O Fazedor de Utopias: uma leitura equivocada de Amílcar Cabral

 

 

(Ponto de Vista)

 

"O meu trabalho é servir a humanidade, dar a minha contribuição na medida do possível, para a vida do homem se tornar melhor no mundo".

 

Amílcar Cabral

 

 

Por: Rui Jorge  da Conceição Gomes Semedo *

 

rjogos18@yahoo.com.br

 

São Carlos, 2 de Dezembro de 2007

 

 

Rui Jorge SemedoNão há nada mais justo do que abrir esta reflexão e começar por agradecer António Tomás pela iniciativa de escrever o livro “O Fazedor de Utopias”, trabalho que procura analisar práxis do pensamento político de Amílcar Cabral. Isso é louvável, dado que as publicações do gênero ainda são escassas no mundo acadêmico, principalmente, de Guiné e Cabo-Verde, países onde as teorias de Cabral tiveram influências marcantes na luta pela descolonização.

As observações que farei sobre o livro não pretendem de forma alguma colocar em questão a relevância do livro, como salientou o seu prefaciador José Eduardo Agualusa, que chamou a atenção nesse sentido, pelo facto de o autor ser de um outro país, Angola. De igual modo, para mim isso não tira do trabalho o seu caracter acadêmico, investigativo e histórico; do contrário, a obra ora publicada é mais um instrumento acadêmico de debate sobre a ideologia de Cabral e que vai nos ajudar a compreendê-lo.  

Infelizmente, ainda não tenho acesso ao livro, e a minha análise sobre a obra vai se centrar apenas em alguns pontos ilustrados na matéria jornalística escrito por correspondente da Agência Lusa, José Sousa Dias, publicado na página digital de Notícias Lusofonas. Aliás, “o adequado” era esperar, ler a obra, e depois tecer comentário, mas, como nem sempre na vida conseguimos ser pacientes com os factos, e dado que a matéria é muito instigante e provoca debate, resolvi antecipar o academicamente correcto para fazer as minhas observações sobre os principais pontos do livro enfatizados na reportagem.

De acordo com o que consta na matéria divulgada no site “www.noticiaslusofonas.com” de 20 de Novembro de 2007, o António Tomás apontou, “entre muitas”, quatro contradições na vida e obra de Amílcar Cabral, que passarei a sintetizar do seguinte modo: identidade; humanismo; centralismo; e responsabilidade pela própria morte. A minha observação vai ser apenas em cima desses quatro pontos, já que não conheço a obra.

Na primeira contradição, o autor aponta que Cabral “formou-se profissional e culturalmente em Portugal e pensava como português”. Nesse ponto, a minha observação é a seguinte: “o simples facto” de criar um movimento de libertação mostra que Cabral não pensava como português. Cabral tinha consciência histórico-política não só de seus valores morais e culturais, como da realidade do povo a que pertencia. Um dos exemplos é quando afirmava que a luta que travava contra o regime de Salazar e Marcelo Caetano era a mais pura expressão de manifestação cultural do povo guineense e cabo-verdiano. Ou seja, a liberdade na sua visão é um requisito inquestionável e inalienável à afirmação sócio-cultural e política de qualquer povo. Apesar de que Cabral fazia parte dos denominados assimilados, não podemos esquecer que ele passou a maior parte de sua vida na Guiné, Cabo-Verde e Angola, nos dois primeiros, nasceu e fez o ensino primário e médio, enquanto que no último, trabalhou como funcionário colonial. Essas constactações, em minha opinião, tiram qualquer possibilidade que negue ser ele conhecedor e portador de valores culturais africanos. Do ponto de vista sócio-antropológico, podemos reconhecer que ele foi influenciado pelo pensamento ocidental. Da mesma forma que eu (Rui Jorge), António Tomás e qualquer outro africano, tanto os que tiveram a oportunidade de fazer o curso superior ou não, somos todos influenciados na maioria das vezes, no nosso estilo de vida, pela “cultura hegemônica”, tanto no modo de pensar, de falar, de comer, de vestir, quanto no que diz respeito às relações familiares/conjugais por uma cultura que é-nos historicamente imposta. Apesar dessa imposição secular, Cabral como ninguém, sabia conciliar os dois valores, africanos e europeus, e isso foi demonstrado na relação que o PAIGC sob o seu comando estabelecia com os anciões nas zonas libertadas e também pela forma como fora disseminada a idéia de unidade nacional entre vários segmentos sociais e étnicos. O nosso autor também acha que Cabral pensava que a mística africana fora apagada pela colonização. E como exemplo de que isso não chegou a acontecer ele mencionou duas práticas sociais ainda vigentes: a “excisão feminina” e a “dominação masculina”. A minha dúvida é considerar essas duas práticas como genuinamente africanas, como considerou António Tomás, pois pelo que a história nos deixa entender, a primeira prática tem uma relação com alguns grupos que professam a fé islâmica, o que não quer dizer que tem base religiosa. E levando em consideração a conquista de parte de África pelos árabes, algo me diz que precisamos investigar como surgiu essa prática no continente. Porque apenas os grupos que foram dominados e convertidos pelo islão, por exemplo, no caso da Guiné-Bissau, praticam a excisão feminina? Será que isso não existe nos países do Oriente Médio? No que diz respeito à dominação masculina (ou machismo), apenas gostaria de indagar, que sociedade no mundo não é machista? Obviamente, que os casos são diferentes; em algumas sociedades esse comportamento é mais visível, enquanto que em outras menos, e isso, em certos casos, tem uma das explicações no processo de industrialização. E como na África o fenômeno-industrialização ainda não atingiu uma grande maioria de seus países, a dependência feminina ao poder econômico masculino continua a ser um dos factores explicativos para a visibilidade e permanência do machismo.

Na segunda contradição, o nosso autor aponta que Cabral é “um humanista que acabou por defender a guerra (1963/1973) como meio para alcançar a independência”. Sobre esse ponto, tenho duas observações a fazer: primeira, que Cabral não escolheu a guerra como solução; lhe fora imposta a guerra como a única condição naquele momento. O acontecimento de 3 de Agosto de 1959, no qual foram assassinados cinqüenta estivadores no Cais de Pinjiquiti e cem outros feridos, é uma das provas que confirma de que os colonialistas não estavam interessados em estabelecer diálogo; segunda, acredito que qualquer observador cuidadoso não terá dúvidas que Cabral foi um “humanista”, “pacifista”, que defendia os direitos e o bem-estar da humanidade. Esse comportamento em defesa dos valores humanos, está presente em seus discursos e textos, na acção armada que o PAIGC desencadeava, que preservava a vida dos soldados presos no combate e, fundamentalmente, no compromisso de lutar contra qualquer tipo de dominação na África e no mundo. 

Na terceira contradição, o nosso autor acha que Cabral era centralizador do poder, ou seja, era o único no partido que pensava, e que a guerra não se faz com um homem só”. Esse ponto para mim apresenta uma inconsistência analítica sobre a estrutura de poder no PAIGC: uma das explicações de que Cabral não é centralizador, pode ser vista na forma como o partido se organizava e de que forma eram feitas as deliberações. Cabral se sobressaía pelo grande estrategista político que era, pela capacidade de oratória, e por conhecer a realidade do País. Sobre essa situação, podemos recorrer ao trabalho de Paulo Freire, Cartas à Guiné Bissau, no sentido de poder deixar mais claro a realidade que se vivia: ao citar Pereira e Motta (1976) Freire mostra que em dez anos (1963/1974), o PAIGC conseguiu formar mais quadros que os colonialistas em cinco séculos. Segundo ele, foram formados 36 indivíduos com curso superior, 46 com o curso técnico-médio, 241 com cursos profissionais e de especialização e 174 quadros políticos e sindicais. Em contrapartida, desde 1471 até 1961, apenas se formaram 14 guineenses com curso superior e 11 no nível do ensino técnico. Ou seja, nessa situação é óbvio que a função de fazer a organização funcionar se centralize em mãos de um grupo pequeno. Uma outra coisa que também não se pode ignorar é o contexto mundial da época, pois a luta de libertação ocorreu justamente nos períodos mais tensos da Guerra-Fria, em que as duas ideologias antagônicas da época (Capitalismo/Socialismo) disputavam em vários pontos do mundo seus domínios, e isso também tinha reflexos na estrutura interna do movimento e na forma como as decisões eram tomadas.

Na quarta contradição, o nosso autor afirma que Cabral foi assassinado por não ter conseguido resolver as contradições internas do movimento. O que gostaria de colocar é o seguinte: que organização ou sociedade no mundo vive sem dissenso versus consenso? Obviamente que não se pode descartar a hipótese de António Tomás, mas, prefiro dar mais ênfase à ambição insensata que vem sendo a forma característica e habitual de como o poder é conquistado no nosso continente. Tanto quanto Cabral, também foram assassinados grandes líderes como: Eduardo Modlane, Kwame N' Krumah, Patrice Lumumba, Modibo Keita e muitos outros, o que nos leva a pensar, que mais que seus erros é a ganância pelo poder por parte de seus seguidores, a causa de tantas mortes.

A relevância política de Cabral me faz acreditar que ele não é mais cidadão da Guiné e Cabo-Verde; ele é um cidadão de mundo que dedicou sua vida em nome da afirmação das mulheres e dos homens africanos. Nesse sentido, estudar e compreender sua praxis é um desafio acadêmico e de vida que nos é colocado.

 

 

*Mestrando em Ciência Política na Universidade Federal de São Carlos, SP, Brasil

 

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