EM NOME DA RECONCILIAÇÃO
Filomena Embaló
18.12.2004
Sintchã[i]
D. e Sintchã M. são duas tabancas[ii]
vizinhas cujos habitantes descendem da mesma linhagem, mas vivem de costas
voltadas.
Consta
a lenda de que a desavença entre as duas povoações data de há cerca de um
século, aquando da instalação dos primeiros habitantes. Eram na altura
chefes das duas tabancas dois irmãos, Demba e Mamadu, filhos de um Régulo
muito conceituado da região. Porém, o pai tinha uma certa preferência por
Demba e a ele atribuiu o melhor pedaço de terra para aí fundar a sua
tabanca. Ao outro filho, coube o terreno contíguo, um pouco mais exíguo, por
estar limitado a leste por um pequeno riacho. Mamadu, trabalhador nato, deitou
mãos à obra e começou a edificar a sua morança[iii].
Trabalhou os terrenos à volta e transformou-os em produtivos lugares[iv],
que, para além do sustento familiar, davam produtos que mandava vender na
feira. O sucesso de Mamadu passou de boca em boca e em toda a região dizia-se
que o solo de Sintchã M. era abençoado por Alá e muitos foram os que vieram
instalar-se na nova tabanca. Enquanto isso, a população de Sintchã D.
apenas sobrevivia, sob a total indiferença de Demba, cuja única ocupação
era cobrar os tributos aos seus administrados.
Os
anos foram passando, Sintchã M. prosperando e Sintchã D. depauperando, a tal
ponto que começaram a aparecer rivalidades entre os habitantes das duas
tabancas. Eram frequentes as rixas entre as mulheres à volta da cata da água
e as disputas entre os homens por as cabras de uns irem comer o baguitche[v]
dos outros... Até que um dia caiu a desgraça em Sintchã M.. Mamadu,
contrariamente aos seus hábitos, nesse dia não se levantara antes do nascer
do sol. Quando a sua mulher entrou no quarto, viu-o ainda deitado,
aparentemente num sono profundo. Ao tocar-lhe o corpo, sentiu-o gelado e com
um grito dilacerante alertou a vizinhança. Mamadu estava morto e bem morto!
Porém nada podia explicar essa morte repentina, pois o chefe da tabanca
estava de perfeita saúde na véspera, antes de se ir deitar. A única explicação
plausível seria um bem sucedido trabalho de mouro[vi]...
Terminadas
as breves cerimónias fúnebres, os habitantes de Sintchã M. receberam a notícia
de que o novo chefe da tabanca seria Demba, irmão do falecido e chefe de
Sintchã D. O Régulo decidira juntar as duas povoações sob a tutela do seu
filho preferido. A população de Sintchã M., indignada com essa decisão,
resolveu rebelar-se e rejeitar o novo chefe com catanas em punho, até que a
morte de Mamadu fosse esclarecida. A revolta durou vários dias e foi preciso
o envio de intermediários vindos de todos os cantos da região para que a
decisão do Régulo fosse acatada. Porém, nunca se chegou a discutir e
conhecer a causa da morte de Mamadu. Mas sob pressão, os habitantes de
Sintchã M acabaram por ceder e aceitar Demba como chefe... No entanto, a
inimizade entre as populações das duas povoações persistiu ao longo dos
anos, permitida e cimentada pelo silêncio em nome da reconciliação,
preconizada por aqueles que nada conheciam da vivência das duas tabancas irmãs.
A
lenda de Sintchã D. e Sintchã M. seja ela verídica ou não, tem imensos
paralelos na história contemporânea nacional. O país tem ido de crise em
crise, passando por reconciliações efémeras, arrancadas à pressa com a
intervenção de mediadores estrangeiros, de cuja boa vontade não duvido. Mas
pergunto-me: em situação de crise, o que é mais importante? Chegar-se a uma
paz aparente imediata, assente sobre falsos e frágeis compromissos por não
serem os que realmente se desejam, por não corresponderem às verdadeiras
aspirações das partes em conflito? Ou antes, levar os antagonistas, não a
procurarem uma solução imediata ao que os opõe, mas sim a discutir a
natureza do problema que os separa, procurando as causas das desavenças, sem
subterfúgios, pondo o dedo na ferida, para que a partir daí, então, se
criem as condições para que esses diferendos não voltem a surgir?
Será
que em nome da reconciliação se pode renegar o debate e fazer tábua rasa de
injustiças, crimes, abusos, quando são estes os alicerces dos próprios
conflitos? Como construir a paz legitimando a impunidade, mãe de novos ódios
e de novas revoltas? Que compromissos poderão estar por detrás de uma
reconciliação de fachada que apenas adiará para mais tarde o eclodir da
fractura político-social latente?
Será
que um povo que soube reunir as suas forças vivas, contra todas as
adversidades, para se libertar do jugo colonial, seja hoje incapaz de
reflectir nos erros cometidos, para deles tirar lições e marchar rumo ao
progresso?
Em
nome da reconciliação, continuaremos todos a fingir que está tudo bem entre
nós, quando, na verdade, estamos todos de costas voltadas uns para os outros?
[i] Aldeia (t.fula) [ii] aldeia (t.crioulo) [iii] habitação familiar (t. crioulo) [iv] hortas
[v]
planta alimentícia, cujas folhas são utilizadas para a confecção de
molhos e flores para sumos [vi] curandeiro
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