O Reino da Selvajaria
Bubacar Turé *
07.07.2008
Enquanto a classe política e os detentores do poder continuam a não encontrar soluções viáveis e duradouras para os inúmeros problemas que o país enfrenta, a sociedade guineense vem registando cenas de violência generalizada algumas com cunhos ou conivências das autoridades públicas. É um assunto sério que deve ser encarado como tal, por isso decidimos trazê-lo como tema da nossa reflexão.
Mesmo nos regimes ditatoriais, a segurança e a defesa dos patrimónios dos cidadãos constituem uma das dimensões essenciais do Estado, na sua missão primordial de satisfação das necessidades públicas. Nas democracias pluralistas este objectivo torna-se mais acentuado na medida em que, está em causa a salvaguarda dos direitos fundamentais considerados triunfos inalienáveis da democracia. Significa que, uma das razões da existência de um Estado moderno é a criação de condições efectivas para o gozo pleno dos direitos individuais, assim como garantir o funcionamento das instituições democráticas.
Hoje, devido aos graves problemas estruturais que a Guiné-Bissau enfrenta, resultado do colapso da reconstrução política social e económico pós-conflito, a incapacidade dos órgãos estatais em cumprir com as suas missões essenciais ou seja a criação de condições que forneçam os serviços básicos às populações, estão a criar terreno propício para a instalação do caos neste pequeno país da África ocidental. Temos um sistema judiciário que em princípio devia ser o guardião final dos direitos fundamentais, mas que não funciona, e, está cada vez mais descredibilizado incentivando a vendicta privada. A corrupção no próprio aparelho judiciário e a falta de vontade política para criar condições materiais e humanas com vista ao seu funcionamento pleno e eficaz, estão a minar a confiança dos cidadãos no Estado, consequentemente a impunidade é premiada.
Um dos vectores axiológicos de um Estado de direito democrático é sem duvida a existência de um sistema judiciário forte, independente e corajoso, capaz de condenar de forma consciente e nos termos da lei os criminosos e ilibar os inocentes. Só assim estaremos em condições de conviver em harmonia, na paz e progresso e não com as amnistias que visam reabilitar política e socialmente determinadas pessoas, que cometeram os mais hediondos crimes neste país, para além de terem ofendido a moral pública.
Conforme facilmente constatado, vivemos num autêntico reino da selvajaria, sem ordem e muito menos autoridade de Estado, o que me faz duvidar se no plano material podemos continuar a falar da existência de Estado nesta terra de todos nós. É evidente que no plano formal estão reunidos todos os pressupostos desta nomenclatura, contudo, o conteúdo e a razão de ser do termo encontram-se, neste momento, esvaziados de forma grave, facto que nos leva a concluir que, cientificamente temos um Estado falhado.
O nível de disputa e de conflitualidade existente entre as corporações policiais guineenses nomeadamente, a Polícia Judiciária e a da Ordem Pública, remonta de longa data e, a meu ver, teve e continua a ter cunhos políticos que visam controlar a favor de interesses inconfessáveis, o complexo e arcaico esquema de segurança existente no país, desprovido de um quadro legal e transparente. Esta última foi sempre utilizada ao serviço do mal sob manipulação dos diferentes inquilinos do poder. A problemática do narcotráfico apenas veio reforçar e acentuar o clima injustificado de desconfiança que existia entre as duas instituições, hipotecando assim, a segurança e a vida dos cidadãos.
O recente ataque deliberado às instalações da Policia Judiciária e posterior execução brutal do agente Liberato Neves pelos agentes da polícia de intervenção rápida, é a expressão máxima da violência e do terror por que, perigosamente, este país está a encaminhar. Este acto ignóbil que ultrapassou todas as expectativas da barbárie e do caos vem mais uma vez interpelar a consciência dos guineenses sobre o nível da vulnerabilidade e da insegurança em que nos encontramos. Os autores deste acto macabro já engrossaram a lista do sindicato de impunidade, beneficiando de uma protecção especial da hierarquia do Ministério da Administração Interna.
Este espiral de violência gratuita, alastra-se um pouco por todo o território nacional, depois de Bissasma, Sector do Tite, onde a Igreja Evangélica foi violentada resultando em 14 feridos, agora é a vez do Sector de Bissorã, norte do país, a protagonizar actos de violência generalizada, com o aparecimento de um grupo de indivíduos auto proclamado Nkuman, prendendo e infligindo indiscriminadamente, castigos severos às pessoas sob pretexto de agirem em nome de uma falsa ordem e tranquilidade pública. Curiosamente, este grupo actua por dispor de um suposto laisser passer do Ministério da Administração Interna facto que até agora não foi desmentido publicamente. A Confirmar esta versão, estamos perante uma institucionalização ilegal da violência por parte do Estado, cujas consequências são imprevisíveis sobretudo com o aproximar do conturbado período eleitoral. Sabe-se que este grupo de milícias tem estruturas consolidadas em todas as Secções da região de Oio colocando fortes interrogações sobre as reais motivações dos seus precursores. O sector de Bissorã constitui um santuário de violência onde as pessoas são assassinadas cruelmente por serem suspeitas da prática de bruxaria (feitiçaria) sem que sejam accionados os mecanismos legais para a punição dos infractores.
Ainda na cidade de Bissau, fiquei escandalizado e estupefacto com uma outra cena de violência protagonizada pelos agentes afectos à escolta de sua Exa. Sr. primeiro-ministro Martinho Dafa Cabi. Tudo aconteceu no passado dia 21 de Junho do corrente ano nas imediações da Rádio Bombolom FM – Bairro do Reino, quando apareceu a viatura em que seguiam estes elementos cujas identidades desconheço, entraram em discussão com um Taxista sobre a prioridade na estrada. Esta simples troca de mimos levou um dos elementos a retirar uma arma tipo AK na viatura ameaçando matar a tiro o referido condutor. Houve gritos de socorro por parte da população que desesperadamente veio assistir ao episódio. Estes relatos são apenas exemplos da dimensão e grau de insegurança e de violência a que todos nós estamos expostos, sem qualquer solução a curto e longo prazo, na medida em que são factos que ninguém quer abordar, principalmente os detentores do poder.
Um sistema legal cujas regras são ignoradas pelos agentes estatais torna-se incapaz de obter a adesão dos cidadãos. E aí a lei passa a ser vista como instrumento de controlo social em vez de mecanismo de resolução de disputas. Afinal, um sistema democrático difere do autoritário pela sua confiança em induzir a cooperação entre os indivíduos e instituições em vez de desconfiança e disputas. Leis por sua vez, não precisam ser concebidas como mera variável independente, pois ela por si só é o resultado das escolhas estratégicas dos actores políticos.
Alem do mais, regras para serem efectivadas precisam ser acompanhadas de mecanismos de monitoramento. Tais mecanismos devem evitar a impunidade, violações à lei sem que haja sanção, para evitar o descrédito institucional que é por sinal, crescente no nosso país.
Estado de direito pressupõe existência de segurança jurídica e esta só pode florescer quando há uma ordem conhecida e respeitada. Ordem no sentido de que são pessoas que convivem sob determinada forma e não apenas um conjunto de leis. Caso a democracia venha, um dia a ser efectivada na Guiné-Bissau, é condição necessária que o Estado de direito diminua a distância entre a ordem legal formal e sua aplicação. A distância entre o país legal e o país real aumenta na medida em que os direitos humanos são sistematicamente violados. É claro que a solução dos problemas dependem da sensibilidade dos políticos em aferir correctamente os anseios do povo e atendê-los na formulação e implementação de políticas públicas.
É urgente mudar o estado das coisas permitindo que os cidadãos se sintam seguros e protegidos e, se por algum motivo houver alguma violação dos seus direitos, haja possibilidades de repará-los eficazmente. Esta é a superioridade do Estado de direito onde reina o império da lei e da ordem. A nossa história já provou, que a ostentação da força e da violência é o nosso inimigo comum e constitui um entrave sério para o progresso.
A pacificação dos espíritos do homem guineense, a adopção do diálogo construtivo como estratégia de resolução de conflitos, são antecâmaras para o desenvolvimento sustentado de qualquer nação. Vamos optar por esta via.
* Jurista e activista dos direitos humanos
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