Fundamentos e objectivos da libertação nacional em relação com a estrutura social
Discurso pronunciado em nome dos povos e das organizações nacionalistas das colónias portuguesas, na 1ª Conferência de solidariedade dos Povos da África, da Ásia e da América Latina (Havana, 3 a 14 de Janeiro de 1966), na sessão plenária de 6 de Janeiro. |
Amilcar Cabral
Os povos e as organizações nacionalistas de Angola, Cabo Verde, Guiné Moçambique e São Tomé e Príncipe mandaram as suas delegações a esta Conferência por duas razões principais: primeiro, porque queremos estar presentes e tomar parte activa neste acontecimento transcendente da História da Humanidade; segundo, porque era nosso dever político e moral trazer ao povo cubano, neste momento duplamente histórico — 7.° aniversário da revolução e primeira Conferência Tricontinental — uma prova concreta da nossa solidariedade fraternal e combativa.
Permitam-me portanto, que, em nome dos nossos povos em luta e em nome dos militantes de cada uma das nossas organizações nacionais, enderece as mais calorosas felicitações e saudações fraternais ao povo desta Ilha Tropical, pelo 7.° aniversário do triunfo da sua revolução, pela realização desta Conferência na sua bela e hospitaleira capital e pelos sucessos que tem sabido alcançar no caminho da construção duma vida nova que tem como objectivo essencial a plena realização das aspirações à liberdade, paz, ao progresso e à justiça social de todos os cubanos.
Saúdo em particular o Comité Central do Partido Comunista Cubano, o Governo Revolucionário e o seu líder exemplar — o Comandante Fidel Castro — a quem exprimo os nossos votos de sucessos contínuos e de longa vida ao serviço da Pátria Cubana, do progresso e da felicidade do seu povo, ao serviço da Humanidade.
Se algum ou alguns de nós, ao chegar a Cuba, trazia no seu espírito alguma dúvida sobre o enraizamento, a força, o amadurecimento e a vitalidade da Revolução Cubana essa dúvida foi destruída pelo que já tivemos ocasião de ver. Uma certeza inabalável acalenta os nossos corações e encoraja-nos nesta luta difícil mas gloriosa contra o inimigo comum: nenhuma força do mundo será capaz de destruir a Revolução Cubana, que, nos campos e nas cidades, está criando não só uma vida nova, mas também — o que é mais importante — um Homem novo, plenamente consciente dos seus direitos e deveres nacionais, continentais e internacionais. Em todos os campos da sua actividade, o povo cubano realizou progressos importantes nos últimos sete anos, em particular no ano findo — o Ano da Agricultura. Esses progressos estão patentes tanto na realidade material e quotidiana como no homem e na mulher cubanos, na confiança tranquila do seu olhar face a um mundo em efervescência, onde as contradições e as ameaças, mas também as esperanças e as certezas, atingiram um nível nunca antes igualado.
Do que já vimos e estamos a aprender em Cuba, queremos referir aqui uma lição singular na qual nos parece estar um dos segredos, se não o segredo, daquilo a que muitos não hesitariam em chamar «o milagre cubano»: a comunhão, a identificação, o sincronismo, a confiança recíproca e a fidelidade entre as massas populares e os seus dirigentes. Quem assistiu às grandiosas manifestações destes últimos dias e, em particular, ao discurso do Comandante Fidel Castro no acto comemorativo ao 7.° aniversário, terá medido, como nós, em toda a sua grandeza, o carácter específico, — talvez decisivo — deste factor primordial do sucesso da Revolução Cubana.
Mobilizando, organizando e educando politicamente o povo, mantendo-o em permanente conhecimento dos problemas nacionais e internacionais que interessam a sua vida, e levando-o a participar na solução desses problemas, a vanguarda da Revolução Cubana, que cedo compreendeu o carácter indispensável da existência dinâmica dum Partido forte e unido, soube não só interpretar justamente as condições objectivas e as exigências específicas do meio, mas também forjar a mais poderosa das armas para a defesa, a segurança e a garantia da continuidade da Revolução: a consciência revolucionária das massas populares que, como se sabe, não é nem nunca foi espontânea em parte alguma do mundo. Cremos que esta é mais uma lição para todos, mas particularmente para os movimentos de libertação nacional e, em especial, para aqueles que pretendem que a sua revolução nacional seja uma Revolução.
Alguns não deixarão de lembrar que, embora constituindo uma minoria insignificante, muitos cubanos não comungaram nas alegrias e esperanças das festas do sétimo aniversário, porque são contra a Revolução. Nós lembramos que é possível que vários outros não estejam presentes nas comemorações do próximo aniversário, mas queremos afirmar que interpretamos a política da «porta aberta para a saída dos inimigos da Revolução » como uma lição de coragem, de determinação, de humanismo e de confiança no povo, como mais uma vitória política e moral sobre o inimigo. E garantimos àqueles que, dum ponto de vista amigo, se preocupam com os perigos que essa saída possa representar, que nós, os povos dos países africanos ainda parcialmente ou totalmente dominados pelo colonialismo português, estamos prontos para mandar para Cuba tantos homens e mulheres quantos sejam necessários para compensar a saída daqueles que, por razões de classe ou de inadaptação, têm interesses e atitudes incompatíveis com os interesses do povo cubano.
Repetindo o caminho outrora doloroso e trágico dos nossos antepassados (nomeadamente da Guiné e Angola) que foram transplantados para Cuba como escravos, viremos hoje como homens livres, como trabalhadores conscientes e como patriotas cubanos, para exercer uma actividade produtiva nesta sociedade nova, justa e multirracial; para ajudar a defender com o nosso sangue as conquistas do povo de Cuba. Mas viremos também para reforçar tanto os laços históricos, de sangue e de cultura que unem os nossos povos ao povo cubano, como essa desconcentração mágica, essa alegria visceral e esse ritmo contagioso que fazem da construção do socialismo em Cuba um fenómeno novo à face do mundo, um acontecimento único e, para muitos, insólito.
Não vamos utilizar esta tribuna para dizer mal do imperialismo. Diz um ditado africano muito corrente nas nossas terras — onde o fogo é ainda um instrumento importante e um amigo traiçoeiro — o que prova o estado de subdesenvolvimento em que nos vai deixar o colonialismo — diz esse ditado que «quando a tua palhota arde, de nada serve tocar o tam-tam». À dimensão tricontinental, isso quer dizer que não é gritando nem atirando palavras feias faladas ou escritas contra o imperialismo, que vamos conseguir liquidá-lo. Para nós, o pior ou o melhor mal que se pode dizer do imperialismo, qualquer que seja a sua forma, é pegar em armas e lutar. É o que estamos a fazer e faremos até á liquidação total da dominação estrangeira nas nossas pátrias africanas.
Viemos aqui decididos a informar esta Conferência, o mais detalhadamente possível, sobre a situação concreta da luta de libertação nacional em cada um dos nossos países e, em particular, naqueles em que há luta armada. Fá-lo-emos perante a Comissão própria e também por meio de documentos, de filmes, de fotografias, de contactos bilaterais e dos órgãos de informação cubanos, no decurso da Conferência.
Pedimos permissão para utilizar esta oportunidade duma maneira que consideramos mais útil. Na verdade, viemos a esta Conferência convencidos de que ela é uma oportunidade rara para uma ampla troca de experiências entre os combatentes duma mesma causa, para o estudo e a resolução de problemas centrais da nossa luta comum, visando não só o reforço da nossa unidade e solidariedade, mas também a melhoria do pensamento e da acção de cada um e de todos, na prática quotidiana da luta. Por isso, se pretendemos evitar tudo quanto possa representar perda de tempo, estamos no entanto firmemente decididos a não permitir que quaisquer factores estranhos, ou não directamente ligados aos problemas que nos devem preocupar aqui, venham perturbar as possibilidades de êxito desta Conferência. Temos razões bastantes para afirmar que esta é igualmente a posição de todos os outros movimentos de libertação nacional presentes a esta Conferência.
A nossa Agenda de trabalhos inclui temas cuja importância e acuidade estão fora de discussão, e nos quais sobressai uma preocupação dominantes: a luta. Observamos contudo que um tipo de luta, quanto a nós fundamental, não está mencionado expressamente nessa Agenda, embora tenhamos a certeza de que está presente no espírito dos que a elaboraram. Queremos referir-nos à luta contra as nossas fraquezas. Admitimos que os outros casos sejam diferentes do nosso, mas a nossa experiência nos ensina que, no quadro geral da luta que travamos quotidianamente, sejam quais forem as dificuldades que nos cria o inimigo, essa é a luta mais difícil tanto no presente como para o futuro dos nossos povos. Ela é a expressão das contradições internas da realidade económica, social e cultural (portanto, histórica) de cada um dos nossos países. Estamos convencidos de que qualquer revolução, nacional ou social, que não tenha como base fundamental o conhecimento adequado dessa realidade, corre fortes riscos de insucesso, se não estiver votada ao fracasso.
AUSÊNCIA DE IDEOLOGIA
Quando o povo africano afirma na sua linguagem chã, que «por mais quente que seja a água da fonte, ela não coze o teu arroz», enuncia, com chocante simplicidade, um princípio fundamental não só da física como da ciência política. Sabemos com efeito que a orientação (o desenvolvimento) dum fenómeno em movimento, seja qual for o seu condicionamento exterior, depende principalmente das suas características internas. Sabemos também que, no plano político, por mais bela e atraente que seja a realidade dos outros, só poderemos transformar verdadeiramente a nossa própria realidade com base no seu conhecimento concreto e nos nossos esforços e sacrifícios próprios. Vale a pena lembrar nesta ambiência tricontinental, onde as experiências abundam e os exemplos não escasseiam, que, por maior que seja a similitude dos casos em presença e a identificação dos nossos inimigos, infelizmente ou felizmente, a libertação nacional e a revolução social não são mercadorias de exportação. São (e sê-lo-ão cada dia mais) um produto de elaboração local — nacional — mais ou menos influenciável pela acção dos factores exteriores (favoráveis e desfavoráveis), mas determinado e condicionado essencialmente pela realidade histórica de cada povo, e apenas assegurado pela vitória ou a resolução adequada das contradições internas de vária ordem que caracterizam essa realidade. O sucesso da revolução cubana, que se desenvolve apenas a 90 milhas da maior força imperialista e anti-socialista de todos os tempos, parece-nos ser, no seu conteúdo e na forma como tem evoluído, uma ilustração prática e convincente da validade do princípio acima referido.
Devemos, no entanto, reconhecer que nós próprios e os outros movimentos de libertação em geral (referimo-nos sobretudo à experiência africana) não temos sabido dar a devida atenção a este problema importante da nossa luta comum.
A deficiência ideológica, para não dizer a falta total de ideologia, por parte dos movimentos de libertação nacional — que tem a sua justificação de base na ignorância da realidade histórica que esses movimentos pretendem transformar — constituem uma das maiores senão a maior fraqueza da nossa luta contra o imperialismo. Cremos, no entanto, que já foram acumuladas experiências bastantes e suficientemente variadas para permitir a definição duma linha geral de pensamento e de acção visando eliminar essa, deficiência. Por isso, um amplo debate sobre essa matéria poderia ser de utilidade e permitir a esta Conferência dar uma contribuição valiosa para a melhoria da acção presente e futura dos movimentos de libertação nacional. Seria uma forma concreta de ajudar esses movimentos e, em nossa opinião, não menos importante do que os apoios políticos e as ajudas em dinheiro, armas e outro material.
É na intenção de contribuir, embora modestamente, para esse debate, que apresentamos aqui a nossa opinião sobre os fundamentos e objectivos da libertação nacional relacionados com a estrutura social. Essa opinião é ditada pela nossa própria experiência de luta e pela apreciação critica das experiências alheias. Àqueles que verão nela um carácter teórico, temos de lembrar que toda a prática fecunda uma teoria. E que, se é verdade que uma revolução pode falhar, mesmo que seja nutrida por teorias perfeitamente concebidas, ainda ninguém praticou vitoriosamente uma Revolução sem teoria revolucionária.
A LUTA DE CLASSES
Aqueles que afirmam — e quanto a nós com razão — que a força motora da história é a luta de classes, decerto estariam de acordo em rever esta afirmação, para precisá-la e dar-lhe até maior aplicabilidade, se conhecessem em maior profundidade as características essenciais de alguns povos colonizados (dominados pelo imperialismo). Com efeito, na evolução geral da humanidade e de cada um dos povos nos agrupamentos humanos que a constituem, as classes não surgem nem como um fenómeno generalizado e simultâneo na totalidade desses agrupamentos, nem como um todo acabado, perfeito, uniforme e espontâneo. A definição das classes no seio dum agrupamento ou de agrupamentos humanos resulta fundamentalmente do desenvolvimento progressivo das forças produtivas e das características da distribuição das riquezas produzidas por esse agrupamento ou usurpadas a outros agrupamentos. Quer dizer: o fenómeno socioeconómico da classe surge e desenvolve-se em função de pelo menos duas variáveis essenciais e interdependentes: o nível das forças produtivas e o regime de propriedade dos meios de produção.
Esse desenvolvimento opera-se lenta, desigual e gradualmente, por acréscimos quantitativos, em geral imperceptíveis, das variáveis essenciais, os quais conduzem, a partir de certo momento de acumulação, a transformações qualitativas que se traduzem no aparecimento da classe, das classes e do conflito entre classes.
Factores exteriores a um dado conjunto socioeconómico em movimento podem influenciar mais ou menos significativamente o processo de desenvolvimento das classes, acelerando-o, atrasando-o ou até provocando nele regressões. Logo que cesse, por qualquer razão, a influência desses factores, o processo retoma a sua independência, e o seu ritmo passa a ser determinado não só pelas características internas próprias do conjunto, mas também pelas resultantes do efeito sobre ele causado pela acção temporária dos factores externos. No plano estritamente interno, pode variar o ritmo do processo, mas ele permanece contínuo e progressivo, sendo os avanços bruscos só possíveis em função de aumentos ou alteração bruscas — mutações — no nível das forças produtivas ou no regime da propriedade. A estas transformações bruscas operadas no interior do processo de desenvolvimento das classes como resultado de mutações no nível das forças produtivas ou no regime de propriedade, convencionou-se chamar, em linguagem económica e política, revoluções.
Vê-se, por outro lado, que as possibilidades de esse processo ser influenciado significativamente por factores externos, em particular pela interacção de conjuntos humanos, foi grandemente aumentada pelo progresso dos meios de transporte e de comunicações que veio criar o mundo e a humanidade, eliminando o isolamento entre os agrupamentos humanos duma mesma região, entre regiões dum mesmo continente e entre os continentes. Progresso que caracteriza uma longa fase da história que começou com a invenção do primeiro meio de transporte, se evidenciou já nas viagens púnicas e na colonização grega e se acentuou com as descobertas marítimas, a invenção das máquinas a vapor e a descoberta da electricidade. E que promete, nos nossos dias, com base na domesticação progressiva da energia atómica, se não semear o homem pelas estrelas, pelo menos humanizar o universo.
O que foi dito permite-nos pôr a seguinte pergunta: será que a história só começa a partir do momento em que se desencadeia o fenómeno classe e, consequentemente, a luta de classes?
Responder pela afirmativa seria situar fora da história todo o período da vida dos agrupamentos humanos, que vai da descoberta da caça e, posteriormente, da agricultura nómada e sedentária à criação do gado e á apropriação privada da terra. Mas seria também — o que nos recusamos a aceitar — considerar que vários agrupamentos humanos da África, Ásia e América Latina viviam sem história ou fora da história no momento em que foram submetidos ao jugo do imperialismo.
Seria considerar que populações dos nossos países, como os Balantas da Guiné, os Cuanhamas de Angola e os Macondes de Moçambique, vivem ainda hoje, se nos abstrairmos das muito ligeiras influências do colonialismo a que foram submetidas, fora da história ou não têm história.
Esta recusa, aliás baseada no conhecimento concreto da realidade socioeconómica dos nossos países e na análise do processo de desenvolvimento do fenómeno classe tal como foi feita acima, leva-nos a admitir que, se a luta de classes é a força motora da história, ela é-o durante um certo período da história. Isto quer dizer que antes da luta de classes (e, necessariamente, depois da luta de classes, porque neste mundo não há antes sem depois) algum factor (ou alguns factores) foi e será o motor da história. Não nos repugna admitir que esse factor da história de cada agrupamento humano é o modo de produção (o nível das forças produtivas e o regime de propriedade) que caracteriza esse agrupamento. Mas, como se viu, a definição da classe e a luta de classes são, elas mesmas, um efeito do desenvolvimento das forças produtivas conjugado com o regime da propriedade dos meios de produção. Parece-nos portanto lícito concluir que o nível das forças produtivas, determinante essencial do conteúdo e da forma da luta de classes, é a verdadeira e a permanente força motora da história.
Se aceitarmos essa conclusão, então ficam eliminadas as dúvidas que perturbam o nosso espírito.
Porque, se por um lado vemos garantida a existência da história antes da luta de classes e evitamos a alguns agrupamentos humanos dos nossos países (e quiçá dos nossos continentes) a triste condição de povos sem história, vemos assegurada, por outro lado, a continuidade da história mesmo depois do desaparecimento da luta de classes ou das classes. E como não fomos nós que postulámos, aliás em bases científicas, o desaparecimento das classes como uma fatalidade na história, sentimo-nos bem nesta conclusão que, em certa medida, restabelece uma coerência e dá simultaneamente aos povos que, como o de Cuba, estão a construir o socialismo, a agradável certeza de que não ficarão sem história quando finalizarem o processo da liquidação do fenómeno classe e da luta de classes no seio do seu conjunto socioeconómico. A eternidade não é coisa deste mundo, mas o homem sobreviverá às classes e continuará a produzir e a fazer história, porque não pode libertar-se do fardo das suas necessidades, das suas mãos e do seu cérebro, que estão na base do desenvolvimento das forças produtivas.
SOBRE O MODO DE PRODUÇÃO
O que fica dito e a realidade actual do nosso tempo permite-nos admitir que a história dum agrupamento humano ou da humanidade se processa em pelo menos três fases: a primeira, em que, correspondendo a um baixo nível das forças produtivas — do domínio do homem sobre a natureza — o modo de produção tem carácter elementar, não existe ainda a apropriação privada dos meios de produção, não há classes, nem, portanto, luta de classes; a segunda, em que a elevação do nível das forças produtivas conduz à apropriação privada dos meios de produção, complica progressivamente o modo de produção, provoca conflitos de interesses no seio do conjunto socioeconómico em movimento, possibilita a erupção do fenómeno classe e, portanto, a luta de classes, que é a expressão social da contradição, no domínio económico, entre o modo de produção e a apropriação privada dos meios de produção; a terceira em que, a partir dum dado nível das forças produtivas, se toma possível e se realiza a liquidação da apropriação privada dos meios de produção, a eliminação do fenómeno classe e, portanto, da luta de classes, e se desencadeiam novas e ignoradas forças no processo histórico do conjunto socioeconómico.
A primeira fase corresponderia, em linguagem político-económica, à sociedade agro-pecuária comunitária, em que a estrutura social é horizontal, sem Estado; a segunda, às sociedades agrárias (feudal ou assimilada e agro-industrial burguesa, em que a estrutura social se desenvolve na vertical, com Estado; a terceira, às sociedades socialistas e comunistas em que a economia é predominantemente, senão exclusivamente, industrial (porque a própria agricultura passa a ser uma indústria), em que o Estado tende progressivamente para o desaparecimento ou desaparece, e em que a estrutura social volta a desenvolver-se na horizontal, a um nível superior de forças produtivas, de relações sociais e de apreciação dos valores humanos.
Ao nível da humanidade ou de parcelas da humanidade (agrupamentos humanos duma mesma região ou de um ou mais continentes), essas três fases (ou duas delas) podem ser concomitantes, como o provam tanto a realidade actual como o passado. Isso resulta do desenvolvimento desigual das sociedades humanas, quer por razões internas quer pela influência aceleradora ou retardadora de algum ou alguns factores externos sobre a sua evolução. Por outro lado, no processo histórico dum dado conjunto socioeconómico, cada uma das fases referidas contem, a partir de um certo nível de transformação, os germens da fase seguinte.
Devemos notar também que, na fase actual da vida da humanidade e para um dado conjunto socioeconómico, não é indispensável a sucessão no tempo das três fases caracterizadas. Qualquer que seja o nível actual das suas forças produtivas e da estrutura social que a caracteriza, uma sociedade pode avançar rapidamente, através de etapas definidas e adequadas às realidades concretas locais (históricas e humanas),para uma fase superior de existência. Tal avanço depende das possibilidades concretas de desenvolver as suas forças produtivas e é condicionado principalmente pela natureza do poder político que dirige essa sociedade, quer dizer, pelo tipo de Estado ou, se quisermos, pela natureza da classe ou classes dominantes no seio dessa sociedade.
Uma análise mais pormenorizada mostrar-nos-ia que a possibilidade dum tal salto no processo histórico resulta fundamentalmente, no plano económico, da força dos meios de que o homem pode dispor na actualidade para dominar a natureza e, no plano político, deste acontecimento novo que transformou radicalmente a face do mundo e a marcha da história — a criação dos Estados socialistas.
Vemos, portanto, que os nossos povos, sejam quais forem os seus estádios de desenvolvimento económico, têm a sua própria história. Ao serem submetidos à dominação imperialista, o processo histórico de cada um dos nossos povos (ou o dos agrupamentos humanos que constituem cada um deles) foi sujeito à acção violenta dum factor exterior. Essa acção — o impacto do imperialismo sobre as nossas sociedades — não podia deixar de influenciar o processo de desenvolvimento das forças produtivas dos nossos países e as estruturas sociais dos nossos povos, assim como o conteúdo e a forma das nossas lutas de libertação nacional.
Mas vemos também que, no contexto histórico em que se desenvolvem essas lutas, existe para os nossos povos a possibilidade concreta de passarem da situação de exploração e de subdesenvolvimento em que se encontram, para uma nova fase do seu processo histórico, a qual pode conduzi-los a uma forma superior de existência económica social e cultural.
O IMPERIALISMO
O relatório político elaborado pelo Comité Internacional Preparatório desta Conferência, ao qual reafirmamos o nosso inteiro apoio, situou, de maneira clara e numa análise sucinta, o imperialismo no seu contexto económico e nas suas coordenadas históricas. Não vamos aqui repetir o que já foi dito perante esta Assembleia. Diremos apenas que o imperialismo pode ser definido como a expressão mundial da procura gananciosa e da obtenção de cada vez maiores mais-valias pelo capital monopolista e financeiro, acumulado em duas regiões do mundo: primeiro na Europa e, mais tarde, na América do Norte. E, se queremos situar o facto imperialista na trajectória geral da evolução deste factor transcendente que modificou a face do mundo — o capital e os processo da sua acumulação — poderíamos dizer que o imperialismo é a pirataria transplantada dos mares para a terra firme, reorganizada, consolidada e adaptada ao objectivo da espoliação dos recursos materiais e humanos dos nossos povos. Mas se formos capazes de analisar com serenidade o fenómeno imperialista, não escandalizaremos ninguém ao termos de reconhecer que o imperialismo — que tudo mostra ser na realidade a fase última da evolução do capitalismo — foi uma necessidade da história, uma consequência do desenvolvimento das forças produtivas e das transformações do modo de produção, no âmbito geral da humanidade, considerada como um todo em movimento. Uma necessidade, como o são no presente a libertação nacional dos povos, a destruição do capitalismo e o advento do socialismo.
O que importa aos nossos povos é saber se o imperialismo, na sua condição de capital em acção, cumpriu ou não nos nossos países a missão histórica reservada a este: aceleração do processo do desenvolvimento das forças produtivas e transformação, no sentido da complexidade, das características do modo de produção; aprofundamento da diferenciação das classes com o desenvolvimento da burguesia e intensificação da luta de classes; aumento significativo do standard geral médio do nível de vida económica, social e cultural das populações. Interessa além disso averiguar quais as influências ou efeitos da acção imperialista sobre as estruturas sociais e o processo histórico dos nossos povos.
Não vamos fazer aqui o balanço condenatório nem a elegia do imperialismo, mas diremos apenas que, quer no plano económico, quer nos planos social e cultural, o capital imperialista ficou longe de cumprir nos nossos países a missão histórica desempenhada pelo capital nos países de acumulação. Isso implica que, se, por um lado, o capital imperialista teve na grande maioria dos países dominados a simples função de multiplicador de mais-valias, constata-se, por outro lado, que a capacidade histórica do capital (como acelerador indestrutível do processo de desenvolvimento das forças produtivas) está estritamente dependente da sua liberdade, quer dizer, do grau de independência com que é utilizado. Devemos, no entanto, reconhecer que em alguns casos o capital imperialista ou capitalismo moribundo teve interesse, força e tempo bastante para, além de edificar cidades, aumentar o nível das forças produtivas, permitir a uma minoria da população nativa um standard de vida melhor ou até privilegiado, contribuindo assim, em processo que alguns chamariam dialéctico, para o aprofundamento das contradições no seio das sociedades em causa. Noutros casos ainda, mais raros, houve a possibilidade de acumulação do capital, dando lugar ao desenvolvimento duma burguesia local.
No que se refere aos efeitos da dominação imperialista sobre a estrutura social e o processo histórico dos nossos povos, convém averiguar em primeiro lugar quais são as formas gerais de dominação, do imperialismo. Elas são pelo menos duas:
1.°) Dominação directa—por meio de um poder político integrado por agentes estrangeiros ao povo dominado (forças armadas, polícia, agentes da administração e colonos) — à qual se convencionou chamar colonialismo clássico ou colonialismo.
2.°) Dominação indirecta — por meio dum poder político integrado na sua maioria ou na totalidade por agentes nativos — à qual se convencionou chamar neocolonialismo.
No primeiro caso, a estrutura social do povo dominado, seja qual for a etapa em que se encontra, pode sofrer os seguintes efeitos:
a) destruição completa, acompanhada em geral da liquidação imediata ou progressiva da população autóctone e consequente substituição desta por uma população exótica;
b) destruição parcial, em geral acompanhada da fixação mais ou menos volumosa de uma população exótica;
c) conservação aparente, condicionada pela confinação da sociedade autóctone a áreas ou reservas próprias e geralmente desprovidas de possibilidades de vida, acompanhada da implantação massiva de uma população exótica.
Os dois últimos casos, que são os que interessa considerar no quadro da problemática da libertação nacional, estão bem representados em África. Pode-se afirmar que, em qualquer deles, o efeito principal provocado pelo impacto do imperialismo no processo histórico do povo dominado é a paralisia, a estagnação (mesmo, em alguns casos, a regressão) desse processo. Essa paralisia não é, no entanto, completa. Num ou noutro sector do conjunto socioeconómico em causa podem operar-se transformações sensíveis, quer motivadas pela permanência da acção de alguns factores internos (locais), quer resultantes da acção de novos factores introduzidos pela dominação colonial, tais como o ciclo da moeda e o desenvolvimento das concentrações urbanas.
Entre essas transformações, convém referir a perda progressiva, em certos casos, do prestígio das classes ou camadas dirigentes nativas, o êxodo, forçado ou voluntário, duma parte da população camponesa para os centros urbanos, com consequente desenvolvimento de novas camadas sociais: trabalhadores assalariados, empregados do Estado, do comércio e profissões liberais, e uma camada instável dos sem trabalho. No campo, surge com intensidade muito variada e sempre ligada ao meio urbano, uma camada constituída por pequenos proprietários agrícolas. No caso do chamado neocolonialismo, quer a maioria da população colonizada seja autóctone, quer ela seja originariamente exótica, a acção imperialista orienta-se no sentido da criação duma burguesia ou pseudo-burguesia local, enfeudada à classe dirigente do país dominador.
As transformações na estrutura social não são tão profundas nas camadas inferiores, sobretudo no campo, onde ela conserva predominantemente as características da fase colonial, mas a criação duma pseudo-burguesia nativa, que em geral se desenvolve a partir de uma pequena burguesia burocrática e dos intermediários do ciclo das mercadorias (compradores), acentua a diferenciação das camadas sociais, abre, pelo reforço da actividade económica de elementos nativos, novas perspectivas à dinâmica social, nomeadamente com o desenvolvimento progressivo duma classe operária citadina e a instalação de propriedades agrícolas privadas, que dão lugar, a pouco e pouco, ao aparecimento dum proletariado agrícola. Essas transformações mais ou menos sensíveis da estrutura social, determinadas aliás por um aumento significativo do nível das forças produtivas, tem influência directa no processo histórico do conjunto socioeconómico em causa.
Enquanto no colonialismo clássico esse processo é paralisado, a dominação neocolonialista, permitindo o despertar da dinâmica social — dos conflitos de interesse entre as camadas sociais nativas ou da luta de classes — cria a ilusão de que o processo histórico volta á sua evolução normal. Essa ilusão é reforçada pela existência dum poder político (Estado nacional), integrado por elementos nativos. Apenas uma ilusão, porque, na realidade, o enfeudamento da classe «dirigente» nativa à classe dirigente do país dominador, limita ou inibe o pleno desenvolvimento das forças produtivas nacionais. Mas, nas condições concretas da economia mundial do nosso tempo, esse enfeudamento é uma fatalidade, e, portanto, a pseudo-burguesia nativa, seja qual for o seu grau de nacionalismo, não pode desempenhar efectivamente a função histórica que caberia a essa classe, não pode orientar livremente o desenvolvimento das forças produtivas, em suma, não pode ser uma burguesia nacional. Ora, como se viu, as forças produtivas são o motor da história, e a liberdade total do processo do seu desenvolvimento é a condição indispensável para o pleno funcionamento desse motor.
Vê-se, portanto, que tanto no colonialismo como no neocolonialismo, permanece a característica essencial de dominação imperialista — a negação do processo histórico do povo dominado, por meio da usurpação violenta da liberdade do processo de desenvolvimento das forças produtivas nacionais. Essa constatação, que identifica, na sua essência, as duas formas aparentes da dominação imperialista, parece-nos ser de importância primordial para o pensamento e a acção dos movimentos de libertação nacional, tanto no decorrer da luta como após a conquista da independência.
Com base no que fica dito, podemos afirmar que a libertação nacional é o fenómeno que consiste em um conjunto socioeconómico negar a negação do seu processo histórico. Em outros termos, a libertação nacional dum povo é a reconquista da personalidade histórica desse povo, é o seu regresso à história, pela destruição da dominação imperialista a que esteve sujeito.
Ora vimos que a característica principal e permanente da dominação imperialista, qualquer que seja a sua forma, é a usurpação pela violência da liberdade do processo de desenvolvimento das forças produtivas do conjunto socioeconómico dominado. Vimos também que é essa liberdade e só ela que garante a normalização do processo histórico dum povo. Podemos portanto concluir que há libertação nacional quando e só quando as forças produtivas nacionais são completamente libertadas de toda e qualquer espécie de dominação estrangeira.
Costuma-se dizer que a libertação nacional se fundamenta no direito, comum a todos os povos, de dispor livremente do seu destino e que o objectivo dessa libertação é a obtenção da independência nacional. Embora estejamos de acordo com essa maneira vaga e subjectiva de exprimir uma realidade complexa, preferimos ser objectivos. Para nós, o fundamento da libertação nacional, sejam quais forem as formulações adoptadas no plano jurídico internacional, reside no direito inalienável de cada povo a ter a sua própria história; e o objectivo da libertação nacional é a reconquista desse direito usurpado pelo imperialismo, isto é, a libertação do processo de desenvolvimento das forças produtivas nacionais.
Por isso, em nossa opinião, qualquer movimento de libertação nacional que não tem em consideração esse fundamento e esse objectivo, pode lutar contra o imperialismo, mas não estará seguramente lutando pela libertação nacional.
Isso implica que, tendo em conta as características essenciais da economia mundial do nosso tempo, assim como as experiências já vividas no domínio da luta anti-imperialista, o aspecto principal da luta de libertação nacional é a luta, contra o que se convencionou chamar neocolonialismo. Por outro lado, se considerarmos que a libertação nacional exige uma mutação profunda no processo de desenvolvimento das forças produtivas, vemos que o fenómeno da libertação nacional corresponde necessariamente a uma revolução. O que importa é ter consciência das condições objectivas e subjectivas em que se opera essa revolução, e quais as formas ou a forma de luta mais adequada para a sua efectivação.
Não vamos repetir aqui que essas condições são francamente favoráveis na presente etapa da história da humanidade. Queremos apenas lembrar que existem também factores desfavoráveis, tanto no plano internacional como no plano interno de cada nação em luta pela sua libertação.
No plano internacional, parece-nos que pelo menos os seguintes factores são desfavoráveis ao movimento de libertação nacional: a situação neocolonial dum grande número de Estados que conquistaram a independência política, vindo a juntar-se a outros que já viviam nessa situação; os progressos realizados pelo neocolonialismo, nomeadamente na Europa, onde o imperialismo, com recurso a investimentos preferenciais, incentiva o desenvolvimento dum proletariado privilegiado com consequente abaixamento do nível revolucionário das classes trabalhadoras; a situação neocolonial, evidente ou encoberta, de alguns Estados europeus que, como Portugal, têm ainda colónias; a chamada política de «ajuda» aos países subdesenvolvidos praticada pelo imperialismo com o objectivo de criar ou reforçar pseudo-burguesias nativas, necessariamente enfeudadas à burguesia internacional, e de barrar assim o caminho à revolução; a claustrofobia e a timidez revolucionária que levam alguns Estados recentemente independentes, dispondo de condições económicas e políticas interiores favoráveis à revolução, a aceitarem compromissos com o inimigo ou com os seus agentes; as contradições crescentes entre Estados anti-imperialistas e, finalmente, as ameaças, por parte do imperialismo, à paz mundial, face à perspectiva duma guerra atómica. Esses factores concorrem para reforçar a acção do imperialismo contra o movimento de libertação nacional.
Se a intervenção repetida e a agressividade crescente do imperialismo contra os povos podem ser interpretadas como um sinal de desespero diante da amplidão do movimento de libertação nacional, justificam-se, em certa medida, pelas debilidades criadas por esses factores desfavoráveis na frente geral da luta anti-imperialista.
No plano interno, parece-nos que a fraqueza ou os factores desfavoráveis mais significativos residem na estrutura económico-social e nas tendências da sua evolução sob a pressão imperialista, ou melhor, na pequena ou nula atenção dada às características dessa estrutura e às tendências pelos movimentos de libertação nacional na elaboração das suas estratégias de luta.
Este ponto de vista não pretende diminuir a importância de outros factores internos desfavoráveis à libertação nacional, tais como o subdesenvolvimento económico, com consequente atraso social e cultural das massas populares, o tribalismo e outras contradições menores. Convém no entanto notar que a existência de tribos só se manifesta como uma contradição significativa em função de atitudes oportunistas (geralmente provenientes de indivíduos ou grupos destribalizados) no seio do movimento de libertação nacional. As contradições entre classes, mesmo quando estas são embrionárias, são bem mais importantes do que as contradições entre tribos.
Embora a situação colonial e a neocolonial sejam idênticas na sua essência, e o aspecto principal da luta contra o imperialismo seja o neocolonialista, parece-nos indispensável distinguir, na prática, essas duas situações. Com efeito, a estrutura horizontal, ainda que mais ou menos diferenciada, da sociedade nativa, e a ausência dum poder político integrado por elementos nacionais, possibilitam, na situação colonial, a criação duma ampla frente de unidade e de luta, aliás indispensável, para o sucesso do movimento de libertação nacional. Mas essa possibilidade não dispensa a análise rigorosa da estrutura social indígena, das tendências da sua evolução e a adopção, na prática, de medidas adequadas para garantir uma verdadeira libertação nacional.
Entre essas medidas, embora admitamos que cada um sabe melhor o que deve fazer em sua casa, parece-nos ser indispensável a criação duma vanguarda solidamente unida e consciente do verdadeiro significado e objectivo da luta de libertação nacional, que deve por ela ser dirigida.
Esta necessidade tem tanto maior acuidade quanto é certo que, salvo em raras excepções, a situação colonial não permite nem solicita a existência significativa de classes de vanguarda (classe operária consciente de si a proletariado rural) que poderiam garantir a vigilância das massas populares sobre a evolução do movimento de libertação. Contrariamente, o carácter geralmente embrionário das classes trabalhadoras e a situação económica, social e cultural da força física maior da luta de libertação nacional — os camponeses — não permitem a estas duas forças principais dessa luta distinguir de per si a verdadeira independência nacional da fictícia independência política. Só uma vanguarda revolucionária, geralmente uma minoria activa, pode consciencializar ab initio essa diferença e levá-la, através da luta, à consciência das massas populares. Isso explica o carácter fundamentalmente político da luta de libertação nacional e dá, em certa medida, a importância da forma de luta no desfecho final do fenómeno da libertação nacional.
Já na situação neocolonial, a estruturação, mais ou menos acentuada, da sociedade nativa na vertical, e a existência dum poder político integrado por elementos nativos — Estado nacional — agravam as contradições no seio dessa sociedade e tornam difícil, se não impossível, a criação duma frente unida tão ampla como no caso colonial. Por um lado, os efeitos materiais (principalmente a nacionalização dos quadros e o aumento da iniciativa económica do nativo, em particular no plano comercial) e psíquicos (orgulho de se julgar dirigido pelos próprios compatriotas, exploração da solidariedade de ordem religiosa ou tribal entre alguns dirigentes e uma fracção das massas populares) contribuem para desmobilizar uma parte considerável das forças nacionalistas. Mas, por outro lado, o carácter necessariamente repressivo do Estado neocolonial contra as forças de libertação nacional, o agravamento das contradições de classe, a permanência objectiva de agentes e de sinais de dominação estrangeira (colonos que conservam os seus privilégios, forças armadas, discriminação racial), a crescente pauperização do campesinato e a influência mais ou menos notória de factores exteriores, contribuem para manter acesa a chama do nacionalismo, consciencializar progressivamente largas camadas populacionais e reunir, precisamente com base na consciência da frustração neocolonialista, a maioria da população em torno do ideal da libertação nacional.
Além disso, enquanto a classe dirigente nativa se «emburguesa» cada vez mais, o desenvolvimento duma classe trabalhadora integrada por operários citadinos e por proletários agrícolas — todos explorados pela dominação indirecta do imperialismo, abre perspectivas novas à evolução da libertação nacional. Essa classe trabalhadora, qualquer que seja o grau de desenvolvimento da sua consciência política (para além dum limite mínimo que é a consciência das suas necessidades), parece constituir a verdadeira vanguarda popular da luta de libertação nacional no caso neocolonial. Ela não poderá, no entanto, realizar completamente a sua missão no quadro dessa luta (que não acaba com a conquista da independência) se não se aliar solidamente com as outras camadas exploradas: os camponeses em geral (servos, rendeiros, parceiros, pequenos proprietários agrícolas) e a pequena burguesia nacionalista. A realização dessa aliança exige a mobilização e a organização das forças nacionalistas no quadro (ou pela acção) duma organização política forte e bem estruturada.
Outra distinção importante a fazer entre a situação colonial e a neocolonial reside nas perspectivas da luta.
O caso colonial (em que a nação classe se bate contra as forças de repressão da burguesia do país colonizador) pode conduzir, pelo menos aparentemente, a uma solução nacionalista (revolução nacional): — a nação conquista a sua independência e adopta, em hipótese, a estrutura económica que bem lhe apetece. O caso neocolonial (em que as classes trabalhadoras e os seus aliados se batem simultaneamente contra a burguesia imperialista e a classe dirigente nativa) não é resolvido através uma solução nacionalista exige a destruição da estrutura capitalista implantada pelo imperialismo no solo nacional e postula, justamente, uma solução socialista.
Esta distinção resulta principalmente da diferença dos níveis das forças produtivas nos dois casos e do consequente aprofundamento da luta de classes.
Não seria difícil demonstrar que, no tempo, essa distinção é apenas aparente. Basta lembrar que, nas condições históricas actuais — liquidação do imperialismo que lança mão de todos os meios para perpetuar a sua dominação sobre os nossos povos, e consolidação do socialismo sobre uma parte considerável do globo — só duas vias são possíveis para uma nação independente: voltar à dominação imperialista (neocolonialismo, capitalismo, capitalismo de Estado) ou adoptar a via socialista. Esta opção, de que depende a compensação dos esforços e sacrifícios pelas massas populares no decurso da luta, é fortemente influenciada pela forma de luta e pelo grau de consciência revolucionária daqueles que a dirigem.
O PAPEL DA VIOLÊNCIA
Os factos dispensam-nos de usar palavras para provar que o instrumento essencial da dominação imperialista é a violência. Se aceitarmos o princípio de que a luta de libertação nacional é uma revolução, e que ela não acaba no momento em que se iça a bandeira e se toca o hino nacional, veremos que não há nem pode haver libertação nacional sem o uso da violência libertadora, por parte das forças nacionalistas, para responder à violência criminosa dos agentes do imperialismo.
Ninguém duvida de que, sejam quais forem as suas características locais, a dominação imperialista implica um estado de permanente violência contra as forças nacionalistas. Não há povo no mundo que, tendo sido submetido ao jugo imperialista (colonialista ou neocolonialista) tenha conquistado a sua independência (nominal ou efectiva) sem vítimas. O que importa é determinar quais as formas de violência que devem ser utilizadas pelas forças de libertação nacional, para não só responderem à violência do imperialismo mas também para garantirem, através da luta, a vitória final da sua causa, isto é, a verdadeira independência nacional.
As experiências, passadas e recentes, vividas por alguns povos; a situação actual da luta de libertação nacional no mundo (em especial nos casos do Vietname, do Congo e do Zimbabwe); assim como a própria situação de violência permanente ou, quando menos, de contradições e sobressaltos, em que se encontram alguns países que conquistaram a independência pela via chamada pacífica, mostram-nos que não só os compromissos com o imperialismo são contraproducentes, mas também que a via normal da libertação nacional, imposta aos povos pela repressão imperialista, é a luta armada.
Cremos que não escandalizaremos esta Assembleia ao afirmarmos que a única via eficaz para a realização cabal e definitiva das aspirações dos povos à libertação nacional — é a luta armada.
Esta é a grande lição que a história recente e actual de libertação ensina a todos aqueles que estão verdadeiramente empenhados na libertação nacional dos seus povos.
SOBRE A PEQUENA BURGUESIA
Evidentemente, tanto a eficácia dessa via como a estabilidade da situação a que ela conduz, depois da libertação, dependem não só das características da organização da luta, mas também da consciência política e moral daqueles que, por razões históricas, estão em condições de ser os herdeiros imediatos do Estado colonial ou neocolonial. Ora os factos têm demonstrado que a única camada social capaz, tanto de consciencializar em primeiro lugar a realidade da dominação imperialista, como de manipular o aparelho do Estado, herdado dessa dominação, é a pequena burguesia nativa. Se tivermos em conta as características aleatórias, a complexidade e as tendências naturais inerentes à situação económica dessa camada social ou classe, vemos que esta fatalidade específica da nossa situação é mais uma das fraquezas do movimento de libertação nacional.
A situação colonial, que não consente o desenvolvimento duma pseudo-burguesia nativa e na qual as massas populares não atingem, em geral, o necessário grau de consciência política antes do desencadeamento do fenómeno da libertação nacional, dá à pequena burguesia a oportunidade histórica de dirigir a luta contra a dominação estrangeira, em virtude de ser, pela sua situação objectiva e subjectiva (nível de vida superior ao das massas, contactos mais frequentes com os agentes do colonialismo, portanto, maior frequência de humilhações, maior grau de instrução e de cultura , política, etc.), a camada que mais cedo realiza a consciência da necessidade de se desembaraçar da dominação estrangeira. Assume esta responsabilidade histórica o sector da pequena burguesia a que, no contexto colonial, se poderia chamar revolucionária, enquanto os outros sectores permanecem na hesitação característica dessa classe ou se aliam ao colonialista, para defender, embora ilusoriamente, a sua situação social.
A situação neocolonial, que postula a liquidação da pseudo-burguesia nativa para que se consume a libertação nacional, também dá à pequena burguesia a oportunidade de desempenhar um papel de relevo — mesmo decisivo — na luta pela liquidação estrangeira.
Mas, neste caso, em virtude dos progressos relativos realizados na estrutura social, a função de direcção da luta é compartilhada, em maior ou menor grau, com os sectores mais esclarecidos das classes trabalhadoras e até com alguns elementos da pseudo-burguesia nacional, dominados pelo sentimento patriótico. O papel do sector da pequena burguesia que participa na direcção da luta é tanto mais importante quanto é certo que, também na situação neocolonial, ela está mais apta a assumir essas funções, quer pelas limitações económicas e culturais das massas trabalhadoras, quer pelos complexos e limitações de natureza ideológica que caracterizam o sector da pseudoburguesia nacional que adere à luta. Neste caso ainda, importa salientar que a missão que lhe está confiada exige a esse sector da pequena burguesia uma maior consciência revolucionária, a capacidade de interpretar fielmente as aspirações das massas em cada fase da luta e de se identificar com elas cada vez mais.
Mas, por maior que seja o grau de consciência revolucionária do sector da pequena burguesia chamada a desempenhar essa função histórica, ela não pode libertar-se desta realidade objectiva: a pequena burguesia, como classe de serviços, quer dizer, não directamente incluída no processo da produção, não dispõe de bases económicas que lhe garantam a tomada do poder. Com efeito, a história demonstra que, qualquer que seja o papel (muitas vezes de importância) desempenhado por indivíduos originários da pequena burguesia no processo duma revolução, essa classe nunca esteve na posse do poder político. E não poderia estar, porque o poder político (o Estado) tem os seus alicerces na capacidade económica da classe dirigente e, nas condições da sociedade colonial e neocolonial, essa capacidade está detida nas mãos de duas entidades: o capital imperialista e as classes trabalhadoras nativas.
Para manter o poder que a libertação nacional põe nas suas mãos, a pequena burguesia só tem um caminho: deixar agir livremente as suas tendências naturais de emburguesamento, permitir o desenvolvimento duma burguesia burocrática e de intermediários do ciclo das mercadorias, transformar-se em pseudo-burguesia nacional, isto é, negar a revolução e enfeudar-se necessariamente ao capital imperialista. Ora isso corresponde à situação neocolonial, quer dizer, à traição dos objectivos da libertação nacional. Para não trair esses objectivos, a pequena burguesia só tem um caminho: reforçar a sua consciência revolucionária, repudiar as tentações de emburguesamento e as solicitações naturais da sua mentalidade de classe, identificar-se com as classes trabalhadoras, não se opor ao desenvolvimento normal do processo da revolução. Isso significa que, para desempenhar cabalmente o papel que lhe cabe na luta de libertação nacional, a pequena burguesia revolucionária deve ser capaz de suicidar-se como classe, para ressuscitar na condição de trabalhador revolucionário, inteiramente identificado com as aspirações mais profundas do povo a que pertence.
Essa alternativa — trair a revolução ou suicidar-se como classe — constitui o dilema da pequena burguesia no quadro geral da luta de libertação nacional. A sua solução positiva, em favor da revolução, depende daquilo a que, ainda recentemente, Fidel Castro chamou, com propriedade, desenvolvimento da consciência revolucionária. Essa dependência atrai necessariamente a nossa atenção sobre a capacidade do dirigente da luta de libertação nacional de se manter fiel aos princípios e à causa fundamental dessa luta. Isso revela, em certa medida, que se a libertação nacional é essencialmente um problema político, as condições do seu desenvolvimento imprimem-lhe algumas características que são do âmbito da moral.
Esta é a modesta contribuição que, em nome das organizações nacionalistas dos países africanos ainda parcialmente ou totalmente dominados pelo colonialismo português, entendemos dever trazer ao debate geral desta Assembleia. Solidamente unidos no seio da nossa organização multi nacional — a CONCP — estamos determinados a manter-nos fieis aos interesses e às justas aspirações dos nossos povos, quaisquer que sejam as nossas origens nas sociedades a que pertencemos. A vigilância em relação a essa fidelidade é, aliás, um dos objectivos principais da nossa organização, no interesse dos nossos povos, da África e da Humanidade em luta contra o imperialismo. Por isso nos batemos já, de armas nas mãos, contra as forças colonialistas portuguesas, em Angola, na Guiné e em Moçambique, e estamos a preparar-nos para fazer o mesmo em Cabo Verde e em São Tomé e Príncipe. Por isso dedicamos a maior atenção ao trabalho político no seio dos nossos povos, melhorando e reforçando cada dia as nossas organizações nacionais, na direcção das quais se encontram representados todos os sectores da nossa sociedade. Por isso nos mantemos vigilantes contra nós mesmos e procuramos, na base do conhecimento concreto das nossas forças e das nossas fraquezas, reforçar aquelas e transformar estas em forças, pelo desenvolvimento constante da nossa consciência revolucionária. Por isso estamos em Cuba, presentes a esta Conferência.
Não daremos vivas nem proclamaremos aqui a nossa solidariedade para com este ou aquele povo em luta. A nossa presença é um grito de condenação do imperialismo e uma prova de solidariedade para com todos os povos que querem varrer das suas pátrias o jugo imperialista, em particular com o heróico povo do Vietname. Mas cremos firmemente que a melhor prova que poderemos dar de que somos contra o imperialismo e activamente solidários para com os nossos companheiros, nesta luta comum, consiste em regressar aos nossos países, desenvolver cada dia mais a luta e mantermo-nos fiéis aos princípios e objectivos da libertação nacional.
Fazemos votos para que cada movimento de libertação nacional aqui presente possa, com armas nas mãos, repetir no seu país, em uníssono com o seu povo, o grito já legendário do Povo de Cuba: PATRIA O MUERTE, VENCEREMOS!
Morte para as forças imperialistas!
Pátria livre, próspera e feliz para cada um dos nossos povos!
VENCEREMOS!