Elegia ao Professor Pinto Bull

 

Prof. Dr. Benjamin Pinto Bull

 

 

Por: Leopoldo Amado*

 

*(Historiador guineense)

Lisboa, Fevereiro 2005

 

Conheci mais intimamente o Professor Pinto Bull na Guiné, em 1990, justamente na altura em que ainda trilhava os imberbes caminhos da iniciação à pesquisa e à investigação científicas. Partilhamos, nessa altura, o espírito do colóquio internacional "Bolama – Caminho Longe" , afinal, como vim a descobrir, algo que muito unia a ambos: ele, pela trama umbilical desta mística terra que o viu nascer, e eu, pelo intenso fervilhar com que revivia o meu infantil processo de socialização nesta mesma terra, afinal, cadinho que me viu crescer e terra natal dos meus progenitores.

 

Antes, porém, e numa altura em que eu procurava fazer-me ao hábito nas lides da leitura, na incontornável Biblioteca Nacional de Lisboa, tive o privilégio de cruzar-me quase que diariamente com um sem-número de bibliófilos africanos ilustres, dentre os quais os saudosos Mário de Andrade e Óscar Ribas (ambos de Angola) e o agora, igualmente saudoso, Professor Benjamim Pinto, o único "mais velho" guineense que também mantinha este sublime hábito de indagação da vida e das coisas através da leitura. Nessa altura, quer o Professor Benjamim Pinto Bull, quer o Mário de Andrade eram arredios em palavras que traduzissem ou explicassem o seu objecto de estudo, do passado ou do presente, pelo que tive que contentar-me em estar ali na Biblioteca Nacional – mesmo ao lado dos que constituíam e constituem referencias vivas –, a vasculhar-lhes as produções de índole vária, saída das suas brilhantes penas. Pude então inteirar-me das motivações que subjaziam o incomensurável esforço do Profesor Bull no estudo do crioulo da Guiné-Bissau, mas também do seu importante artigo em que procede a "redescoberta" do caboverdiano Fausto Duarte como verdadeiro "romancista guineense", de resto, temas que indiciavam a sua preocupação com a sempre actual problemática da identidade nacional guineense.

Todavia, em virtude de nunca ter tido ocasião de aflorar com o Professor Benjamim Pinto Bulll aspectos atinentes ao seu percurso político, justamente porque ele considerava, amiúde, que esse capítulo da sua vida estava encerrada, apenas pude ter inicialmente uma vaga ideia do papel que o mesmo protagonizou no processo da luta pela independência da Guiné. Só vim a ter verdadeiramente a percepção do alcance desse percurso quando, muitos anos passados, investiguei a génese e os desenvolvimentos ulteriores do nacionalismo guineense. Pude então compreender o carácter intrínseco, duplo, e igualmente ambivalente da curiosa trajectória do Professor Pinto Bull. Mais: apercebi-me, à medida que se avolumavam os dados e históricos e biográficos sobre a sua acção, da interligação – dir-se-ia umbilical –, entre o «Professor político» e o «Professor académico».

 

Nele, efectivamente, uma e outra coisa entrelaçaram-se e condicionaram-se reciprocamente ao longo do tempo, numa dinâmica interactiva, cujo polo central é e foi sempre a Guiné. O académico – fortemente matizado e mesmo influenciado pelo humanismo e o pragmatismo da negritude e sobretudo pelo anunciado civilizacional e cultural segundo a filosofia senghoriana, acabando este por imprimir, tanto nas acções cívicas como nas actividades intelectuais e científicas, um pragmatismo correspondente em termos políticos, e vice-versa. Sintomaticamente, tratava-se, afinal, de proceder à transposição da experiência senghoriana para o caso guineense, necessariamente, com a acoplagem de ajustamentos condicionados ou ditados pelas diferenças que uma e outra realidade comportavam, pelo que, por isso mesmo, quer as acções políticas como as académicas do Professor Pinto Bull se nos apresentam assaz multifacetadas e por vezes mesmo aparentemente contraditórias ou incongruentes, apesar de nelas também se descortinar uma teorização e prática política consequentes, para além de um raciocínio e seu fio condutor, os quais, tomados em conjunto, e independentemente do juízo de valor que sobre eles possa recair, o Professor defendeu intransigentemente em vida: a independência progressiva para a Guiné.

 

Não obstante semelhantes, nos traços gerais, convenhamo-nos de que a proposta política do Professor Benjamim Pinto Bull não era, com plena propriedade, um decalque da experiência política do Senegal que Senghor protagonizou enquanto pai fundador do Senegal independente e seu primeiro Presidente. Tanto assim era que o Senegal já era um país independente e o próprio enunciado da filosofia senghoriana, no qual Pinto Bull se inspirou, raiava mais abrangentemente os limites do universal e do homem negro, e não apenas africano, na construção de uma pletórica universalidade. Como quer que seja, é importante que se proceda a uma devida contextualização histórica para que possamos apreender e até entender o alcance da proposta da independência gradual defendida pelo Professor Pinto Bull, mormente, pela via do estabelecimento das correlações com os problemas coloniais que Portugal enfrentava nos inícios da década de «60», nomeadamente, a guerra deflagrada pelos nacionalistas nas frentes de Angola, Guiné e Moçambique, aliás, motivo fulcral porque a sua proposta política colheu simpatizantes entre as autoridades coloniais portuguesas, desde logo, da parte de Gonzaga Ferreira, então cônsul português em Dakar,

 

Os interesses das autoridades coloniais relativamente à Guiné nos inícios dos anos «60» eram diminutos, pois há muito que, historicamente, a colonização desse território mais se justificava por questões de prestígio e menos por dividendos económicos que disso pudesse resultar. Nos inícios da década de «60», coincidentemente, o período em que Portugal pretendia salvaguardar sobretudo as possessões de Angola e Moçambique, a proposta de Benjamim Pinto Bull para a Guiné surgiu junto de certos sectores portugueses, mesmo os mais conservadores, como uma oportuna solução para o problema colonial em África, nomeadamente, pela possibilidade do estabelecimento na Guiné de uma relativa autonomia, tendencialmente ou formalmente progressiva, basicamente, com um triplo objectivo: influenciar e reverter o processo reivindicativo pela via armada nas três frentes onde as hostilidades estavam a ganhar proporções incontroláveis; dissuadir e enfraquecer os movimentos de libertação pela via de partilha do poder com elites locais afectas à política colonial de Portugal; suavizar e mesmo ludibriar as constantes pressões e o consequente isolamento de que Portugal era alvo no plano internacional.

 

É nesse quadro que Benjamim Pinto Bull foi recebido em audiência pelo ditador Oliveira Salazar em 1963, caso único em todos os movimentos de libertação das ex-colónias portuguesas. De per si, convenhamo-nos de que, tal facto, sem dúvida assinalável, não constituiu em si um mérito próprio e, por outro, também não constitui (ou pelo menos não deveria constituir) motivo para que Benjamim Pinto Bull fosse política e até pessoalmente estigmatizado negativamente, tanto mais que quase todos os líderes dos movimentos de libertação, mormente Amílcar Cabral, fizeram inicialmente reiteradas propostas negociais ao Governo de Salazar que o mesmo simplesmente ignorou. Portanto, a audiência de Bull com Salazar teve apenas o mérito circunstancial porque, como é sabido, Salazar era um homem embuído de um atroz racismo e, como tal, nunca acreditou verdadeiramente nas probabilidades de independência e autodeterminação dos povos das ex-colónias de Portugal. Entre vários e desafortunados episódios, prova isso o facto de Salazar, após se ter comprometido com Benjamim Pinto Bull em iniciar as negociações e de ter inclusive despachado para Bissau uma delegação negocial portuguesa, ter também mandado, à última hora, suspender e mesmo anular quaisquer propósitos negociais nas vésperas do acontecimento, justamente quando o Benjamim Pinto Bull se preparava a partir do Senegal para se deslocar a Bissau com uma delegação negocial da UNGP (União dos Naturais da Guiné Portuguesa).

 

Consequentemente, Benjamim Pinto Bull desligou-se da UNGP, na sequência do falhanço das negociações que deveriam ter lugar em Bissau e, doravante, alternou a sua vida entre o ensino de português no Senegal de que foi o pioneiro, quer ao nível do secundário, quer ao nível do ensino superior, e a tentativa, não tão bem sucedida, de colocar alguma ordem na dilacerada e debilitada FLING (Frente de Libertação Nacional da Guiné), frente criada em 1962 por pressão do Governo do Senegal e constituída pela maioria dos partidos nacionalistas guineenses que radicavam no Senegal. Nessa formação política, os guineenses, ao invés de se unirem, encontraram paradoxalmente nessa organização a melhor expressão política do profundo antagonismo que os dividia irremediavelmente. As tentativas de reabilitação da FLING por parte de Pinto Bull, apadrinhadas por Senghor, para a infelicidade do Professor Pinto Bull, acabaram por esbarrar-se com a iniciativa do carismático Paulo Dias, uma figura curiosa da FLING que chegou de ascender a Presidente de uma das facções residuais da FLING, entretanto rebaptizada «FLING Combatente», que não somente reivindicava para si o legado das primeiras acções armadas levadas a cabo nos finais da década de «50» contra o exército colonial ao longo da linha fronteiriça com o Senegal como igualmente assumiu-se publicamente pela retoma da luta armada por parte da FLING, a par da do PAIGC que, em abono da verdade, avançava sem pedir licença.

 

Tendo regressado a Portugal em 1984, o Professor Benjamim Pinto Bull esforçou-se por depor em 1989 no seu livro "Filosofia e sabedoria: o crioulo da Guiné-Bissau", os seus aturados quão inéditos estudos sobre o crioulo da Guiné-Bissau, mas igualmente toda uma gama de informações e dados de índole sociocultural da multímoda sociedade guineense, sublinhando, aqui e acolá, no livro em apreço, a riqueza da diversidade étno-cultural-linguistico que as múltiplas contribuições comportam. Algo curioso nem sempre tido em devida linha de conta, prende-se com os esforços do Professor Pinto Bull em estabelecer pontes entre o actual crioulo da Guiné-Bissau e as diversas contribuições de que o seu léxico é tributário, nomeadamente, com o latim, com o grego e, quiçá, o mais importante, da sua herança linguística advinda dos vocábulos dos diferentes povos africanos que constituem actualmente o mosaico demográfico e cultural da actual Guiné-Bissau.

 

 

Outrossim, é importante referir-se a forma como a opção do estudo do crioulo por parte do Professor Pinto Bull evidencia a cabal assunção da sua própria condição de «cidadão crioulo» e ainda a não menos indisfarçavel proposta política de «crioulização social», cuja leitura, igualmente, se pode fazer nas entrelinhas de sua produção creoulística, se assim o podermos chamar. Outrossim, nos referidos textos, divisa-se, uma dual preocupação a que correspondem uma bifurcada motivação: a primeira, cuja abordagem é direccionada em oposição à perspectiva das teses reducionistas que classificam os crioulos em geral e, em particular, o da Guiné-Bissau, como um dialecto ou um linguajar, donde as propostas de elevação do estatuto do crioulo à categoria de língua (em que se pode exprimir qualquer sentimento filosófico ou postura racional) e uma outra, a segunda, não completamente explicita, que se situa mais na dimensão do político, mas que se afigura indiscutivelmente apologético da valorização do crioulo, a par do português, afinal, na acepção do Professor, sua matriz genética, donde a sua importância na perspectiva de Pinto Bull como veículos de comunicação e matrizes propiciadores de uma maior identidade nacional guineense.

 

Em jeito de palavras finais, e falando do homem político, apenas direi que, para lá dos juízos de valores (tanto os que eventualmente se poderiam apresentar-se linfáticos relativamente ao papel político do Professor como relativamente aos que, por razões óbvias, procuram acentuar-lhe ainda mais a estigmatização – de que o próprio era cônscio , pelo que com ela teve de aprender a lidar –, apenas direi, como dizia, que ele era um inquestionável humanista, e, acima de tudo, um patriota convicto que não regateava esforços pela Guiné, mesmo quando o peso da decrepitude da idade tendia em falar mais alto. Dito de outra forma, disser-se-ia que o Professor Pinto Bull nunca se coibiu em investir-se da assumida missão de doar às gerações mais novas, desinteressada e generosamente, qual pedagogo que realmente foi, os ensinamentos da vida, quer fosse através de sua activa participação cívica, quer fosse através de sua não menos conhecida postura de promoção construtiva do diálogo e da paz.

 

Como académico, a avaliar pela pluralidade, quantidade e principalmente a qualidade de artigos, livros, ensaios e reflexões, mas sobretudo pelo potencial contributivo dos mesmos na melhoria do estado actual do conhecimento das abordagens de vária índole, torna-se mister dizer-se que o Professor Pinto Bull é uma referência incontornável do nosso património cultural, aliás, razão de sobra para aqui lhe deixarmos a nossa singela mas merecida homenagem. Esperamos que com a ajuda das autoridades guineenses as "Memórias de um Luso-Guineense", – livro de memórias para cujo lançamento o Professor Pinto Bull tanto ansiava, pois estava consciente que o mesmo poderia traduzir-se em mais um valioso contributo para as letras guineenses.

 

As autoridades públicas e culturais de alguns países, há muito que compreenderam e reconheceram a preciosa contribuição do Professor Pinto Bull. Nesse sentido, ele foi alvo, ainda em vida, condecorado ou homenageado como "Chevalier de l’Ordre des Palmes Académiques (Paris) ; como Grande Oficial da Ordem do Infante em prol da difusão da língua e cultura portuguesas em África (Portugal). Postumamente embora, urge que o Governo da Guiné-Bissau se faça munir de bom senso e proceda a uma merecida homenagem à memória do Professor Pinto Bull, na justa medida da sua valia e na justa proporção do seu exímio tributo às letras e ao património cultural guineenses. Numa sociedade em que infelizmente se premeia perversamente os que deviam estar à sua margem, é urgente a instituição de uma cultura do justo mérito. Enquanto isso não acontece, certamente que muitos outros guineenses, como nós, serão forçados a concordar com Hélder Vaz que, a propósito da morte do Professor Pinto Bull, desabafou: "a morte esquecida deixa o mal e leva o bem. O Professor Pinto Bull poderia ter sido muito útil à Guiné, como promotor do diálogo e da construção. O país, desnorteado, não o aproveitou, como não aproveita muita gente".

 

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