Crónica de um Descrente!
Elia, o homem mais velho da aldeia. Foto de Ernst Schade
Por: Marinheiro da Solidão (em homenagem a Jorge Cabral)
Janeiro de 2008
Após quase 4 horas de viagem, o avião inicia o seu trajecto descendente. Começa-se a vislumbrar o “verde do meu país” , cortado por braços de água. Uma imagem quase idílica. Não há dúvida que a mãe natureza foi generosa.
O avião imobiliza-se. Somos recebidos por um bafo de humidade. Estamos em casa.
O aeroporto encontra-se apinhado de gente. Está quente. Vejo vários aparelhos de ar condicionado, mas nenhum parece funcionar.
À entrada uma “oficial” da Polícia de estrangeiros e Fronteiras dá-me as ” boas vindas”. Quase que nem olha para o meu passaporte. Diz-me directamente e sem grandes subterfúgios:
- Amigo...Nô tene peditório!
Diz-me isso com o ar de quem não está à espera de uma resposta negativa. Confiança acima de tudo!
Siga!
Passado esta recepção “agradável”,chega a etapa de arranjar um pedaço de chão em frente ao tapete rolante. As pessoas “armam-se” como podem para a batalha da colheita de malas.. Aqui e ali ouve-se:
- Amigo, amigo, qui mala i di mi, qui mala i di mi...
Após uma longa batalha e litros de suor...tenho a minha mala. Dizem-me que tive sorte. Ela chegara intacta! Pelos vistos, não tem sido costume.
Segue-se a etapa da abertura e revista das malas. Diz-me um militar todo solícito:
- Djubi dé...pa ka no cansau kabeça, danu dê qualquer kussa...
Que simpático, penso eu!
Ao fim de 2 horas no aeroporto, vejo o sol. Vamos enfrentar a cidade de Bissau.
Cá estou eu na Avenida principal a caminho do centro da cidade. De ambos os lados vejo, em construção, autênticos palacetes... dizem-me que é a nova moda (da estrada do aeroporto a Antula, do Bairro de Ajuda ao Sacor, passando por Safim). Pelos vistos, muita gente recebeu heranças inesperadas em pouco mais de um ano. A julgar pelo que vejo, acredito!
Chegado a casa, dizem-me que estão há 5 dias sem água ou luz. Não acho estranho, estou mentalmente preparado! Mas de repente...dizem-me que sou um sortudo...Não é que “luz ku iagu bin”!
Alegria total.
Nos dias seguintes sou brindado por imagens de jeeps e mais jeeps (seja o célebre Hummer ou o K7 ou sei lá mais o quê). Está bem que a estrada não está lá grande coisa, mas com aqueles carros quem é que precisa de estradas? O trânsito está infernal na Av. 14 de Novembro. Pelos vistos não há mais nenhuma estrada de jeito!
Encontro toda a gente preocupada com os salários...Todos perguntavam se o governo iria pagar antes das festas (tanto muçulmanas como católicas). Pelos vistos, até ao fim do ano não houve nada para ninguém! Também não ouvi nenhum governante dar explicações. Aliás, em duas semanas, não me lembro de ter ouvido alguém com responsabilidades no país dizer alguma coisa sobre qualquer coisa.
Pessoas próximas contam-me de casos passados no Hospital Simão Mendes. Parecem tirados de um filme de terror de 7ª categoria. Por exemplo, na maternidade há preços para tudo.. Uma cesariana custa à grávida 45.000 francos XFO, tendo ainda de pagar:
- O jantar do médico (com letra bem pequena) - 10.000 XFO
- as noites passadas no hospital (sendo que o dormir no chão custa 2500 XFO/noite)
- as enfermeiras cobram para cada curativo ou cada injecção, tendo ainda as pobres parturientes de se levantar, indo ter com as excelentíssimas senhoras enfermeiras (elas dizem que sim) aos seus cadeirões respectivos para fazerem, muito contrariadas, o tal penso!
Sinto-me nauseado. Prefiro
não ouvir mais.
Mas pelos vistos nem tudo corre mal.
As discotecas encontram-se cheias. Qual cenário hollywoodesco...é ver chegar carros topo de gama com jovens da nossa praça que, de um momento para o outro, são os novos ricos do país, concorrendo pela posse das miúdas, mesas na discoteca e em casos extremos fazendo uso das suas belas pistolas em plena pista para marcar o seu território nos negócios! Um cenário a lembrar os gangs dos Estados Unidos..muitos filmes andam a ver de certeza. Dizem-me que são presos na hora pelos “Ninjas”. Mas no dia seguinte encontro-me com eles pelas ruas esburacadas de Bissau. Afinal quem é que manda?
Pela primeira vez na vida, estou desejoso para que as férias em Bissau cheguem ao fim.
Mas antes de deixar o país sou confrontado, no aeroporto Osvaldo Vieira, com mais uma sessão de “peditórios”, desde o pessoal que anda a fazer revista das malas ao oficial de polícia que tem como obrigação controlar o passaporte no acto de saída ( a este, digo que já não me resta um único euro...olha-me com um ar furioso! -ali bu passaporte!). Agradeço.
Finalmente, o Airbus da TAP faz-se à pista e descola! Pela primeira vez sinto-me aliviado ao deixar o meu país.
Durante a viagem vem-me à cabeça o poema, Desafio, de Tony Tcheka.
Desafio
Até parece
que a Sul o tempo parou
até parece que o sol
que nos queima
é obtuso e sisudo
até parece
que fomos privados
do apetite
da vontade
da lucidez
até parece
que irrompemos
d'algum ventre enteado
palavra que parece
Até parece que perdemos o Norte
e que o Sul é recóndito
confinado à malvadez
e cozinhados da fada má
Sul é amargo da boca
e o santo na mão
Será sina castigo ou destino
marcado nos porões negreiros?
E o desespero a fome
a doença os bolsos minguados
todos esses fiéis companheiros
serão mosteiros
ou simples penitência
para salvar a alma do corpo sofredor?
Mas palavra que apetece
soltar um grito
e desafiar de vez
esta força imensa
que se alimenta da minha dor
da nossa dor!
VAMOS CONTINUAR A TRABALHAR!
Projecto Guiné-Bissau: CONTRIBUTO