Relato de um Guineense!

 

 

 

Por: Joaquim Silva Tavares (Djoca)

 

Prof. Joaquim Silva Tavares (Djoca)

02.10.2007

 

Sim, ainda sou cidadão guineense!

Com coração e passaporte guineense, orgulhoso de ter nascido na Guiné e esperançado em votar nas eleições de 2008!

 

 Nasci no dia 19 de Setembro de 1959, um sábado, pelas 13 horas e à partida, estava destinado a não viver; infelizmente, pelo que agora sei da minha experiência como médico, provavelmente nasci com um edema generalizado (muita água no corpo) de causa desconhecida na altura, sendo que, a primeira sugestão que os Jambacusses e feiticeiros fizeram à minha mãe foi para me abandonar no "mato", o que felizmente não aconteceu.

 

As primeiras semanas foram difíceis para a família, principalmente para o meu pai que, ao fim do dia, quando voltava do trabalho e se aproximava de casa, desligava o motor do carro, tendo a alma e o coração em sobressalto, temendo ouvir alguém a chorar, o que seria o anúncio do meu falecimento.

 

Felizmente, consegui sobreviver. Nunca me disseram se me tinham levado ao hospital ou aos curandeiros tradicionais, mas o que importa é que consegui sobreviver.

 

Nasci  em Bissau na zona de Varela (na altura os meus pais partilhavam uma casa com o Sr. Eugénio/Tia Lurdes Cardoso (pai da Alzira, Bernardino, Caló, Nado, Ausenda e Plácido), o tio Kica e a tia Saudo (pais do Mário Laurentino, Titina, Avelino, Pumpun, Odete e Beto ).

Foi uma infância muito feliz (eu com os meus irmãos: Galileu, ká, Zita, Atoni, Kinite e Alexandre).

 

Cedo mudamos para a rua S. Tomé perto da escola Teixeira Pinto (depois Vasco da Gama) era a casa do meu avô Joaquim Tavares (Nbapa).  Como já era reformado, passava horas a jogar às cartas com o Nto Pires, o Ossagu, o pai do Marcelino da Mata (não o militar, mas o enfermeiro).

 

Levantava-me às 5 da manhã com o meu pai para ir passear o nosso cão entre o antigo jardim Teixeira Pinto e a bomba de água umas vezes, outras vezes íamos até à zona de chão de papel, peré, pântano, etc.

 

Num destes passeios, eram 4-5 da manhã, deparamo-nos com um senhor muito alto e que cobria a cabeça com um chapéu de palha que também quase lhe cobria por completo a cara; chamou o meu pai pelo nome, o meu pai parou para lhe ver melhor a cara, mas ele apressadamente disse para o meu pai continuar a caminhar (mais tarde, o meu pai disse-me que era o Tchutchu Axon que provavelmente estava numa missão; o Tchutchu trabalhou como ajudante de motorista do meu pai até quando foi incorporar-se  nas forças do PAIGC.

 

Outro facto que também sempre me fascinou, por se rodear de um certo secretismo: sempre às 8-10 da noite, vinha um carro à casa da nossa vizinha a tia Pago (mãe da Helena, do Nkrumah, da Dulia e da Nhima) trazer um homem de cabelos já um pouco grisalhos que se sentava com a família e depois de algumas horas o punham outra vez no carro e levavam-no; Só mais tarde vim a saber o nome desse homem: Rafael Barbosa.

 

Um outro vizinho que também nunca vi, apesar de já ser uma lenda na altura, era o Nelson Galina Barbosa (éramos muito amigos da mãe dele e dos seus irmãos: o Abel Galina, o Rui Galina, a Inês e a Lúcia).

O Nelson era como o "motorcycle boy", no filme de Francis Coppolla -Rumble Fish: herói dos miúdos do bairro, audaz, líder, mas que todas as mães queriam longe dos seus filhos para não os "desencaminhar"!!! 

 

Outros vizinhos à época e com os quais  tratávamos como familiares, eram a tia Mamae e os filhos: Pequenina, Huco Monteiro e Céu; por vezes, ficávamos na rua à luz do luar a contar histórias e mais histórias até chegar a hora de ir dormir porque tínhamos que nos levantar cedo para ir à escola (IR À ESCOLA), por imposição dos nossos pais, por vontade própria  e para sermos "alguém na vida".

 

A escola era o único meio que tínhamos ao nosso alcance e todos nós fizemos um grande esforço para triunfar; penso que, infelizmente, é o que estamos a tentar privar as nossas crianças hoje em dia.

 

Temos que voltar a incutir nelas e nos jovens, a realidade de que, embora haja meios mais rápidos de ganhar dinheiro e triunfar na vida, a melhor garantia de futuro é ter, pelo menos, uma educação básica que lhes permita estar mais apetrechados para triunfar na vida e, "o que se aprende na escola não tem preço".

 

Falando de escola, para mim, quando estava na casa dos meus 5-7 anos, era a última palavra que queria ouvir: detestava ir à escola: gostava de brincar, jogar à bola com os amigos todos os dias, ler "livros de cowboys, sete balas (o meu favorito era o Mendoza Colt e o Rabietas); muitas vezes saía para ir à escola e em vez de ir às aulas, ia para o estádio Sarmento Rodrigues (Lino Correia mais tarde) jogar com colegas.

 

A minha primeira professora foi a dona Hermínia (ainda me lembro do primeiro dia de aulas em que ela me mandou à casa de banho por 3 vezes para lavar as mãos; era uma santa; muito dedicada, muito paciente; tenho saudades dela). De seguida tive a dona Manuela Rola (boa professora, mas tinha um génio danado: dava pontapés e murros; se fosse nesta altura 2007 iria ser despedida no primeiro dia, mas provavelmente,  na altura tinha que ser assim).

 

Foi neste período que detestei ir à escola. Faltava às aulas, não fazia os trabalhos de casa e à última hora ia para a casa do Chico Correia para ele me ajudar com os trabalhos de casa.

 

No fim, chumbei na segunda classe. Foi o maior desgosto na vida da minha mãe. O meu irmão mais velho, o  Galileu (o mais inteligente da família) nunca teve problemas com a primária, o meu irmão Ká também estava a ir bem; eu era na altura a "ovelha negra" da família.

 

Assim, no Verão lá me matricularam na escola do tio Chico Gama (fui despedido depois de uma semana). Seguiu-se a escola do tio Dindino (nesse seu acento das ilhas, disse à minha mãe que eu não tinha cura...).

 

Finalmente, fui parar à escola do tio Bernal no chão de papel e lá comecei a florescer.

Os meus instrutores na altura eram o Zé Carlos (Padass), o Adriano, o Alfredo Alves e o Augusto. Na altura, colegas de quem me lembro, alguns mais velhos, outros mais jovens: o Silvestre Alves (sempre muito eloquente desde jovem), o Cirilo Nbake, o Quintino (há 2 semanas disse-me que o nome dele era Cabral, o líder), o Caíto (Carlos Jesus), o Vítor, etc.

 

Penso que foi o ponto de viragem na minha vida. Desde então, nunca mais tive problemas com escolas.

No meu primeiro ano após o chumbo (segunda classe), recebi o prémio de melhor aluno, das mãos da Dona Maria Helena de Spínola (esposa do governador da Guiné na altura, 1968).

 

A minha professora era a Dona Maria do Carmo que por coincidência, foi professora da minha mãe quando ela estava na segunda classe.

 

Penso que houve vários motivos para esta reviravolta:

Forte núcleo familiar (pais, a minha tia Teresa que não brincava com assuntos da escola e colegas à volta ). Quantas crianças se perdem agora e se perderão na vida hoje na Guiné, por falta de alicerce familiar, de colegas motivados e de escolas estruturadas?

 

Durante este período, conheci colegas com dons extraordinários e olhando atrás, penso que houve inúmeros talentos desperdiçados: lembro-me do Onpan, com dons extraordinários para inventar e construir coisas, que me deixava boquiaberto (de vez em quando, tento imaginá-lo aqui nos Estados Unidos no século vinte e um, com as capacidades que ele tinha na altura).

 

Às vezes dá-me vontade de chorar quando me vêm à memoria nomes e imagens de colegas  e o que teria sido da vida deles se as coisas fossem diferentes...

 

Em 1970, fomos ao acampamento da mocidade em Quinhamel eu e o meu irmão Galileu.

Infelizmente, ele ficou doente e tivemos que voltar para Bissau; ele iria falecer dias mais tarde e pelo que sei agora, foi de tétano. Sempre tive a convicção de que ele iria ser o mais bem sucedido da família e até hoje tento trabalhar para tentar ser aquilo que eu, nos meus sonhos de criança projectei que ele viria a ser (Deus abençoe a sua alma).

 

Entretanto a vida continuava: eram os campeonatos de futebol na escola Vasco da Gama: os Anulas, os Cópios, etc. com os Dólitos, Zé Cratos, Tados, Onpans, Chamber, Caló capitão (sempre um grande líder, desde muito cedo), Bebé, Avelino, Djau, Nhama, Enceler, Ntchancho, Papa tchias, Guto, e outros.

 

"Viajando" mais depressa, vou ultrapassar o período do liceu (será para outra altura) e entrar para o meu último ano na Guiné:

 

Comecei a dar aulas à noite no liceu em Setembro de 1978. Foi um período bom, senti  que estava a ser útil para a sociedade e foi uma experiência muito interessante (quantos sacrifícios alguns indivíduos tinham de fazer para conseguir ter alguma formação, mas faziam isso porque valia a pena, e não se queixavam).

 

Aos domingos, aproveitava para dar explicações de Matemática a conhecidos e colegas que necessitavam de ajuda; lembro-me na altura o Sr. Honório Sá que era comandante da policia ir-me buscar a casa para estudarmos Matemática, Física e Química: via-se que as pessoas queriam avançar na vida através da educação e é esse entusiasmo que está a desaparecer hoje em dia na Guiné...

 

Entretanto, ainda jogava futebol no Benfica o que me permitiu viajar e conhecer lugares que não conhecia, como, por exemplo, Ingoré.

 

A nossa última viagem como equipa, foi uma visita a Bafatá para celebrar o triunfo no campeonato de 1979. Lembro-me que, depois do jogo, houve festa e por volta das 2-3 da manhã, com colchões e esteiras improvisadas, a maioria de nós foi-se deitar num quarto e era cada um a falar dos seus sonhos e aspirações: o Pita Marta a sonhar ir jogar para Portugal, o Carlos Mané o mesmo, o Iano(Graciano Xavier) a sonhar com Paris e juntar-se ao irmão Venâncio para jogar e estudar, o Niná aí caladinho sem sequer abrir a boca, eu, Djoca, sonhando ser um dos melhores médicos da África ocidental e "salvar muita gente com necessidade", o Abelha (na altura não sei se já estava nos Estados Unidos, mas se não, também aí estava no mesmo quarto a sonhar em ir para os Estados Unidos).

 

SONHOS, SONHOS, SONHOS, eram tempos em que jovens ainda podiam sonhar com a convicção de que poderiam realizar os seus sonhos. É este espírito que temos que fazer renascer na Guiné: todos a terem o direito de sonhar e acreditar que podem alcançar o impossível.

 

Uma palavra de louvor a dois conterrâneos:

 

O Dr. António Spencer (Tony) pelo trabalho extraordinário que tem feito como oftalmologista em Portugal e pelas tentativas que tem vindo a fazer para ajudar pessoas necessitadas  na Guiné (sem praticamente nenhuma colaboração  de conterrâneos radicados na Guiné, mas... NÃO DESISTAS amigo: os grandes homens estão sempre a remar contra a maré e contra os adamastores.

 

O  Sr. Henrique Ribeiro que tem estado a elevar o nome da nossa terra aqui nos Estados Unidos através de trabalho árduo e liderança na comunidade, liderando com exemplo (filhos crescidos, inteligentes, trabalhadores, grande sentido cívico e cientes dos benefícios duma boa formação superior no ensino); parabéns a ele e à Clarice; JOB WELL DONE.

 

Mashiko, Djoca e Henrique

 

 FOTO - Álbum de Henrique Ribeiro: Casal Tavares na companhia de Henrique Ribeiro

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VAMOS CONTINUAR A TRABALHAR!

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