HOMENAGEM A VITAL PEREIRA INCOPTÉ

Uma foto recordação tirada no Seminário Diocesano de Bissau, em Março de 1987, quando, adolescentes, representávamos uma peça de teatro bíblico (da esquerda para a direita: Tôchico com um tigelinha, o Vital ao fundo de calções brancos, eu de calças castanhas a cantar e o Walter).

 

 

Ismael Mendes de Medina

Dr. Ismael Mendes de Medina

ismaelmm71@hotmail.com

11.08.2009

Caro Didinho,

Chamo-me Ismael Mendes de Medina, sou um frequentador assíduo do espaço Contributo desde a sua fundação, pelo que desde já, antes de mais, dou-lhe os meus parabéns por tudo que tem feito, através do seu site, e não só, pela nossa Guiné-Bissau.

Sou advogado, Licenciado pela Faculdade de Direito de Lisboa da Universidade “Clássica” de Lisboa e inscrito nas Ordens profissionais de Advogados de Portugal e Guiné-Bissau. Regressei ao nosso país há dois anos, depois de quase duas décadas em Portugal, com a finalidade de dar o meu contributo no processo de desenvolvimento localmente.

O motivo deste meu e-mail é para agradecer ao Didinho o espaço que dedicou para denunciar o bárbaro assassinato do Vital Pereira Incopté e também aproveitar para lhe contar o que eu conheço do malogrado. Esta minha atitude não é despropositada dado que estão a correr rumores e especulações (unicamente para desinformar e desviar atenções) no sentido de associar o Vital à marginalidade. NÃO POSSO ACEITAR ISSO, FICANDO CALADO.

No dia 7 (sete) de Setembro de 1986, o Vital proveniente da Paróquia do Cristo Redentor de Bissau, eu Ismael (Imass para os colegas do Seminário) e o Tôchico vindos da Paróquia de S. José de Bolama, o Walter, Gentil e Carlos Camnaté (Uká para os amigos) da Paróquia do Bairro d’Ajuda em Bissau, o Júlio Azevedo e Bernardo da Cunha Cumbá vindos de Safim, entramos para o Seminário Diocesano de Bissau, cujo Reitor era o Pe. Guerrino Vitali, com a finalidade de seguirmos para o sacerdócio. Do nosso grupo, só o Bernardo atingiu o objectivo de ser padre católico.

O Vital era mais velho que eu 1 ano e quatro meses (ele é de Abril de 1970 e eu de Setembro de 1971). No nosso primeiro ano de seminário (eu com 15 e ele com 16 anos) eu era o mais novo da casa (o codé) e o Vital vinha logo a seguir. Nunca fomos colegas de carteira, dado que quando entramos para o seminário o Vital estava no 7.º ano e eu no 9.º ano de escolaridade, mas conhecia as suas façanhas escolares.

No seminário, diferentemente de qualquer instituição onde as pessoas vivem em comunidade, somos ensinados desde o princípio a viver como irmãos, ou seja, amando-nos uns aos outros como Jesus nos amou. Mesmo não seguindo depois para o sacerdócio a finalidade seria e é sempre a formação do homem íntegro e católico, com elevados valores ético-morais e sentido de humanismo. O Vital tinha tudo isso. Estivemos juntos no seminário durante 3 (três) anos, 1986-1989, depois eu saí da instituição e fui continuar os meus estudos em Portugal, e ele continuou mais uns anos, até concluir o liceu.

Durante o período que passamos juntos no seminário o Vital teve sempre um comportamento irrepreensível, tanto na escola (actual Liceu João XXIII, em Bissau) como no seminário propriamente dito. Não me lembro de uma única vez sequer que ele tenha sido castigado por mau comportamento, pelo contrário eu e muitos outros, semana sim, semana sim, éramos presenteados com sanções. Na escola o Vital era dos melhores alunos da sua turma. Era um rapaz tímido e ao mesmo tempo alegre, que com muita inteligência soube explorar o que de melhor tinha: o dom da investigação e a capacidade da escrita. O Vital não tinha o dom da oralidade, a facilidade de expressão oral não era com ele, mas conseguia superar isso com a facilidade de escrita.

Eu e muitos outros colegas ex-seminarista apostávamos que, do nosso grupo de 1986, o Vital ia quase de certeza vestir a batina (o termo que utilizávamos para quem chegasse ao sacerdócio). Tudo foi por água abaixo por causa de uma situação que ele explicou-me anos mais tarde em Portugal. O Vital termina o liceu no inicio dos anos 90 (eu entretanto já estava em Lisboa), com excelentes notas e normalmente queria continuar os seus estudos rumo ao sacerdócio no seminário maior. O então Reitor, que já não era o Pe. Guerrino Vitali, desentendeu com o Vital porque, segundo este, o Reitor queria enviar um outro colega nosso para o seminário maior, em vez dele com o fundamento de que o referido colega era mais velho que ele (era a idade a falar mais alto). Note-se que o Vital tinha mais anos de seminário e melhores resultados escolares que o outro colega mas era mais novo. Ele sentiu-se injustiçado e bateu com a porta. O outro colega seguiu os estudos no seminário superior mas depois teve problemas disciplinares e posteriormente expulso.

O Vital seguiu depois para Portugal onde me procurou e reencontramo-nos em 1994 ou 1995 numa das festas de estudantes. Durante os seus anos em Portugal o Vital foi um batalhador nato. Teve dificuldades em Lisboa, como qualquer estudante africano em geral e guineense em particular. Encontrávamos ora na cantina da Cidade Universitária ora noutros locais mais restritos. Tínhamos as nossas cumplicidades, muitas histórias, lembranças e segredinhos em comum, que foi resultado de momentos da nossa adolescência vividos de forma intensa sã no seminário, em Bissau.

Quando no princípio do ano de 2007 encontramo-nos e almoçamos, se não me engano no refeitório da Universidade Católica, em Lisboa, e informei-o que estava preparado de armas e bagagens para regressar à nossa pátria, desejou-me sorte e disse-me que pretendia primeiro concluir umas investigações que estava a fazer, apresentar a tese e depois deslocar-se a Inglaterra para superar o inglês. Mandei-lhe uma boca na altura perguntando-lhe se ainda não estava cansado de estudar, que estudamos desde os 6 anos de idade e ele na altura com 37 anos ainda pensava em continuar a estudar.

Em 25 de Maio de 2007 regressei ao nosso país mas continuamos a corresponder por e-mail. Aliás, o Vital era um viciado na Internet, passava horas no cyber espaço a navegar e investigar. Em finais do mesmo ano do meu regresso, estava no meu escritório, em Bissau, a consultar um diploma com o nome de Directores-Gerais nomeados e demitidos, para meu espanto encontro a nomeação de Vital Pereira Incopté. Claro que logo a seguir mandei-lhe um e-mail a dar os parabéns e desejar sorte. Volvidos uns dias o Vital contacta-me telefonicamente informando que já se encontrava em Bissau e que mudou de ideias e resolveu também regressar para dar a sua contribuição.

O Vital era um homem bom, temente a Deus, aplicado em tudo o que fazia. Viveu neste mundo sempre com maior descrição possível. Quando na passada terça-feira, dia 4 do corrente mês de Agosto, o Vital ligou-me, com aquele seu jeito inconfundível de sorrir mais do que propriamente falar, e perguntou-me porque não lhe tinha enviado um certo e-mail... e termos falado de outros assuntos, não fazia a menor ideia que seria a última vez que ouvia o meu irmão.

Ontem, dia 10 de Agosto, na missa do corpo presente e no funeral, rezei pelo nosso Vital, pedi a Deus que receba a sua alma junto dele, perdoando-lhe todos os seus pecados, e prometi-lhe também que a justiça será feita nos Tribunais (era o mínimo que podia fazer pelo nosso irmão).

Aqueles que estão a tentar passar a imagem do Vital como sendo um marginal ou delinquente social, só podem estar frustrados. Eu, enquanto operador de justiça, não devo falar muito deste caso para o bem da própria investigação em curso. Por isso limitei-me unicamente a revelar para a maioria das pessoas quem era para mim o Vital Pereira Incopté. A Guiné-Bissau acabou de perder um dos seus melhores quadros, os familiares viram desaparecer um filho, sobrinho, tio e irmão, bem como os ex-seminaristas (diocesanos e franciscanos de Bissau) e colegas sentirão a falta do irmão em Cristo e bom companheiro que era o VITAL.

Muito obrigado, Didinho, por acolher este meu desabafo de dor e revolta e desculpe pela maçada.

QUE O NOSSO IRMÃO VITAL, DESCANSE EM PAZ. 


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