Resistência e morte de António Alcântara Buscardini

 

 

 

 

Por: Norberto Tavares de Carvalho, « O Cote »

 

 

06.10.2006

 

 

No cair da noite de 14 de Novembro, estava eu em companhia de um colega de trabalho, quando reparámos um certo tumulto nas ruas de Bissau. Propagava-se que os prisioneiros da Primeira Esquadra, situada perto das Galerias da Amura, tinham sido libertados. Dirigimo-nos de carro à Esquadra mas, à frente do Quartel da Amura, fomos obrigados a interromper a progressão.

 

Soldados armados, com tanques blindados interpostos nos cruzamentos, barravam o acesso às ruas da baixa de Bissau. Um deles apontou-nos a Kalachnikov e berrando, deu-nos ordem de recuar. Assim, reunimo-nos de seguida ao camarada Buscardini que já se encontrava no seu gabinete de trabalho. Disse-nos simplesmente que tentava comunicar com os responsáveis do exército mas que até aí não tivera sucesso. Telefonava ora para a Amura, ora para a Marinha, ora para a Força Aérea. Falou com alguns oficiais das FARP que, aparentemente, não estavam ao corrente do golpe de Estado.

 

O Presidente Luís Cabral encontrava-se na Ilha de Bubaque. O telefone soou e o Chefe (Buscardini) pegou no auscultador. Era o Comandante da Marinha de Guerra, o camarada Julião Lopes que se encontrava em linha. Disse que tinham disparado sobre ele e que conseguira escapar por um triz encontrando-se naquela altura no seu posto de comando. Combinaram manter contacto telefónico.

 

Buscardini tentou falar, em vão, com o João Bernardo Vieira «Nino», Comissário Principal (1° Ministro). Um véu de dúvidas e de mal-estar instalara-se no ar. Entretanto, aparecera no gabinete o Comandante das Forças da Guarda Fronteira do então Comissariado de Estado do Interior, o camarada José Sanhá, que pediu que lhe dessem um punhado de homens armados e munições para que fosse ver, de perto, o que se estava passando. Estranhei-me que a sua oferta não tenha tido eco…  Pouco a pouco o gabinete começou a desertificar-se. No fim ficaram os camaradas Lourenço Gomes, membro do Comité Executivo de Luta do PAIGC e Comissário Divisionário, o Amarante (apelido ?), cunhado do camarada Buscardini (não confundir com o Engenheiro Amarante Furtado) e eu, na altura, Comandante do Departamento Central da Migração.

 

O gabinete não oferecia muita segurança e os dois responsáveis, interrogando-se, resolveram abandoná-lo para uma residência privada na rua Eduardo Mondlane onde morava um amigo fiel do camarada Buscardini, o Sr. José Caetano Barbosa, do Secretariado de Estado das Pescas. Saímos num carro banalizado. O camarada Buscardini empunhara a sua Aka e abastecera-se de munições. Até aí, o seu guarda-costas, o N’Bunh, cerrava fileira.

 

 Na residência do «Zé» Caetano, continuou os contactos telefónicos. Combinamos que se o telefone tocasse que fosse o dono da casa a responder, para evitar imprevistos desagradáveis. O contacto com o Julião Lopes da Marinha era o único que se mantinha activo. O Chefe decidiu ir ter com ele. Foi daí que lançou então a seguinte frase : « Vamos para a Marinha, é o único foco de resistência ! » Mas quando dispunhamos a abandonar a residência, o carro tinha sumido!

 

O guarda-costas informou-nos de que fora o cunhado do Buscardini quem o tinha levado, sem advertir ninguém… O grupo reduzira-se: o camarada Buscardini que não podia conter o seu nervosismo, o « Tio » Lourenço, um dos maiores estrategas da segurança, que parecia completamente perdido, o dono da casa e eu que tentava acalmar o Buscardini.

 

O guarda-costas também desertara. Regressámos de novo ao interior. A radio só dava músicas militares. Até que alguém falou na antena ! O Buscardini ouviu a voz e o curto discurso e ficou convencido de que se tratava de um ex-Comando Africano, enquanto que o « Tio » Lourenço dizia que era o « Nino ». O Chefe pegou no telefone e falou com a sua mãe. Fiquei com a impressão de que se tratava de um testamento. Pediu-lhe que fizesse as pazes com a sua nora e que velasse pelas crianças.… Quando pousou o auscultador, tive o sentimento de que ficara mais calmo…

 

Falou com o Adido Militar da Embaixada da então URSS pelo telefone. Disse-me que devia ir encontrar-me com ele e explicou-me exactamente onde este deveria se encontrar.

Saí pelas ruas que já estavam repletas de militares e consegui chegar ao lugar combinado. Do Russo, nem rastos! Esperei cerca de dez minutos e regressei ao encontro do Chefe que me explicou que afinal Victor, o Russo em questão, telefonara explicando que não conseguira progredir na direcção combinada pois os militares faziam obstrução de todos os lados. O mesmo disse-lhe então que ia servir-se de um carro diplomático, ideal em tais circunstâncias.

 

Pela segunda vez, eu devia ir ao seu encontro. De novo, atravessando murros e quintais consegui, por sorte, evitar as barragens militares e chegar ao lugar combinado. Do Victor, nem um sinal! Regressei junto ao camarada Buscardini. A partir daí o Adido Militar não mais deu sinais. Busacardini atingia o auge do paroxismo, não parava de mexer na Kalachnikov, de sentar-se sobre a cama, de levantar-se e de armar o carregador. Um nervosismo extremo apoderara-se dele e confesso que comecei a ter medo: António Alcântara Buscardini podia disparar em qualquer momento !

 

Não creio ter visto sinal de medo algum na sua cara. Era mais uma fera que, acossada, se sentira traída e face a um destino iminente.  Mas eis que de repente, o telefone soa de novo e ele pega no auscultador sem que eu tivesse tempo de o impedir.  Felizmente tratava-se da minha mulher que me procurava. Falei com ela.  Estava à espera do seu segundo um bébé. O Chefe falava pouco; Aka em riste dedo no gatilho, creio que, mentalmente, teve tempo de se preparar.

 

A minha mulher telefonou de novo. O Acessor da Migração, o Carlos (não me lembro do seu apelido), fora à casa à minha procura. Estava acompanhado de mais dois dos seus compatriotas, todos da Missão do Ministério do Interior de Cuba. Fui ter com eles, a pé, e fi-los o ponto da situação. Estiveram de acordo em ir resgatar o Chefe. Chamei o Buscardini pelo telefone e expliquei-lhe o que os cubanos pretendiam fazer. Perguntou-me em que tipo de carro circulavam e quando lhe disse que era o carro habitual, não ficou convencido, preferia um carro diplomático.

 

Os cubanos decidiram ir buscá-lo. Saímos da rua Severino Gomes de Pina onde eu morava e logo no cruzamento da rua Rui Djassi, a uns cem metros mais abaixo, fomos interceptados. O Acessor, que se encontrava comigo no banco de trás, cobria-me com o seu corpo, ora  de um lado ora doutro, cada vez que os soldados perscutavam o interior do veículo. O facto de haver corte de energia naquela zona, facilitava-nos o avanço. Os poucos metros que nos separavam do lugar onde se encontrava o camarada Buscardini foram os mais arriscados, pois os militares já estavam por todo o lado e paravam tudo e todos.

 

Os cubanos esses, identificavam-se no idioma castelhano, lançavam algumas saudações e continuavamos. Apesar da incómoda posição em que me encontrava, consegui orientá-los até à  rua Eduardo Mondlane e indiquei-lhes a casa. Mas era perigoso descer do carro pois os militares estavam já mesmo em frente à casa. Creio que nessa altura não sabiam que o alvo se encontrava aí.

 

Devíamos esperar que as tropas se afastassem. A cerca de uns metros da casa, tive que me separar dos cubanos. Desci da Renault e fui ter com a minha mulher. A nossa casa ficava a uns duzentos metros do sítio. Persuadi-me que os cubanos iam resolver o problema, mas era mais uma esperança do que uma verdadeira convicção. As ruas estavam infestadas de homens em camuflado.

 

Já em casa, peguei o telefone e expliquei a situação ao Chefe: os cubanos rodavam aí à volta à espera de uma oportunidade para o tirar daí. Expliquei à minha mulher de que estávamos face a um golpe de Estado e que fora o Rafael Barbosa, dissidente do PAIGC quem finalmente tomara o poder (Na altura não sabia que era o João bernardo Vieira o autor do golpe).

 

Quando cerca de meia hora depois ouvi o deflagrar de um intenso e brutal tiroteio vindo daí perto, compreendi que os cubanos não lograram o intento. Soube alguns dias depois que o Amarante, que tinha utilizado o carro do Chefe, fora interceptado e dera com a língua. Cerca de meia hora depois das armas se terem calado, vieram buscar-me. Deslizei-me na noite…

No dia seguinte, no meu novo e efémero esconderijo, fui informado da morte do camarada António Alcântara Buscardini.

 

O erro que a segurança cometera, na tarde do mesmo dia 14 de Novembro de 1980, fora fatal para ele. Em companhia do Lourenço Gomes, Comissário Divisionário, tinha-se dirigido ao João Bernardo Vieira a quem comunicara a informação na sua posse, de que o próprio preparava um golpe de Estado para o dia 16 de Novembro, dia das Forças Armadas. Segundo se diz, desde o período da luta armada, o « Nino » é constantemente acusado de tentativas de divisão no seio do PAIGC, mas sempre conseguira iludir as investigações.

 

Buscardini, talvez influenciado pelo seu Comissário Divisionário, teve essa estranha atitude de boa-fé mas completamente anti-operacional de supor de que era mais uma dessas acusações sem reais fundamentos. Ele que sempre nos exigia o tratamento aprofundado de qualquer tipo de informação, « … segundo as regras de base da contra-espionagem », não cansava de repetir. O Chefe sucumbira portanto à acção desencadeada pela sua modesta e contraproducente presença no recinto golpista.

 

No desenrolar da acçao, também um soldado teria sido morto. Fazia parte do grupo que tentara incrustar-se pelas traseiras da casa e teria sido abatido, por azar, pelos que disparavam desenfreadamente pelo lado da frente. Da mesma fonte, na mesma noite do 14 de Novembro de 1980, ainda um outro militar teria sido abatido na Amura pelo próprio João Bernardo Vieira que teria interpretado mal o gesto do soldado e atirara de rompão sobre ele, matando-o.

 

Nem tudo esteve límpido na tomada do poder do «Nino». Por exemplo o caso do Sr. Rafael Barbosa que merece aqui uma pequena digressão: Fonte fidedigna declara que o ex-Presidente do PAIGC, teria sido levado da Segunda Esquadra onde se encontrava preso, ao Quartel da Amura  pelo Yafai Camará (Comandante Militar de Quêbo) e Anssumane Mané, o « Bric-Brak», a pedido do João Bernardo Vieira, que contava com o seu apoio para dar maior credibilidade ao golpe.

 

Ademais, ao que parece, o « Nino » sempre adulara o ex-líder. Durante o seu julgamento, ter-se-ia até deslocado ao Tribunal da Base Aérea de Bissalanca, acompanhado de dois dos seus guarda-costas. Não ocupara o lugar reservado aos dirigentes do Partido, preferindo passar incógnito mantendo-se nas traseiras do edifício, donde assistiu à sentença do seu ídolo. Na noite do golpe, o « Nino » vendo o Rafael Barbosa entre o Yafai Camará e o « Bric-Brak», teria mesmo versado lágrimas julgando o estado em que se encontrava o Rafael.

 

Depois dessa cena, teria dito ao « Homem-Grande » para que fosse à Rádio Difusão Nacional « falar ao seu povo !». Mas na Rádio, enquanto o Rafael se exprimia em directo, o Manuel Saturnino da Costa, a mando do mesmo João Bernardo Vieira, aparentemente sob proposta do Sr. Victor Saúde Maria, Ministro dos Negócios Estrangeiros do governo que acabara de ser derrubado, teria interrompido a comunicação do Rafael. O Ministro teria sugerido o afastamento do Rafael Barbosa das operações como forma de dar uma melhor imagem do acontecimento no plano internacional…

 

Compreendendo que fora instrumentalizado, Rafael Paula Gomes Barbosa, romperia definitivamente as relações com o João Bernardo Vieira.

 

No dia 17 de Novembro de 1980, a Missão do Ministério do Interior de Cuba em Bissau entregava-me aos golpistas. No dia 19, a minha mulher dava luz. Em Maio de 1983, quando fui libertado, tive a oportunidade de conhecer a minha filha: tinha ela dois anos e meio de idade !

 

Quanto a saber se o camarada António Alcântara Buscardini se suicidou ou não, para mim já não tem nenhuma importância. O importante é que as veleidades erigidas à volta do seu nome possam ser esclarecidas. Já a primeira verdade que salta à vista e que hoje mais ninguém pode contestar, é que a sua morte não pôs termo nem aos fuzilamentos, nem às valas comuns e nem às torturas, o que dá matéria a reflectir sobre as alegações do 14 de Novembro.

 

Um triste golpe de Estado de opereta, que, longe de sancionar as violações dos direitos do Homem, edificou, na Guiné-Bissau, uma espécie de « Torre de Babel » (1980-1999), que tanto martírio, tanto atraso e tanta vida custou ao povo guineense. Que desta vez, os Deuses do Universo, o proteja do verdadeiro predador.

 

 

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