OUTROS TEMPOS OUTROS CARRASCOS
Flaviano Mindela dos Santos
31.08.2009
Algures durante os bons anos da minha juventude, e não assim tão bons para o meu país; como é tradicional, com um grupo de amigos e colegas, organizávamos festas ocasionais.
Para um fim do ano qualquer, preparávamos uma dessas festas; das quais dedicávamos muito mais, em todas as diligências, (levava-se bastante sério a rivalidade saudável entre os grupos) para que nos dias seguintes, a nossa fosse de longe, a mais falada.
Era só um daqueles desafios banais, próprios das nossas idades na altura!
Entre nós, havia um colega com uma considerável facilidade de cultivar amizades à sua maneira, com algumas pessoas mais velhas. E dessas várias amizades, constava uma, com uma das filhas do chefe maior, então esposa do agora deputado que, pelas voltas que o mundo sempre deu, e nunca deixará de dar, terá poucas ou nenhumas hipóteses, de escapar uma longa e perigosa travessia solitária, do deserto artificial que é hoje uma parte descomunal da nossa terra, e que ele também ajudou a criar, com o impiedoso abate e exploração esbanjadora, das nossas grandes árvores de sombra.
Com uma reconhecida delicadeza, a então esposa do deputado agora em fuga da própria sombra, ofereceu-se para nos confeccionar alguns tipos dos bons salgados; bastava que para isso conseguíssemos todos os ingredientes, e com qualidade de excelência. Para tal, aconselhou-nos umas compras numa das antigas lojas francas da cidade.
Com contraditórias sugestões alternativas de uns, e resistências sem fundamentos de outros, acabamos por conseguir um consenso. Fomos então tratar de converter uma custosa quantia em moeda nacional, para uma estrangeira mais familiar, e compramos tudo o que foi recomendado, inclusive uma bebida preferida da nossa boa gente, como gesto de gratidão da nossa parte, para depois a então esposa do deputado agora em fuga da própria sombra, oferecer ao bem parecido marido.
Com sacos nas mãos, chegamos à casa do agora deputado em fuga da própria sombra. Para nossa grande surpresa, fomos recebidos logo à porta com insultos e ameaças, típicos de alguns mortais da nossa sociedade, com ilusórias ligações fortes ao poder. E para minha pequena surpresa, os insultos e ameaças começaram a dirigir-se mais ao nosso colega, amigo da então esposa do deputado agora em fuga da própria sombra. Não tardou nada, foi a vez de uns descoordenados socos e pontapés, lembrando-o, numa voz trémula de tanta cólera, que o já tinha avisado, para nunca mais chegar aos arredores daquela moradia fortificada. Com a então esposa do deputado agora em fuga da própria sombra, a tentar apaziguar o ânimo espalhafatoso, não me lembro porquê, num instante aumentou a fúria ciumenta do deputado agora em fuga da própria sombra. Mas por alguma sorte nossa, resolveu atacar primeiro os sacos que trazíamos, e os seus respectivos conteúdos. Voaram pequenos pacotes, para umas aterragens desajeitadas no passeio e na estrada, para alimentar a conhecida bisbilhotice do povo. Quando por um momento o deputado agora em fuga da própria sombra conseguiu levar parte da fúria ciumenta para dentro de casa, precipitamos para junto do que restou das nossas preciosas compras, e recuperamos umas coisas, talvez porque ainda se encontravam nas suas embalagens de origem, ou como sinal de alguma justiça divina, por exemplo, a garrafa com o prestigioso líquido alcoolizado, estava bem intacta.
Caminhávamos fosse para onde fosse, mas que fosse para muito longe daquela vergonhosa trapalhada, com o nosso colega a chorar compulsivamente por tamanha humilhação e sentimento de impotência. Também quase todos nós, num rasgo de solidariedade espontânea, chorávamos com ele, quando de repente voltamos a aperceber-nos daquela voz vincada, salpicada de certas imposições, do deputado agora em fuga da própria sombra, que através do passeio em frente à sua moradia, limitou-se a chamar um dos agentes da polícia judiciária, cujos serviços funcionavam logo no outro lado da mesma rua. Numa conversa muito breve, que foi talvez, mais para indicar a cor da camisa do principal visado entre nós. Esse agente por sua vez, chamou mais um outro zeloso guardião da lei dos tomates, e os dois foram directos em nossa perseguição, para prenderem o nosso colega, amigo da então esposa do deputado agora em fuga da própria sombra.
Como se deverá imaginar, ficamos todos com os nervos em chamas. Mas como também a realidade era um pouco o conjunto dessas ocorrências ridículas, sem outra solução à medida do problema, decidi recorrer à minha condição, como um característico elemento das nossas forças armadas, na época, com as funções de furriel, assessor no gabinete do chefe de estado maior do exército, e desenhador no departamento das operações no estado maior general.
Como era num sábado qualquer, fui directamente à residência do chefe de estado maior, explicar-lhe todos os contornos do sucedido. E no fim, com um simples telefonema, ordenou a imediata libertação, sem quaisquer condições, do nosso colega, amigo da então esposa do deputado agora em fuga da própria sombra.
Por algumas vezes, sem sequer pedir licença, esse deputado agora em fuga da própria sombra, entra em minha casa, através do ecrã da minha televisão. Mas por incrível que possa parecer, só por duas únicas vezes, essas suas inevitáveis intromissões, alteraram o meu estado de espírito.
A primeira, foi no dia da insólita entrada de um helicóptero militar estrangeiro, dentro do nosso território de jurisdição, contra a vontade expressa das nossas autoridades competentes, quando esse deputado agora em fuga da própria sombra, apareceu numa imagem ilustrativa da religião que ele sempre praticou, sentado no topo de uma das incontáveis viaturas, no concorrido cortejo do pára e arranca, na procura do seu próprio equilíbrio, e mesmo assim, ainda distribuía açoites cirúrgicos com um dos seus sapos, que segundo as conveniências do momento, passava da mão direita para a mão esquerda, ou da mão esquerda para a mão direita, a alguns jovens sorridentes, produtos semi-acabados dos nossos grandes males, levados pela curiosidade, e uma vez na multidão, movidos pelo entusiasmo, junto do local improvisado, para a embaraçosa recepção do velho combatente da liberdade da pátria.
A segunda, foi há bem pouco tempo, quando num triste papel de vítima de uma absurda injustiça, balbuciava qualquer coisa, que me parecia dizer ser ele, um homem de bem. Parei, meditei por uns segundos, e senti uma profunda pena, daquela figura tipo denominador comum, na nossa insalubre sociedade.
De pancada em pancada, de lição em lição, devagar em andamento, num amanhã ao seu tempo, atingiremos a maturidade necessária, a uma sociedade que se organiza e funciona, na perspectiva da comunidade, e na garantia de um futuro melhor, para as gerações vindouras.
Que ninguém se engane, mas ninguém mesmo, sem excepções. Não durará para a eternidade, qualquer iniciativa com puros intuitos, de servir grupos de interesses egoístas, na satisfações das necessidades supérfluas, do corpo e da alma!
A luta por uma plena afirmação da lei e da ordem, em todos os níveis da nossa convivência, enquanto sociedade formalizada, ou seja, um estado de direito, tem que merecer os mais elevados sacrifícios de todos. Porque somente a lei e a ordem, serão capazes de assegurar ao longo dos tempos, e com uma robustez sustentável, todos os benefícios decorrentes dos direitos instituídos, todos os benefícios decorrentes do cumprimento dos deveres convencionados, assim como, todos os benefícios decorrentes das obrigações estabelecidas.
Se a implacável força da natureza, quis que esse nosso mundo, para além de girar sobre si, ainda gira à volta do sol, para que a mais poderosa de todas as luzes, embora de maneira variável, chegue a todos nós, para sempre serão mais infelizes, os que com manhas cobardes, se colocam na posição de subtrair aos outros, essa providencial dádiva!
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