitos.
Porém, a democratização destas sociedades não foi um
processo linear ou decidido por decreto. Impregnada dos valores culturais e
morais dos povos em questão, ela é a consequência do processo histórico desses
povos que foram paulatinamente resolvendo as suas contradições internas,
enquanto evoluíam por diferentes estados de desenvolvimento. O sistema
político em vigor hoje, é, pois, o resultado de conquistas culturais,
económicas, sociais e políticas conseguidas ao longo de séculos de
desenvolvimento que colocaram o Homem, como indivíduo, no centro das suas
preocupações. São essas conquistas que constituem o que anteriormente chamei
de receptáculo para a implantação dessa democracia e sem as quais não poderá
vingar.
Tal como se actuou malogradamente em África e na
Guiné-Bissau, em particular, na década de oitenta do século XX, no âmbito
económico com a aplicação de reformas de pretendido valor universal e
consubstanciadas em programas de ajustamento estrutural, está-se agora a
forçar a passagem a um sistema democrático, que também se supõe universal.
Ora acontece que a
Guiné-Bissau, que está longe de ser uma excepção no continente africano, conta
hoje ainda com populações que, na sua maioria, vivem de uma forma que pouco
difere da que as caracterizava no início da ocupação colonial, apresentando
taxas de analfabetismo rondando os 70%. Essa maioria, que “escapou” à política
de assimilação, pôde preservar, quase intactas, a sua cultura, a sua forma de
vida, transmitidas de geração em geração por uma tradição oral. Embora
congregadas em vários grupos socio-étnicos de características próprias a cada
um, essas populações possuem um denominador comum que é a organização da
sociedade numa base comunitária, em que o Homem, como indivíduo, existe apenas
enquanto elemento da comunidade, havendo uma primazia desta sobre o
indivíduo..
Nessas sociedades em
que a frontalidade é evitada na resolução dos conflitos, estes são
ultrapassados pela criação de consensos com base em discussões, de forma a
preservar a coesão do grupo. Assim, a contestação individual é sinónimo de
rebeldia ou de falta de respeito e a sociedade está atenta para repor o
contestário no bom caminho.
Em termos de chefias, quer se trate de sociedades
verticais ou horizontais, os representantes do poder, sejam eles individuais
ou colectivos em função do tipo de sociedade, consideram-se e são considerados
pela população como detentores de um poder uno e indivisível na gestão da vida
da comunidade, mesmo se aconselhados. Um chefe a quem não é reconhecida tal ou
tal capacidade na gestão comunitária não pode merecer o respeito dos seus
governados.
Num contexto destes, como
coadunar um regime democrático de modelo ocidental, centrado sobre a liberdade
do indivíduo de se exprimir, de questionar-se sobre os próprios valores da
sociedade, de promover debates com vista à evolução desta e de agir nesse
sentido, com uma sociedade cuja lógica de funcionamento repousa sobre o ser
colectivo, cuja coesão é justamente assegurada pela conservação do statu quo?
Analisando a questão do prisma estatal, encontramos um
paralelismo entre o que se passa nas sociedades ditas tradicionais e o
comportamento das classes dirigentes. A História do país está, infelizmente,
cheia de exemplos da dificuldade dos governantes de se adaptarem e aplicarem
essa cultura democrática que basicamente não é a que predomina na sociedade
onde vivem. E isto mesmo que se tenham “aproximado” individualmente da cultura
subjacente ao modelo de democracia ocidental. Mas por ter sido um acto
individual ou de um pequeno grupo, permanece superficial e insuficiente. Só
assim se poderá entender, por exemplo, as tomadas de decisão de certas
instâncias do poder, num passado recente, em relação a matérias que,
constitucionalmente, não são de sua competência, simplesmente por ainda não se
terem desprendido da noção do poder uno e indivisível característico das
sociedades tradicionais.
Esta chamada de atenção para os pólos em torno dos
quais se estruturam as organizações políticas das sociedades (o indivíduo, num
caso e a colectividade, no outro), leva-nos a questionar sobre a
universalidade de um modelo democrático e da sua implantação indiscriminada em
qualquer latitude.
Num mundo cada vez mais globalizado, a definir-se o
modelo de democracia ocidental como o modelo único e universal e para que ele
se imponha com sucesso, nomeadamente aos países africanos, ter-se-á em
primeiro lugar que criar as condições indispensáveis para que esses países se
aproximem do modelo cultural, social e económico subjacente a esse modelo de
democracia, de forma a poderem dispor do tal receptáculo imprescindível à sua
implantação. Isso supõe, pura e simplesmente, que as sociedades africanas
devam desenvolver-se seguindo também o modelo de desenvolvimento dos países
ocidentais nas suas diferentes vertentes.
Ora, tem sido justamente por se ter tentado importar em
África modelos económicos, sociais e políticos de outros países, ignorando as
particularidades próprias de cada estado, que o continente, apesar das enormes
potencialidades naturais de que dispõe, tem vindo a conhecer um depauperamento
progressivo a todos os níveis.
Nessa ordem de ideias, torna-se impossível produzir uma
“cópia autenticada” do modelo em questão, sendo que cada país deva ele mesmo
encontrar, a partir da sua própria realidade, a forma de fazer evoluir as
suas sociedades, numa lógica e ritmos que lhes são próprios, de forma a
poderem determinar e dominar elas mesmas os respectivos processos de
desenvolvimento.
Os abusos de poder e os entorses à democracia, antes de
se tornarem factores de sub-desenvolvimento, foram a consequência desse estado
e o seu combate passa necessariamente pela luta pelo desenvolvimento e, nessa
perspectiva, prioridade deve ser dada ao combate ao analfabetismo e ao
obscurantismo, actuais entraves ao desenvolvimento humano.
Não será por decreto ou por imposição da comunidade
internacional que a Guiné-Bissau conseguirá respeitar os requisitos de um
Estado de liberdade e de direito. Ela terá que construir pedra a pedra, da
base ao topo, a sua democracia, aquela que fale a linguagem do seu povo e na
qual este se identifique por encontrar nela os seus valores de referência e de
identidade.
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