PROPOR CABRAL À NOVA GERAÇÃO

Por: Fernando Casimiro (Didinho)

12.09.2006

 

Hoje, 12 de Setembro, se Amilcar Cabral fosse vivo, completaria 82 anos de vida.

De homenagens pontuais, duas vezes por ano (as datas de nascimento e do seu assassinato), se reforça a ideia de que Cabral foi esquecido pela maioria dos seus seguidores, se é que realmente de seguidores se tratam.

A herança que Cabral deixou e que importa reclamar, deve ser motivo de estudo por quem se interessa pelo pensamento humano e as suas repercussões na sociedade.

 Importa passar o testemunho da responsabilidade de transmissão da sua mística às gerações intermédias que, por sua vez devem propor Cabral à nova geração, num ciclo visando a difusão dos ideais do pensador e combatente que ele foi.

Tenho ouvido muitas promessas no sentido de se relançar Cabral, mas, infelizmente, não passam de promessas.

Saibamos valorizar o legado que Cabral nos deixou!

Quero partilhar convosco a homenagem manifestada por três irmãos nossos que responderam ao tópico lançado sobre a data de nascimento de Amilcar Cabral.

Quero igualmente partilhar convosco o texto de Carlos Lopes aquando do Simpósio Amilcar Cabral realizado em Cabo Verde em Setembro de 2004. Vale a pena ler.

Aproveito para vos dar a conhecer a criação de mais um espaço, completamente dedicado ao estudo e à investigação sobre Amilcar Cabral.

Podem aceder ao novo site pelo endereço:

http://amilcarcabral.no.sapo.pt

 

OS GRANDES HOMENS, COM VISÃO E ACÇÃO, INICIAM OS GRANDES PROJECTOS.
GRANDE PARTE DELES MORREM SER VER SUA OBRA 100% IMPLANTADA.
LANCEMOS AS SEMENTES À TERRA. NÃO NOS PREOCUPEMOS QUEM SERÁ O CEIFEIRO.
PREOCUPEMO-NOS EM ESTAR VIGILANTES, PARA EVITAR QUE AS AVES MÁS, DESTRUAM AS SEMENTEIRAS.

Manuel Cruz

 

Neste momento da comemoração de 82° Aniversário,  rendo uma comovida homenagem ao Guineense imortal, figura de aço e paixão, pelo patriotismo e abnegação com que soube servir a pátria até a morte. A vida de Cabral foi um exemplo de espírito de sacrifício, coragem e determinação por um ideal. Essas e tantas outras virtudes fizeram com que ele tenha merecido a gratidão dos Guineenses, Cabo-verdianos, africanos e do mundo em geral. Aliás, o seu nome há de crescer à proporção que a perspectiva histórica permitir sua personalidade globalmente.
Viva Cabral
Viva Paz
A GUINÉ VENCERÁ...

Policiano Gomes

 

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Amilcar CABRAL foi um daqueles que deixaram uma marca inesquecível na luta pelos direitos humanos, os ideais emancipadores do século 20.
O seu nome está associado aos das grandes figuras, que lutaram pela liberdade e a igualdade entre os homens da mesma raça: HUMANA.

Cecília Cabral de Melo

 

 

O LEGADO DE AMILCAR CABRAL FACE AOS DESAFIOS DA ÉTICA CONTEMPORANEA

 

 

Por Carlos Lopes[1]

Brasília Setembro 2004

Perfazem-se 80 anos sobre o nascimento de Amílcar Cabral, personagem ímpar do continente africano, herói no seu tempo, hoje esquecido mais do que se admite, poderoso vector de referência para as gerações que o conheceram; e para as que o sucederam. Porque é importante celebrar a sua vida e obra? Porque fazê-lo agora, e em que contexto? Estas são algumas das interrogações legítimas daqueles que, por ocasião de um aniversário, não devem entender muito bem um conjunto de acontecimentos atribuíveis aos movimentos, partidos e países que Amílcar Cabral ajudou a criar, ou que nele se legitimam. São também as interrogações de jovens que não leram o que escreveu, por razoes tão triviais como o fato da última edição das suas obras ter desaparecido das bancas há pelo menos vinte anos.

 

As hagiografias ao herói da Guiné e Cabo Verde foram ocupando espaço. Selos, notas de Banco, monumentos, nomes de rua e empreendimentos, retratos e posters, simbologia vária, substituem o conhecimento das ideias, ensinamentos e exemplos de vida. Amílcar Cabral desapareceu do debate político para regressar no culto das celebridades. Mesmo nesse registo num patamar menos importante que outras celebridades da música ou do desporto, por exemplo.

 

Será este o início de um lamento, a indução à crítica? Não. O propósito é outro.

 

Comemorar Cabral hoje necessita de uma razão, sim. Essa procura não é difícil de encontrar para todos aqueles que conviveram com ele ou beberam das suas experiências e pensamento. Trata-se do legado ético, que muito pode servir para entender os desafios contemporâneos.

 

Globalização

 

Definida de forma vária a transformação do mundo, a que assistimos desamparados, provoca uma gravitação dos processos económicos, sociais e culturais, fazendo-nos perder referências familiares e sentimentos confortáveis. As mudanças significativas na nossa noção de espaço e tempo questionam premissas históricas, agora invadidas por um acumulo de informação, acesso mais fácil a comunicações e uma revolução nos métodos quantitativos. A globalização é vista como um processo de riscos e oportunidades, desenhada em função de uma capacidade de inserção e aproveitamento competitivo da economia, caracterizada por desafios novos e fortes; e uma acentuação da polarização e heterogeneidade.

 

A globalização é um fenómeno multidimensional que se inscreve na internacionalização da economia mundial. No entanto, pretender que o seu lócus se limita ao comércio e investimento, finanças ou regimes macroeconómicos, não faz sentido. As assimetrias que cria mudam os comportamentos e instituições e tem um impacto, diremos, na vivência cultural. O apelo à diversidade e o papel das imigrações contemporâneas, por exemplo, tem de ser analisados com uma acuidade superior.

 

Os seres humanos inteligentes sempre acham que vivem numa época singular, cheia de acontecimentos únicos e marcantes. Há um pouco de verdade nessa percepção, mas muita dessa verdade também é ofuscada por uma sobrevalorização da diferença em relação a épocas passadas. Em termos de conteúdo universal os dilemas das sociedades humanas muitas vezes são repetitivos. Por exemplo, o alargamento da democracia para além dos eleitos cidadãos é um tema que ainda não se esgotou desde a Grécia antiga. Os debates recentes sobre a democracia representativa mostram que nem o sufrágio universal resolveu a questão dos direitos políticos e da plena cidadania. Seria ridículo, por exemplo, assimilar de forma simples as contribuições teóricas de Amílcar Cabral sobre a democracia à luz de dilemas actuais.

 

Se a globalização é um processo de identificação das relações entre sociedades, então temos que admitir que isso acontece há milhares de anos e já nos trouxe: dissabores históricos como o tráfego de escravos; ou vantagens como a divulgação dos conhecimentos científicos, expansão do comércio ou maior intercâmbio entre os povos.

 

O que nos faz ter a sensação de vivermos um momento paradigmático é o fato do poder enorme de destruição já não ser privilégio dos mais fortes. O terrorismo contemporâneo introduziu o medo nas sociedades ocidentais e universalizou a insegurança humana para os territórios protegidos: cidades; subúrbios de classe média; ou países ricos. Em vez da inspiração iluminista de uma sociedade mais integrada, ou das promessas do socialismo ou da social-democracia de uma sociedade mais igualitária, repartindo os serviços de um Estado providência, estamos perante uma civilização do medo. O medo como consequência directa de uma distribuição desigual e de uma concentração de riqueza sem precedentes.

 

Aqui cabe uma referência a Frantz Fanon, esse martiniques contemporâneo de Cabral, que descreveu a violência revolucionária como força, poder e coerção exercida de forma organizada, mas que podia extravasar para algo diferente. Num prefácio ao seu livro mais importante Jean Paul Sartre sintetizou o seu pensamento que “…basta…que os recém-nascidos (dos países do Terceiro mundo) tenham que temer a vida um pouco mais do que a morte, e a torrente da violência rompe todas as barreiras. É o momento do boomerang, o terceiro tempo da violência; volta-se contra nós, atinge-nos e, como de costume, não compreendemos que é nossa”. [2] Esta discussão não é muito diferente da que ocupa muitas mentes hoje em dia.

 

Questionar os valores faz parte do percurso da humanidade. Também neste quesito a originalidade em relação ao legado histórico, é diminuta. Os grandes momentos da História estão marcados precisamente por terem trazido, mais do que acontecimentos de monta, uma discussão dos princípios éticos das sociedades. A mudança moral por sua vez nos coloca perante a necessidade de definir as causas e factores que a determinam.

 

Amílcar Cabral foi um grande questionador do seu tempo. A partir das experiências vividas por um grupo de africanos e asiáticos, privilegiados com o acesso ao ensino superior em Lisboa, conjugou-se na Casa dos Estudantes do Império, uma valorização das culturas de que eram originários. A tal não foram alheias as primeiras manifestações proto-nacionalistas -incluindo a figura tutelar de Francisco José Tenreiro – que lhes precederam. Mário de Andrade, Marcelino dos Santos, Eduardo dos Santos, Agostinho Neto, Alda Espírito Santo, Noémia de Sousa, e muitos outros deram início a um ciclo de conscientização que teve o seu auge no estabelecimento, na Lisboa dos anos 50, do Centro de Estudos Africanos. O que esse grupo acabou protagonizando foi um questionamento da lógica colonial, uma lógica já desenquadrada no espaço e no tempo, relativamente à evolução do processo de integração capitalista, que daria origem ao período mais recente da globalização.

 

De uma certa forma Amílcar Cabral e os seus colegas estavam mais adiantados na compreensão do mundo, como se veio a provar depois com o desmoronamento da ditadura fascista imposta pelo Estado Novo a Portugal, e a independência progressiva das colónias portuguesas, nos anos 70. O primeiro movimento deste grupo não foi violento nem radical. Pediam em memorandos assinados o fim do colonialismo através de apelos. Num desses apelos, de 1961, Cabral invocava os direitos à autodeterminação consagrados pelas Nações Unidas através de processos de descolonização. Mas ele mesmo não acreditava que uma potência atrasada, como Portugal, tivesse a sofisticação para preterir a administração directa ao neo-colonialismo, que exigia meios superiores. Na ausência de entendimento e reconhecimento por parte de Portugal falava da necessidade de guerra preventiva.[3]

 

Cabral defendia que o colonizador acabaria por ser libertado pelo colonizado, numa interpretação baseada no entendimento que a contradição revolucionária principal era a que opunha os povos dominados aos dominadores, mais do que a do proletariado contra a burguesia dos países colonizadores. “O colono criou o colonizado e é este que está fadado a destruí-lo, libertando-se e libertando-o.”[4] Esta tese, desafiadora do marxismo em voga, foi esboçada for Fanon e aperfeiçoada por Cabral.

 

 

 

 

A luta por valores

 

Desde cedo Amílcar percebeu que a luta que valia a pena era por valores. As suas denúncias da situação colonial debruçavam-se sobre a imoralidade com que eram tratados os povos das colónias, sobre a injustiça no mundo e sobre a necessidade de afirmação das identidades culturais.

 

O discurso actual sobre a multiculturalidade já era feito por Cabral nos anos 50 do século passado. As suas teses sobre o carácter civilizatório da luta de libertação nacional, tem a ver com a defesa das manifestações culturais como um ato de cultura. Amílcar Cabral foi o único dirigente de guerrilha capaz de articular uma tese deste tipo. Nem a teoria do foco, em voga nas guerrilhas da América Latina, nem a teoria de solidariedade entre os povos de Che Guevara, nem a defesa da integridade territorial de Vo Nguyen Giap se basearam em princípios filosóficos equivalentes.

 

Leitor atento de Giap, de onde derivou a sua noção de convergência entre luta de classes e lutas nacionais, e a obsessão sobre a especificidade de cada realidade, Cabral acrescentou à visão do líder vietnamita a ideia de que a libertação nacional era simultaneamente um facto de cultura e um factor cultural, como demonstrado pela resistência cultural ser a mais efectiva forma de resistência. Segundo ele “a cultura revela-se como o fundamento do movimento de libertação, e só podem mobilizar-se, organizar-se e lutar contra a dominação estrangeira as sociedades e grupos humanos que preservam a sua cultura. Esta, qualquer que sejam as características ideológicas e idealistas da sua expressão, é um elemento essencial do processo histórico. É nela que residem a capacidade (ou a responsabilidade) de elaborar e fecundar os elementos que asseguram a continuidade da História, assim como determinar as possibilidades de progresso ou regressão da sociedade. Assim -porque uma sociedade que se liberta verdadeiramente do jugo estrangeiro retoma a rota ascendente da sua própria cultura, que se nutre na realidade vivente do meio e nega tanto influencias nocivas como todas as formas de sujeição a culturas estrangeiras – a luta de libertação é antes de tudo o mais um acto de cultura”.[5] A originalidade desta análise de Cabral tem uma dimensão maior por ter antecipado o debate mais importante da globalização. 

 

Mas Cabral não se limitou a esta contribuição. Quando lhe perguntavam se era marxista ele tinha uma forma rebuscada de responder. Limitava-se a contextualizar o uso do marxismo, como ferramenta indispensável para a interpretação histórica, recusando a classificação e categorização tão de moda nos anos 60. Mas acabou oferecendo um dos complementos mais importantes ao Manifesto Comunista afirmando que “o nível das forças produtivas é um elemento determinante do conteúdo e da forma da luta de classes”.[6] Essas nuances faziam dele talvez um estudioso do marxismo mais sofisticado do que muitos que o reclamavam o pedestal; mas mostrava também a capacidade de não se prender a ideologias que tinham pouca relevância quando falava didacticamente com os seus guerrilheiros.

 

A experiência de António Gramsci, na sua luta pela transformação do Partido Comunista Italiano, da ortodoxia imposta pela União Soviética sob Estaline, pode ter sido influência marcante para Cabral. A visão de Gramsci sobre organização do Partido e a definição do que deve ser o seu conteúdo revolucionário ou reformador, encontram-se presentes na obra de Cabral. A premissa gramsciana do optimismo da vontade contra o pessimismo da realidade está mesmo reflectida na palavra de ordem de Cabral, “esperar o melhor mas preparar-se para o pior”.

 

Amílcar Cabral entendia bem a proposta de Gramsci sobre o intelectual orgânico e o papel da sociedade civil. O seu célebre Seminário de Quadros de 1965, com as suas oito aulas, foi uma tradução à letra da análise gramsciana[7], depois baptizada de praxis filosófica. No Seminário, Cabral mostrou a sua maturidade como dirigente político de um movimento em constante evolução, e cheio de inevitáveis contradições. Em cada sessão os problemas da guerrilha eram expostos em termos de valores. Unidade, poder, trabalho político, nação, responsabilidade, educação, solidariedade, eram dissecados em linguagem simples, com um pragmatismo a toda a prova.

 

Mas Cabral estava consciente das limitações. No seio do PAIGC, que criou e desenvolveu, conviviam muitos comportamentos reprováveis, que a natureza da guerra conseguia esconder das decisões e directivas. O Congresso de Cassacá, o II do PAIGC, realizado em Fevereiro de 1964, foi um momento fundamental na definição da ética do movimento de libertação nacional. Amílcar Cabral desafiou dirigentes oportunistas a corrigiram as suas práticas, num clima de tensão e de possível deflagração de conflito. A sua coragem foi marcante para que o movimento não se deixasse dominar por tendências negativas que enumerou como segue: militarismo e autoritarismo; “regulandade”ou clientelismo; “catchorindade” ou servilismo; “mandjuandade”ou espírito de clã; poligamia; “griotismo” ou bajulação; e o racismo, considerado o oportunismo da pior espécie. Cabral dizia que esses males eram reforçados por fraquezas organizativas tais como a tendência à improvisação; falta de planificação; falta de consideração ao factor tempo; falta de estudo sério; rendimento insuficiente; indisciplina e abusos; e desavenças entre dirigentes.[8]  

 

Embora a luta por valores morais nunca esmorecesse, ela foi certamente minimizada e sujeita a crítica e acusação permanente. Mas, de uma certa forma, foi a baixeza moral que saiu parcialmente vencedora, quando correligionários do próprio Amílcar Cabral se aliaram a interesses opostos aos seus e o assassinaram em Conakry, a 20 de Janeiro de 1973.

 

A contemporaneidade de Cabral – captada sucintamente no seu slogan “pensar para actuar e actuar para pensar melhor”[9] – pode ser argumentada de vários prismas. Escolhemos quatro: ideologia; o papel dos intelectuais africanos no nacionalismo; elites e pequena burguesia; e o movimento de solidariedade.

 

Ausência de ideologia

 

A tragédia do pensamento africano tem a ver com a ausência de ideologia, dizia Amílcar Cabral. Mas ele não se referia aos debates sobre o fim das ideologias, posteriores à sua observação, mas sim à timidez de vontade própria, de projecto político próprio, à contraposição do mimético que caracterizou muito do intelectualismo africano. Na fonte dessa postura: a persistência do princípio da inferioridade africana.

 

Foi Hegel quem melhor sintetizou, no pensamento filosófico, a percepção mantida no Ocidente de que a África era dominada por uma presença humana inferior, traçada pelo destino de Caim. Ao proclamar que a África era incapaz de produzir História, aliava-se a visão de que a civilização veio da escrita e a reivindicação do Egipto como não Africano, ou negro, e do Mediterrâneo como berço de um mundo iluminado apenas por europeus. Sabemos que todas essas categorizações são historicamente inconsistentes e apenas reflectem várias formas de produzir alteridade. Mas ao longo do tempo a sua persistência, veiculada pelos detentores do poder, foi de tal ordem, que ainda hoje de forma muitas vezes explícita, embora mais frequentemente implícita, acredita-se numa certa inferioridade africana.

 

Essa percepção ultrapassou a visão do colonizador e atingiu em cheio o colonizado que ficou com uma visão de si mesmo influenciada por complexos e uma constante recorrência à identificação tradicional e inferiorizada da política. Cabral ilustrava este complexo com a pretensa defesa de certas formas de vestir, comer ou comportar-se como sendo africanas, o que na sua visão era ridículo, demagógico e populista. Dizia: “ a crise da revolução africana provém de uma crise de conhecimento. Ou, noutras palavras, da insuficiência, ou mesmo falta de bases teóricas para análises concretas de realidades concretas”.[10]

 

Essa atitude justificava uma distância em relação ao externo, o que deixava pouco espaço de manobra para denúncias polidas, a não ser que elas usassem o mesmo instrumento tradicionalista. Mas no fundo isso era ausência de vontade própria, ausência de ideologia.

 

Outra consequência maior dessa atitude é misturar a África, ou mais propriamente toda a África sub-sahariana, num objecto único de estudo e classificação, como se a enorme diversidade do continente coubesse no cabaz estreito da inferioridade. Cabral recusava isso, insistindo na necessidade obsessiva de se estudar a realidade de cada lugar.  

 

Não surpreende que a África tenha uma dificuldade maior de relacionamento com a modernidade, tal como ela foi e é definida. Não surpreende porque a África, agora sim no seu todo, foi abalada pela experiência colonial que deixou marcas mais profundas do que o próprio tráfico de escravos. É que este último muitas vezes utilizou mais do que destruiu as estruturas políticas e comerciais africanas. Raramente se exerceu em controlo territorial até o último quartel do século XIX. Já no período de directa administração colonial a agressão à estrutura existencial dos africanos foi muito grande.

 

O papel dos intelectuais africanos no nacionalismo

 

Jean Copans dizia que não há uma sociologia dos intelectuais africanos. Por essa razão, o que é uma tarefa respeitosa transforma-se em um desafio quando se trata de enquadrar a produção desses mesmos intelectuais.

 

Quando as elites proto-nacionalistas começaram a se manifestar, o seu desejo primeiro era de serem considerados cidadãos integrais, com direitos plenos, como os almejados pela Revolução francesa. O seu ponto de referência era a construção de uma harmonia nacional. Era, pois, natural que houvesse uma evolução para conquistar uma expressão nacional diferenciada, até porque a luta das elites proto-nacionalistas teve eco no imaginário popular, mas com outro tipo de reivindicações. Elas queriam mostrar as suas diferenças em relação a quem os dominava e nunca as considerou seres iguais. Os intelectuais africanos ficaram sempre presos às suas comparações com a modernidade externa ao mesmo tempo que queriam afirmar-se diferentes. A dimensão nacionalista sempre minou a capacidade crítica. Existem inúmeros exemplos de utilização abusiva do ímpeto nacionalista até com consequências terríveis. Cabral foi um dos raros dirigentes nacionalistas capazes de não confundir o desejo de independência com os exageros pela sua obtenção. Para ele os fins não justificavam necessariamente os meios.

 

Os intelectuais africanos na sua grande maioria adoptaram os princípios da modernidade, dando-lhe uma racionalidade nacionalista interna: governo forte; liderança carismática, direito legítimo – na concepção weberiana - e soberano. O fato de se tratar de um nacionalismo sem Nação não parecia incomodar. O arquétipo Estado-Nação tinha sido adoptado por todos como símbolo e referência da modernidade; por isso mesmo os africanos não podiam ficar para trás. Aqui Cabral não foi excepção. Com esta adopção da Nação vinha todo um enredo de políticas e direitos que pressupunham um comportamento moderno.

 

Os dirigentes dos primeiros países independentes foram muito criativos na adaptação – alguns chamam de africanização – do autoritarismo e centralidade do Estado. Construíram barreiras para parecerem modernos aos olhos do exterior e autênticos, ou tradicionais, para o seu público interno. Este processo de uma certa forma continua ainda presente. Por isso é importante analisar o que se passou no período de gestão local do PAIGC durante a luta armada até 1974. As chamadas zonas libertadas eram um protótipo de uma construção de poder que se pretendia alternativa. Mais democrática e participativa. Com a distância do tempo não se pode dizer que os indivíduos formados nessa experiência - que depois assumiram posições de relevância no poder da Guiné Bissau - estivessem imbuídos de um comportamento diferente da norma verificada em outros países africanos.

 

Um dos parâmetros mais importantes do moderno pensamento africano logo foi o pan-africanismo, nascido primeiro fora do próprio do continente – com expoentes como W.E.B. Dubois, George Padmore, Dudley Thomson – e trazido para dentro por correntes políticas nacionalistas. Ele tinha a virtude de servir de contra-ponto a uma imagem unitária do continente, construída à volta da inferioridade africana. Mas apresentou desde o início uma série de fraquezas, a mais importante das quais era o próprio nacionalismo. A fonte de afirmação dos novos Estados (que se predispuseram na constituição da Organização da Unidade Africana a não contestar as fronteiras herdadas do colonialismo) contradizia o propósito proclamado de unificação do continente. Mas mesmo assim essa ideologia pan-africanista encontrava ressonância, visto que ela servia de contra-ponto e posicionava o continente em uma vertente de contestação do tipo nacionalista, mas desta feita a nível continental. E foi assim que a África moderna se manifestou perante o mundo: com uma ideologia fraca, mais bem do que com um objectivo pragmático.

 

Os grandes pensadores do nacionalismo foram do Norte de África – Habib Bourguiba da Tunísia, Gamal Abdel Nasser do Egito e Mohamed V do Marrocos enquanto os ferrenhos pan-africanistas estavam mais ao Sul – Hailé Sellasié da Etiópia, Jomo Kenyatta do Quénia, Keneth Kaunda da Zâmbia, Ahmed Sekou Touré da Guiné-Conakry, Modibo Keita do Mali, Julius Nyerere da Tanzânia e, o maior deles todos, Kwame Nkrumah de Gana.

 

As lutas de libertação nacional, também tinham um espaço importante no imaginário dos intelectuais africanos, mas menos influencia. Conhecem-se os ciúmes de Senghor e Sekou Touré em relação ao protagonismo de Cabral. Esses movimentos influenciavam o pensamento dos intelectuais e davam um foco claro às reivindicações internacionais africanas. Só a libertação da África do Sul do regime de apartheid encerrou esse foco, que durou varias décadas. Paradoxalmente essas lutas serviam de ponte entre os princípios nacionalistas e os princípios pan-africanistas. As lutas da Argélia, das colónias portuguesas e mais tarde da Rodésia e África do Sul, serviram de atracção para as relações internacionais do continente.

 

A visão política dos intelectuais africanos sempre foi ambígua em relação à democracia. Quando se estabeleceu a Associação Africana de Ciências Políticas, AAPS, em Dar-es-Salam, de cujo directório viriam a sair muitos dirigentes políticos africanos, o foco era a análise de classe. A influência de Cabral foi muito forte. As suas teorias sobre as elites e a pequena burguesia influenciaram as análises.

 

Tanto em Dar-es-Salam como em Dacar havia um ambiente cosmopolita, com intelectuais vindos de muitos outros países, patrocinados pela benevolência intelectual dos Presidentes Nyerere e Senghor. A acolhida às ideias de Frantz Fanon, Amílcar Cabral e outros nacionalistas pensantes era grande. A contribuição da nova vaga de historiadores africanos como Joseph Ki-Zerbo e Cheikh Anta Diop aumentavam a vontade de mostrar uma África de pirâmide invertida: em vez da inferioridade, lisonjear uma certa autenticidade que dava um carácter humano superior aos africanos. Era um momento de vanguarda, onde as lutas africanas contra os restos de colonialismo e o apartheid e em favor de um mundo mais justo faziam manchetes positivas. E as primeiras décadas de independência produziram crescimentos espectaculares nos países africanos, mostrando aí também uma imagem positiva de reversão de tendência.

 

 

 

As elites e a pequena burguesia

 

A elite é um grupo que para além do seu lugar funcional tem uma liderança natural nos processos de transformação. Desgastadas hoje, pela super-exposição dos métodos quantitativos, introduzidos pela sociologia americana, as elites jogam à defesa enquanto grupo. Não é de bom-tom falar de elite excepto através da valorização da sociedade do espectáculo. O culto à celebridade camufla a influência mediática na construção de novas formas de aculturação e simbologia. Mas sabemos que, obviamente, as elites tiveram um papel fundamental no desenho da modernidade africana

 

Desde o aparecimento do movimento republicano, portador de valores de integração cidadã e de laicização, o Estado passou a fundamentar-se no direito. As elites souberam operar a transformação do poder público através do alargamento da participação, a construção de valores de interesse público e tradições de humanismo cívico. O papel da elite serviu de sustentáculo a transformação operada pelo republicanismo. Mas as formas aglutinadoras de identidade nacional foram deturpando um conjunto de desenvolvimentos políticos que mudaram, para pior, o entendimento sobre os valores democráticos. A distinção entre público e privado ficou mais ténue. Apesar disso os novos liberais celebraram uma certa apatia política, por a considerarem uma demonstração pelos cidadãos da sua confiança nos poderes instituídos.

 

Os movimentos nacionalistas inspiraram-se nestes desenvolvimentos. Todos começaram por ser agrupamentos de uma elite letrada, que depois se estendeu a classes populares urbanizadas e ao campo. Na Guiné e Cabo Verde a ligação com movimentos literários e de consciência cidadã foi marcada por divergências profundas sobre métodos e objectivos. Contestava-se uma certa popularização dos direitos por se achar que estes tinham mais a ver com cidadania de elite do que com justiça social. O movimento intelectual cabo-verdiana da Claridade inscreve-se dentro deste prisma. A ausência de uma Nação consolidada favorecia estas contradições.

 

Consciente deste dilema Cabral esboçou uma teoria sobre o suicídio da pequena burguesia, talvez a sua contribuição teórica mais debatida, por se tratar de um desafio ao conceito de classe, tal como definido pelo marxismo. Segundo o seu postulado a pequena burguesia tinha uma tendência natural para se isolar dos interesses da maioria e se transformar em classe burguesa nacional. Até aí Cabral limitava-se a constatar o que tinha sido o processo natural de constituição das Nações burguesas, na Europa e no mundo. Os primeiros anos de independência de alguns países africanos confirmavam a tendência também em África.

 

Para evitar que a pequena burguesia sucumbisse ao desejo natural de usurpar o poder, era necessário consolidar um processo político que levasse à renúncia dos desejos burgueses da pequena burguesia, através de um haraquiri de classe. Cabral achava que as condições para que tal acontecesse só poderiam ser observadas depois da independência. Fanon defendia que a identificação com a revolução por parte das elites só tinha sentido antes e não depois do seu envolvimento na revolução.

 

Estas visões contraditórias alargavam-se à focalização por Fanon no carácter fundamental dos camponeses, que Cabral considerava apenas como força física, ou motriz, distinta do papel de liderança. Ele achava os camponeses capazes de assimilar as razões objectivas da luta, mas não as subjectivas. Para Cabral o conjunto das classes sociais de um território colonizado transformava-se em classe nacional, deixando para depois a inerência dos seus conflitos internos. A História mostrou que essa sua visão se concretizou parcialmente. O que fica em aberto é como interpretar a lição de humildade de Cabral em considerar que o desafio das elites e da pequena burguesia era o de não trair os ideais da luta de libertação nacional.

 

A solidariedade internacional

 

Com a independência da maioria dos países africanos, a modernidade estendeu-se a um outro tema: o desenvolvimento. A construção da Nação estava directamente associada à vontade de transformação, à esperança num melhor desempenho económico contrariando a inferioridade africana.

 

Quando trinta anos atrás se criou o Conselho para o Desenvolvimento da Pesquisa Económica e Social em África, mais conhecido como CODESRIA, estava-se no auge da escola da dependência, cujo expoente em África era Samir Amin, então Director de um Instituto de pesquisa económica em Dacar, ligado à Comissão Económica para a África da ONU. O CODESRIA depressa se afirmou como o ícone do pensamento sobre o desenvolvimento, e ainda hoje sua história é marcada por essa origem. Samir Amin criou o CODESRIA e engajou-se em um apaixonado debate que envolvia André Gunder Frank, Theotonio dos Santos e Fernando Henrique Cardoso na América Latina.

 

Esses teóricos, na época, eram vistos como desafiantes das teorias económicas sobre o desenvolvimento que imperavam nos países ocidentais. Eles eram atraídos pela visão de que o desenvolvimento não era linear, haveria várias formas de atingir uma distribuição mais justa da riqueza que estaria sendo polarizada em uma relação perversa entre centro e periferia. Acreditavam, pois, que o sistema mundial não era nem justo nem equitativo e não oferecia as condições, se não fosse contestado, para viabilizar o crescimento dos países em desenvolvimento.

 

Estas ideias tinham o seu contraponto político na expressão de uma nova solidariedade. Amílcar Cabral foi uma das bandeiras mais conhecidas desse movimento, sendo, naquela época, referencia e leitura obrigatória para todos os defensores destas correntes de solidariedade, que estiveram na origem da popularização do conceito de terceiro mundo. A sua tese era a de que a união dos povos na luta contra o colonialismo era indispensável, porque enquanto uma colónia permanecesse como tal, a libertação não estava completa. Ele deu máxima importância à constituição da Conferencia das Organizações Nacionalistas das Colónias Portuguesas, CONCP[11], e outros agrupamentos políticos por essa razão.

 

Países africanos independentes depressa assumiram um papel de destaque na reivindicação de uma nova ordem mundial. Capitaneados pela Argélia, e mais tarde a Tanzânia, os africanos conquistaram espaço e foram entusiastas da criação da chamada solidariedade, primeira afro-asiática, e depois tri-continental. Os grandes movimentos de defesa dos interesses dos países em desenvolvimento – Não alinhados, Grupo dos 77, e outros menores como a Organização de Solidariedade dos Países da África, Ásia e América Latina, OSPAAAL – datam desse período, há cerca de 40 anos.

 

Os desafios éticos contemporâneos

 

Do grego ethos, ética pode ser definida como estudo dos limites entre o certo e o errado; dos costumes, obrigações e valores morais de conduta colectiva; e a homogeneidade de comportamento sociais. Definir ética é um passatempo filosófico importante que ocupou Aristóteles, Max Weber e Karl Marx; e Amílcar Cabral também. 

 

A essência do pensamento referencial de Aristóteles em relação à ética é a capacidade de buscar incessantemente o bem comum na base da virtude e excelência; para se ser feliz são necessárias três realizações: possuir bens materiais, para além de possuir usufruir, e ter prazer. O pensamento aristotélico gira em volta das escolhas e a necessidade de deliberar para que estas se processem. É no de deliberar que se exercem as escolhas éticas.

 

 A ética racionaliza uma experiência humana na sua totalidade, diversidade e variedade. “O que nela se afirma sobre a natureza ou fundamento das normas morais deve valer para a moral da sociedade grega, ou para a moral que vigora de fato numa comunidade humana moderna. É isso que assegura o seu carácter teórico e evita a redução a uma disciplina normativa ou pragmática”.[12] Ou seja, a ética teoriza o comportamento moral dos homens em sociedade. E é por essa razão que precisamos de constantemente actualizar as nossas noções sobre a moral.

 

Como todos os actos morais pressupõem a necessidade de escolha, temos de entender porque o mundo de hoje assiste a determinadas escolhas. Logo se entenderá que a segmentação do conhecimento, a reorientação da estabilidade hegemónica através de novas redes de influência, requer, por natureza, uma moral igualmente segmentada e, porque não, assimétrica.

 

“Ter de escolher supõe, portanto, que preferimos o mais valioso ao menos valioso moralmente”.[13] Nós avaliamos as escolhas em termos axiológicos, ou seja, do seu valor. Quando Marx se referia ao fétichismo da mercadoria estava-se a referir à noção de valor na sua dimensão material, mas igualmente ao papel desmembrador do capitalismo nas escolhas morais. O que seria ético nem sempre seria o preferido pela lógica capitalista.

 

Princípios contrários à lógica marxista foram defendidos por Weber, segundo o qual a ética protestante era a principal responsável pelo desenvolvimento capitalista de certos países. Depois se disse o mesmo de Confucius para justificar o espectacular desempenho económico da Ásia do Sudeste e China. Mais recentemente fez-se apelo a ética Janaísta da purificação e cultivo individual para explicar o chamado boom indiano.

 

De facto o desenvolvimento é o resultado de muitos factores. Para Cabral o factor mais importante era o conhecimento da realidade. Ele acreditava que apenas uma identificação específica de um local permitia equacionar a sua transformação. O entendimento da cultura de um lugar é condição necessária para poder ancorar o processo de transformação. A existência de uma ética própria serve para aumentar o sentido de comunidade e de auto-estima, factores entre os mais valorizados na capacitação dos indivíduos, instituições e sociedades. Em tempos de imprevisibilidade o recurso à discussão ética era sinal de valorização e auto-estima.

 

Embora existam sempre variações no discurso ético de qualquer sociedade, estas se têm exacerbado com a globalização. Enquanto nas sociedades ocidentais a tendência vai ser de uma individualização tamanha que acabará provocando uma auto-ética[14] especifica a cada um, já em muitas outras regiões do mundo a defesa da tradição vai-se erguer em barreira contra essa possibilidade. O caminho da solidariedade oferece uma saída. Cabral havia equacionado a necessidade do aprendizado comum, da vontade própria relacionada ao respeito do outro. As suas observações sobre a necessidade de um relacionamento com os portugueses, que considerava igualmente sofredores de um regime totalitário, são de uma generosidade singular. Igualmente valorizava a língua portuguesa e a História comum como elementos da criação de uma identidade própria, que aproximava os portugueses da luta dos guineenses e cabo-verdianos.

 

Depois de ter insistido que os valores do protestantismo podem explicar o enorme sucesso de certos países ocidentais, com o intuito de demonstrar a actualidade de Max Weber, o pensador ocidental Huttington chegou à conclusão que o papel da cultura na definição do destino das sociedades talvez seja mais importante do que se pensava. Até aí tudo bem. Está em companhia de Amílcar Cabral, que muito antes dele chegou à mesma conclusão. Mas o paradoxo é que este argumento é qualificado da forma mais estranha para um intelectual capaz de influenciar uma boa parte da elite do país mais poderoso do mundo.

 

No seu livro mais recente “Quem somos?” Huttington[15] não têm nenhuma hesitação em classificar a qualidade dos diferentes aportes culturais para a construção dos Estados Unidos da América, relegando para segundo plano tudo o que não pertença ao grupo dominante branco, protestante anglo-saxão. Fá-lo de uma forma límpida, inclusive para identificar o inimigo futuro que é a cultura hispânica, sobretudo mexicana. Este seria o grande desafio interno do progresso, da mesma forma que já tinha visto na cultura muçulmana a resultante de um confronto de civilizações com os valores cristãos.

 

As teses de Huttington estão baseadas numa leitura moral e propõe uma ética própria que, a vigorar, é excludente; enquanto paradoxalmente se refugia na defesa dos valores democráticos. Valores vistos como intrínsecos a determinadas culturas. Na realidade não é descabido dizer que existem comportamentos culturais que se correlacionam com determinados comportamentos económicos. Cabral escreveu muito sobre essa verdade. Só que não necessariamente na ordem que apresenta Huttington, e certamente sem a possibilidade de demonstração empírica que ele apresenta. Os países estão hoje “contaminados” (para utilizar o mesmo tipo de expressão usado por certo establishment) por tantas interacções de ordem demográfica, cultural e identitarias que não existem mais culturas puras. Aliás, elas nunca existiram totalmente, mas hoje, graças às razões que tornaram a globalização marcante, ainda menos.

 

É repulsiva a ideia de que algumas culturas seriam correctas, por provocarem determinados comportamentos económicos, ou erradas por não terem como centro determinadas formas de comportamento laboral ou de intercâmbio económico. Segundo Amílcar Cabral mesmo os povos potencialmente considerados atrasados eram capazes de dar lições de civilização indispensáveis ao próprio avanço da humanidade. Daí a sua insistência para que as zonas libertadas da Guine fossem visitadas por inúmeras delegações, inclusive do Comité de Descolonização das Nações Unidas. A forma participativa de poder, defendia, era uma lição de como governar com humildade e respeito pela diferença. As suas análises sobre etnicidade eram pautadas pelo profundo respeito das diferenças.

 

O mundo tem tratado a diferença de uma forma inaceitável tendo conduzido as minorias, e algumas vezes maiorias destituídas de poder, a situações de marginalidade. Para uma parte importante deste mar de marginalizados apenas resta o activismo. Se os valores éticos de Amílcar Cabral fossem respeitados poderia centrar-se o debate sobre a multiculturalidade e diversidade de uma forma diferente. Porque o mundo não vive um choque de civilizações. O mundo vive uma civilização humana diversa e plural. Entender este mundo requer uma abertura à diversidade e liberdade cultural. Essa atitude não pode ser entendida, e muito menos defendida, sem uma actualização da moral e da ética. Essa actualização deve comportar as cautelas aqui evocadas.

 

Descobrimos com o genoma humano a complexidade do que somos. Descobrimos com a física quântica a gama de atributos do universo. Mas paradoxalmente os seres humanos têm dificuldade em admitir que não existem identidades, tão finamente definidas e classificadas. O desafio ético de hoje, esse passatempo dos filósofos, é admitir estas diferenças e considerá-las enriquecedoras. Como fez Cabral até ao momento em que a intolerância pela diferença lhe interrompeu a vida em 1973. Comemoramos hoje o fato de não terem conseguido interromper a sua influência.
 


[1] Sociólogo, com vários diplomas do Instituto Universitário de Estudos do Desenvolvimento da Universidade de Genebra e Doutorado em História pela Universidade de Paris 1 Panthéon-Sorbonne. Atualmente é Director Político das Nações Unidas e Assessor Principal de Kofi Annan. Este texto engaja apenas o seu autor.

[2] Sartre em Fanon, Frantz (s./d.), Os condenados da terra, Lisboa: Ulisseia.

[3] Andrade, Mário de (1980), Amílcar Cabral, ensayo de biografia política, México: Siglo veintiuno editores.

[4] Cabaço, José Luis e Rita Chaves, “Colonialismo, violência e identidade cultural”, em Junior, Benjamin Abdallah (2004), Margens da Cultura, São Paulo: Boitempo.

[5] Cabral, Amílcar (1976), A arma da teoria. Unidade e Luta I, Lisboa: Seara Nova.

[6] Idem.

[7] Cabral, Amílcar (1976), A prática revolucionária. Unidade e Luta II, Lisboa: Seara Nova.

[8] Idem.

[9] Ibidem.

[10] Andrade, op.cit.

[11] Andrade, op.cit.

[12] Vasquez, Adolfo Sanchez (2003). Ética, Civilização Brasileira, Rio de Janeiro.

[13] Idem.

[14] Expressão de Edgar Morin, segundo o qual “as nossas finalidades não vão inevitavelmente triunfar, e a marcha da História não é moral. Devemos visualizar seu insucesso possível e até mesmo provável. Justamente porque a incerteza sobre o real é fundamental, é que somos conduzidos a lutar por nossas finalidades. A ecologia da ação não nos convida a inação, mas ao desafio que reconhece seus riscos, e a estratégia que permite modificar a ação empreendida”. Morin, Edgar (2000). A ética do sujeito possível, Ética, solidariedade e complexidade, Palas-Athena, São Paulo.

[15] Huttington, Samuel P. (2004). Who are we? America’s great debate, Simon & Schuster, Londres.

 

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