Neo-escravatura
Por: Samuel Reis*
08.10.2008
Estamos todos cientes da podridão que germina por detrás das palavras vazias e evasivas dos nossos governantes, é tamanha que pode farejar-se à distância. É mesmo do senso mais comum que os políticos que representam os países africanos são corruptos. Se não são todos corruptos, são quase todos, e pelo menos os que estão no “poder” são certamente. A corrupção ou, por vezes, a simples incompetência são tão óbvias que falar mal do governo tornou-se quase brincadeira de crianças. Nunca vi um africano louvar o seu governo sem ter interesses mesquinhos na sua perpetuação. Ora, discriminando esses (os que beneficiam com o statu-quo), todos nós concordamos que algo precisa de mudar imediatamente! Mas e se eu dissesse que o problema não são só os governantes, se dissesse que eles não são mais do que o minúsculo topo de um colossal iceberg de problemas que ameaça afundar África nas tenebrosas profundezas da divida externa? E se eu dissesse que o Nino Vieira, por exemplo, não passa de um palhaço (lamentavelmente desprovido de talento) para nos entreter no circo que o novo império romano desta bárbara era digital dá aos fatigados povos de África, que ele e tantos outros governantes não passam de inimigos menores, meros intermediários que nos impedem de ver o verdadeiro inimigo…?
Deduzo que se eu dissesse isso alguns leitores me considerariam insensato. “O Nino é um problema grave!”, pensariam. Pois, não restem dúvidas que considero o dito pseudo-general-ditador um obstáculo imediato à liberdade do povo da Guiné-Bissau, mas não o considero a fonte diabólica de toda a malevolência nem o único aspirante a dono da Guiné, por isso vejo-me mesmo constrangido a dizer tudo aquilo. Aliás, a escrevê-lo, algo quase permanente, ou pelo menos mais duradouro do que as palavras faladas.
Como sabemos África, assim como todo o “Terceiro Mundo” (um título deveras revelador), foi enredado numa teia de dívidas irrealistas que cada vez mais atingem dimensões sugestivamente eternas. Os países do terceiro mundo estão endividados, logo, os povos inocentes desses países têm que sofrer as calamitosas consequências das políticas suicidas e assassinas dos seus “governantes”. Mas o que não se diz em nenhum meio de comunicação, não se discute nos círculos académicos nem em debates de pretensiosos intelectualóides completamente alienados da realidade prática e das verdadeiras aspirações, paixões e dores do povo, é que as nações do “Terceiro Mundo” foram vítimas de uma cilada maquiavélica, tecida pelos governos das nações mais poderosas, que são de facto controlados pelas grandes corporações, bancos e grupos de pressão que actualmente moldam quase todas as áreas das nossas vidas, como só não sabe quem não quer saber. “Para quê?”, perguntaria o leitor mais ingénuo… Ora, para sugar as riquezas do continente africano até ao tutano! Alguma vez se questionaram sobre a origem deste óbvio desequilíbrio na distribuição dos recursos naturais e humanos? Ou como é que um continente tão pobre e com um clima tão hostil e desagradável como o europeu consegue ser mais rico do que África? Eu já, e cheguei à conclusão de que isso só é possível através de um minucioso controlo exercido pelos países mais ricos sobre os países mais pobres, de maneira a se certificarem que esses são obrigados a trabalhar exclusivamente para o “Primeiro Mundo” (aquele que está em primeiro lugar, no topo da hierarquia, portanto).
O Banco Mundial e o Fundo Monetário Internacional (FMI) são provavelmente as duas instituições mais perigosas deste planeta a seguir à própria ONU (o Banco Mundial faz parte da organização, inclusivamente). A maioria de nós nem sabe bem o que são estas instituições, eu não vou nesta ocasião explicar isso ao pormenor, mas o importante é compreender que os planos de “recuperação” das frágeis economias dos países subdesenvolvidos, os países debilitados por séculos de colonialismo e toda a tortura psicológica que isso implicou, são elaborados pelo Banco Mundial e pelo FMI, que têm como objectivo oficial a diminuição da pobreza e a regulação das economias mundiais (para o “bem” da humanidade), entre outros objectivos comoventes pelo altruísmo que revelam… Os seus derradeiros objectivos só podem ser desvendados ao observar a forma como actuam.
Estas instituições oferecem empréstimos e os acima referidos planos de recuperação às nações como a Guiné-Bissau, sempre com a bondade desinteressada tão típica dos nossos irmãos “caucasianos” ricos e das suas instituições “humanitárias”. Isto seria bom, não fossem esses empréstimos e planos autênticas armadilhas. É bastante simples, um empréstimo depois de concedido deve ser pago com as receitas das exportações dos produtos que ajudou a produzir. Deveria ser um pequeno “empurrão” para facilitar o arranque das economias recém-nascidas e supostamente os países pobres seriam capazes de pagar as dívidas e ainda de obter lucros para se desenvolverem. Isso nunca acontece. E não obstante quase tudo o que está a ser produzido e todas as matérias-primas do “Terceiro Mundo” estarem a ser exportadas para o “Primeiro Mundo”, os países pobres continuam em dívida e as dívidas continuam a crescer. Isto porque os preços de quase todos os produtos que os países do “Terceiro Mundo” exportam descem drasticamente depois dos empréstimos, e o Banco Mundial e o FMI são responsáveis por essa descida, porque os planos que distribuíram, depois de serem cumpridos pelos governantes desses países, provocaram uma produção excessiva desses produtos. Dá-se uma saturação do mercado, há demasiada oferta para a procura existente. Por exemplo, se todos os países da costa ocidental africana seguirem o plano que lhes é oferecido e produzirem castanha de caju para depois exportarem esse produto, vai haver demasiada castanha de caju, então o preço cai, obviamente, porque não há para onde escoar tanto caju (não é preciso ser economista para compreender isto). Agora apliquem esta lógica a todos os outros produtos que África exporta…
Depois de reduzirem o “Terceiro Mundo” à condição de devedor, acto que eu acredito ter sido propositado (e aqui vale a pena sublinhar que estas duas instituições se recusam a perdoar as dívidas que elas mesmas provocaram, ou sequer a reconhecer que as provocaram), o Banco Mundial e o FMI ainda se voluntariaram para “ajudar” mais, com novos empréstimos! Quão compreensivos…
É desta forma que estas instituições de amigos da onça e os governos das nações maioritariamente ricas que as formam vão “auxiliando” aqueles que chamam de “Terceiro Mundo”, enterrando os povos não-brancos em dívidas impagáveis. Mais uma vez o leitor mais inocente, indignado com tão ácidas acusações, perguntaria “Porquê?!”, e com toda a razão. Bem, lamento repetir-me, mas isto tudo é para, como respondi no último “porquê”, sugar a riqueza de África (e de todos os outros países do “Terceiro Mundo”) até ao tutano. Endividadas e empobrecidas pelas políticas cumpridas pelos seus governantes (muitas vezes fantoches), as nações em desenvolvimento são agora obrigadas a exportar tudo o que possuem para pagar as dívidas. Ou seja, tudo o que resulta do sangue, lágrimas e suor dos povos dessas nações é oferecido a um preço insignificante às nações ricas, tudo! Estão a seguir o meu raciocínio? É que o problema ainda não acabou.
Como se o que já relatei não fosse o bastante, o Banco Mundial e o FMI “aconselharam” o “Terceiro Mundo” a abrir as portas ao “investimento estrangeiro”. Traduzindo para português honesto e directo, os países poderosos ordenaram aos seus vassalos que permitissem a exploração mais eficaz dos seus povos, algo que podem fazer facilmente, uma vez que através da dívida externa são efectivamente donos do “Terceiro Mundo”. E com as economias das nações subdesenvolvidas em ruínas, a mão-de-obra torna-se assustadoramente barata, para não dizer gratuita, por isso agora está tudo preparado para o domínio das corporações capitalistas dos países ricos, que se precipitam sobre as nações moribundas como abutres esfomeados.
Olhem para as etiquetas nas vossas roupas (principalmente os leitores mais jovens), vejam onde foram feitos os vossos ténis… No Vietnam? Talvez no Paquistão? Acertei? Provavelmente sim. Com certeza que foi num país dilacerado por estas políticas, ou mutilado pela guerra, outra técnica de subversão de povos utilizada pelo Tio Sam e pelos seus companheiros. Agora olhem para a marca dos vossos ténis. Meus irmãos, vocês estão a olhar para um símbolo da escravatura moderna, para a bandeira dos homens que beneficiaram com as guerras dos países inscritos na etiqueta dos vossos ténis, em última instância, estão a olhar para um dos brasões do imperialismo, o nosso grande inimigo. Até a Disney (aquela corporação que entretém/deseduca as nossas crianças) tem fábricas com mão-de-obra escrava no Haiti.
O “Terceiro Mundo” foi vendido pelos governantes corruptos que o governam e com ele o nosso amado continente, África, a Terra Mãe. Foi tudo trocado por bens materiais e luxúria. Era algo previsível, depois de os compradores se certificarem que todos os governantes africanos (os vendedores) tinham uma consciência sub-humana, incapaz de sentir remorsos, arrependimento ou piedade. Era algo inevitável, depois de grandes líderes como Amílcar Cabral ou Patrice Lumumba serem assassinados e substituídos por homens sem respeito pela vida humana e que têm como único objectivo enriquecer, enganando-se a si mesmos ao pensar que conseguirão alcançar a verdadeira felicidade ou algum tipo de paz em futilidades e ostentação. Esses homens são muito mais fáceis de controlar e muito mais úteis para os senhores do mundo, que espezinham a dignidade humana todos os dias e depois enchem a nossa programação televisiva, jornais, rádios e páginas de internet com mentiras e ilusões sobre uma guerra à pobreza e cimeiras e encontros G8 descaradamente hipócritas.
Irmãos, sempre que o Nino Vieira pede um empréstimo para si em nome da Guiné-Bissau está a vender a Guiné-Bissau, está a vender-se a si, como prostituto que é, e está a vender os guineenses, está a ser como os negros que transportavam os seus irmãos até à costa para trocá-los por bugigangas europeias, mas que depois acabavam acorrentados com eles num negreiro imundo, traídos pela sua astúcia (tal como acabará o Nino Vieira). É que os senhores deste mundo sabem muito bem como os países pobres não vão ter condições de lhes pagar as dívidas. Eles não estão a emprestar-nos dinheiro, irmãos, eles estão a comprar-nos! E os nossos governantes vendem as terras e as gentes, considerando-se nossos donos. Por isso sempre que um negro morre nesta neo-escravatura, não passa de uma cabeça de gado a menos para eles.
Choremos por todos os que a escravatura mata e maltrata, física e espiritualmente. Lutemos pela libertação dos povos oprimidos. A escravatura nunca acabou. Nunca houve independência.
O rico domina sobre os pobres, e o que toma emprestado é servo do que empresta.
– Provérbios 22:7
* 17 anos de idade, estudante na área de Línguas e Humanidades do 11º ano com aspiração de vir a ser jornalista
VAMOS CONTINUAR A TRABALHAR!
Projecto Guiné-Bissau: CONTRIBUTO